quinta-feira, 17 de fevereiro de 2011

A DOUTRINA DA SANTÍSSIMA TRINDADE NOS PADRES PRÉ-NICENOS - PARTE 2


ATENÁGORAS DE ATENAS (SÉC. II)

Famoso apologeta cristão do século II. Atenágoras, mesmo sem empregar o termo "Trindade" é bastante explícito ao definí-la. Também rejeita o Subordinacionismo e a tendência que posteriormente seria adotado pelo Arianismo ao considerar Cristo como um ser criado, como se deduz do seguinte texto escrito por volta do ano 177 d.C.:
"E se pela eminência da vossa inteligência vos ocorre perguntar o que quer dizer 'Filho', vos direi brevemente: o Filho é o primeiro broto do Pai, não como ato, já que Deus, que é inteligência eterna, desde o princípio tinha em si mesmo o Verbo, sendo eternamente racional, mas procedendo de Deus quando todas as coisas materiais eram natureza sem forma e terra inerte, estando misturadas as mais grosseiras com as mais leves, para ser sobre elas idéia e operação" (Súplica em Favor dos Cristãos 10).[12]
Eis aqui a sua forma de explicar a Trindade:
"Assim, pois, suficientemente resta demonstrado que não somos ateus, pois admitimos um só Deus incriado e eterno, e invisível, impassível, incompreensível e imenso, apenas pela inteligência compreensível à razão... Quem, portanto, não se surpreenderá de ouvir chamar de 'ateus' aqueles que admitem um Deus Pai, um Deus Filho e um Espírito Santo, que demonstram seu poder na unidade e sua distinção na ordem?" (Súplica em Favor dos Cristãos 10).[13]

TACIANO, O SÍRIO (SÉC. II)

Taciano foi discípulo de São Justino Mártir; dele conservamos um discurso contra os gregos, em que ataca o Politeísmo. Possuía uma caráter forte, que o levou a abandonar a Igreja e fundar sua própria seita (os Encratitas) - testemunho que nos dá Eusébio de Cesaréia (História Eclesiástica 4,18-19); entre outros - tal como Jerônimo, que o chama de "Patriarca dos Encratitas" (Epist. Ad Titum, prol. [PL 6,356]) - praticavam uma total abstinência de carnes e bebidas alcóolicas, classificavam o matrimônio como pecaminoso e substituíam, na celebração eucarística, o vinho pela água. Chegou até nós o discurso contra os gregos, obra em que [Taciano] ataca o Politeísmo:
"Porque não estamos loucos - ó helenos - nem pregamos loucuras quando anunciamos que Deus apareceu na forma humana. Vós que nos insultais, comparai os vossos mitos com as nossas narrações" (Discurso contra os Gregos 21).[14]

SÃO MELITÃO DE SARDES (SÉC. II)

Bispo de Sardes, na Lídia, proeminente e venerado escritor eclesiástico do século II. Em uma carta ao Papa Vítor (189-199), Polícrates de Éfeso o aponta entre os "grandes luzeiros (ou estrelas)" da Ásia que gozam do descanso eterno. De muitas de suas obras só nos restam fragmentos ou apenas o título, graças a Eusébio de Cesaréia e Anastácio Sinaíta. Após uma descoberta recente, em 1930, foi publicada sua Homilia sobre a Paixão, onde Melitão expõe uma Cristologia bastante lúcida em que o conceito da divindade e preexistência de Cristo dominam toda a sua teologia:
"Porque nascido como Filho, conduzido como cordeiro, sacrificado como ovelha, sepultado como homem, ressuscitou dos mortos como Deus, sendo por natureza Deus e homem. Ele é tudo: quando julga, é Lei; quando ensina, é Verbo; quando salva, é Graça; quando gera, é Pai; quando é gerado, é Filho; quando sofre, é ovelha sacrificial; quando é sepultado, é homem; quando ressucita, é Deus. Este é Jesus Cristo, a quem seja dada a glória pelos séculos dos séculos" (Homilia sobre a Paixão 8-10).[15]

Afirma também a preexistência de Cristo:
"Este é o primogênito de Deus, que foi gerado antes da estrela da manhã, que fez levantar a luz, que fez brilhar o dia, que separou as trevas, que assentou a primeira base, que suspendeu a terra em seu lugar, que secou os abismos, que estendeu o firmamento, que pôs ordem no mundo" (Homilia sobre a Paixão 82).[16]

Nos fragmentos citados