quarta-feira, 16 de fevereiro de 2011

A DOUTRINA DA SANTÍSSIMA TRINDADE NOS PADRES PRÉ-NICENOS




Por José Miguel Arráiz
Tradução: Carlos Martins Nabeto

 
INTRODUÇÃO

Neste artigo, tento estudar a evolução do dogma da Santíssima Trindade ao longo da História. Pois bem. Poderia estar perguntando o leitor: "os dogmas da Igreja evoluíram?", ao que posso responder que, ainda que não tenham evoluído quanto ao seu conteúdo (a verdade é a mesma ontem, hoje e amanhã), evoluíram quanto à consciência que deles foi adquirindo a Igreja. Com efeito, o tempo permitiu que a terminologia deste dogma central da fé cristã fosse se enriquecendo, para expressar de uma forma mais precisa aquilo que a Igreja sempre professou. Surge, assim, o termo "Trindade" como uma forma de definir o mistério de que existe um só Deus em três Pessoas distintas, as quais possuem a mesma natureza ou substância.

Porém, este enriquecimento não ocorreu sem custo nem glória; muitas heresias tiveram que ser combatidas e superadas pela Igreja ao longo da História (e muitas dessas heresias ressurgiram novamente nos tempos atuais).

1. HERESIAS CRISTOLÓGICAS E TRINITÁRIAS

Existem numerosas heresias cristológicas e trinitárias, de modo que tratar de todas seria deveras longo. Logo, nos focaremos principalmente nas duas maiores e que ressurgiram hoje sob outros nomes e fachadas.
 
a) Modalismo

Também conhecida como Monarquianismo, Sabelianismo ou Patripassianismo. Sustentava, nos séculos II e III, que em Deus havia uma só Pessoa e que o Pai, o Filho e o Espírito Santo eram formas de se comunicarem com os homens ou de se manifestarem. Era uma tentativa de afirmar a unidade de Deus sem negar a divindade de Cristo nem a do Espírito Santo.

Hoje em dia há uma grande quantidade de denominações protestantes que aderiram a essa heresia. Um exemplo temos na Igreja Pentecostal Unida, a qual professa:
"A doutrina sobre a natureza de Deus se chama 'Unicidade'. Esta palavra significa 'Qualidade do Único'. Esta se encontra claramente nas Escrituras e afirma que existe apenas um só Deus, sem distinção de Pessoas e que em Jesus Cristo habita corporalmente toda a plenitude da divindade" (Doutrina da Igreja Pentecostal Unida da Espanha)[1].

b) Arianismo

Uma grande heresia que a Igreja enfrentou e que abalou a Igreja durante o século IV. Da mesma forma que o Modalismo, queria defender a unicidade de Deus, porém o fazia reduzindo Jesus Cristo a um ser criado. Para os arianos, Cristo não era Deus, mas uma criatura subordinada criada por Ele, de modo que houve um tempo em que o Pai existiu e Cristo não. Para eles, Cristo também não tinha a mesma natureza ou substância do Pai. Entre os diferentes expoentes do Arianismo ressurgido hoje, podemos citar os Testemunhas de Jeová; para ilustrar um pouco a sua doutrina, mencionaremos um extrato de uma de suas publicações:
"Somente Deus é o Todo-Poderoso, o Criador, separado e distinto de qualquer outra pessoa. Jesus - e isto se aplica ainda à existência que teve antes de vir a ser homem - é também separado e distinto, um ser criado subordinado a Deus" (Folheto "O que Diz a Bíblia sobre Deus e Jesus?").

2. O TESTEMUNHO DOS ESCRITORES ECLESIÁSTICOS E PADRES DA IGREJA ANTES DO CONCÍLIO DE NICÉIA

Existem fontes protestantes que afirmam que foi graças ao Concílio de Nicéia que foram assentadas as bases para a doutrina da Trindade:
"O Concílio de Nicéia assegurou que Cristo era da mesma substância de Deus, abrindo base para uma posterior teologia trinitária. Porém, não estabeleceu a Trindade, pois naquele Concílio não se disse que o espírito santo era a terceira pessoa de uma Divindade trina e una (...) Por muitos anos houve muita oposição, com base bíblica, ao desenvolvimento da idéia de que Jesus era Deus. Em um esforço para resolver a disputa, o imperador romano Constantino convocou todos os bispos para Nicéia (...) Que papel desempenhou no Concílio de Nicéia aquele imperador não-batizado? A Enciclopédia Britânica relata: 'O próprio Constantino presidiu e dirigiu ativamente as discussões e pessoalmente propôs (...) a fórmula decisiva que expressava a relação de Cristo com Deus no credo que o Concílio publicou, o qual diz que é 'consubstancial com o Pai'. (...) Pressionados pelo imperador, os bispos - com apenas duas exceções - assinaram o credo, ainda que muitos deles não estivessem inclinados a fazê-lo'" (Folheto "Como se Desenvolveu a Doutrina da Trindade?").

Nesse folheto, em resumo, aponta-se que - segundo os Testemunhas de Jeová - a doutrina trinitária seria produto de uma manobra política do imperador Constantino, que acabou obrigando os bispos a reconhecer que Cristo era Deus, quase que contra as suas vontades.

Nada melhor, então, que estudar o testemunho dos Padres anteriores ao Concílio de Nicéia, para que possamos indagar o quanto há de verdadeiro nessas afirmações e qual foi o real desenvolvimento da doutrina trinitária ao longo da História.

A DIDAQUÉ (OU: A DOUTRINA DOS DOZE APÓSTOLOS)

É considerado um dos mais antigos escritos cristãos não-canônicos, datado inclusive de tempo bem anterior a muitos escritos do Novo Testamento. Estudos que assinalam uma data de composição não posterior a 160 d.C. são recentes. É um excelente testemunho do pensamento da Igreja Primitiva e aqui o mencionamos por trazer um testemunho do uso da fórmula batismal trinitária usada pela Igreja Primitiva:
 
"Quanto ao batismo, procedam assim: depois de ditas todas essas coisas, batizem em água corrente, em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo" (Didaqué 7,1).[2]

O MARTÍRIO DE POLICARPO

É uma carta da Igreja de Esmirna à comunidade de Filomênio em que se narra o martírio de São Policarpo, discípulo direto do Apóstolo São João e bispo de Esmirna. É um escrito apostólico que faz uso de belas doxologias trinitárias, expressando muito bem e claramente o dogma trinitário:
"A Ele [Jesus Cristo] seja dada a glória com o Pai e o Espírito Santo pelos séculos dos séculos. Amém".[3]

O PASTOR DE HERMAS

Classificado como um dos escritos dos Padres Apostólicos ainda que - como assinala Quasten - pertença ao grupo dos Apocalipses apócrifos. Contém as revelações feitas por duas figuras celestiais a Hermas:
"O Espírito Santo, que é preexistente, que criou todas as coisas, Deus o fez habitar no corpo de carne que Ele quis. Pois bem. Esta carne em que o Espírito Santo habitou serviu bem ao Espírito, caminhando em santidade e pureza, sem macular absolutamente nada o mesmo Espírito. Como [essa carne] tinha, pois, levado uma conduta excelente e pura, e tomado parte em todo trabalho do Espírito e cooperado com Ele em todo negócio, portando-se sempre forte e valorosamente, Deus a tornou partícipe juntamente com o Espírito Santo. Com efeito, a conduta desta carne agradou a Deus, por não ter se maculado sobre a terra enquanto teve consigo o Espírito Santo. Assim, pois, tomou por conselheiro a seu Filho e os anjos gloriosos para que esta carne, que tinha servido sem reprovação ao Espírito, alcançasse também algum lugar de repouso e não parecesse ter perdido a recompensa pelo seu serviço, porque toda a carne em que habitou o Espírito Santo, se encontrada pura e sem mancha, receberá sua recompensa" (5ª Parábola, 6,5-7).[4]

Com base neste texto, Quasten explica:
"Segundo esta passagem, parece que para Hermas a Trindade consiste em Deus Pai, em uma segunda Pessoa divina - o Espírito Santo - que ele identifica com o Filho de Deus e, finalmente, no Salvador, elevado para fazer parte de sua sociedade como prêmio por seus merecimentos. Em outras palavras, Hermas considera o Salvador como Filho adotivo de Deus, razão pela qual se refere à sua natureza humana".
SANTO INÁCIO DE ANTIOQUIA (110 D.C.)

Foi consagrado bispo da Antioquia pelas próprias mãos de São Pedro e São Paulo, segundo afirma São João Crisóstomo (embora as Constituições Apostólicas afirmem que Pedro consagrou Evódio e Paulo a Inácio). Eusébio de Cesaréia afirma (Hist. Ecles. 3,22) que [Inácio] sucedeu a Evódio (primeiro bispo de Antioquia) e em sua "Crônica" aponta o tempo de seu episcopado entre o 1º ano de Vespasiano (70 d.C.) e o 10º de Trajano (107 d.C.).
"Inácio, por sobrenome Téoforo [=portador de Deus], à abençoada em grandeza de Deus com plenitude; à predestinada desde antes dos séculos para servir para sempre, para glória duradoura e imutável, glória unida e eleita pela graça da verdadeira Paixão e por vontade de Deus Pai e de Jesus Cristo, nosso Deus; à Igreja digna de toda bem-aventurança, que está em Éfeso, na Ásia, minha cordialíssima saudação em Jesus Cristo e na alegria imaculada" (Epístola aos Efésios 1).[5]

"Existe um médico, no entanto, que é carnal além de espiritual, gerado e não gerado, Deus feito carne, filho de Maria e Filho de Deus, primeiro passível e depois impassível: Jesus Cristo, nosso Senhor" (Epístola aos Efésios 7,2).[6]

"A verdade é que nosso Deus Jesus, o Ungido, foi levado por Maria em seu seio conforme a dispensação de Deus, certamente da descendência de Davi, mas por obra do Espírito Santo. Ele nasceu e foi batizado a fim de purificar a água com a sua Paixão" (Epístola aos Efésios 18,2).[7]

"Inácio, por sobrenome Téoforo [=portador de Deus], à Igreja que alcançou misericórdia na magnificência do Pai Altíssimo e de Jesus Cristo, seu único Filho; à que é amada e é iluminada por vontade Daquele que quis que todas as coisas existissem, segundo a fé e a caridade de Jesus Cristo, nosso Deus" (Epístola aos Romanos 1).[8]

"Permitam que eu seja imitador da Paixão do meu Deus" (Epístola aos Romanos 4,3).

"Eu glorifico a Jesus Cristo, Deus, que é quem os tem feito sábios até tal ponto, pois percebi muito bem de quão mergulhados estais da fé imutável, como se estivésseis pregados, em carne e espírito, na cruz de Jesus Cristo" (Epístola aos Esmirniotas 1,1).[9]

Para Santo Inácio, Cristo está acima do tempo e é intemporal, o que é uma forma de dizer que existe desde toda a eternidade:
"Aguardai Aquele que está acima do tempo, o Intemporal; o Invisível, que por nós se tornou visível; o Impalpável, o Impassível, que por nós se fez passível; aquele que, por todos os modos, sofreu por nós" (Carta a Policarpo 3,2).[10]

ARISTIDES (SÉC. II)

Escritor eclesiástico sobre o qual Eusébio da Cesaréia, em sua História Eclesiástica (4,3,3), afirma que era "um varão fiel na profissão da nossa religião". Deixou uma apologia da fé, a qual tinha sido perdido, até que em 1878 os Mequitaristas de São Lázaro de Veneza publicaram um manuscrito do século X, correspondente ao fragmento armênio de uma apologia intitulada "Ao imperador Adriano César da parte do filósofo ateniense Aristides". Posteriormente, em 1889, o sábio norte-americano Rendel Harris descobriu uma tradução completa em siríaco desta apologia. Nesta obra, Aristides emprega a fórmula trinitária, mencionando as três Pessoas divinas:
"Este teve doze discípulos, os quais, após sua ascensão aos céus, percorreram as províncias do Império e ensinaram a grandeza de Cristo, de modo que um deles percorreu aqui mesmo, pregando a doutrina da verdade, pois conhecem o Deus criador e artífice do universo em seu Filho Unigênito e no Espírito Santo, não adorando nenhum outro Deus além deste" (Apologia 15,2).[11]

(Continua...)

Nenhum comentário:

Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...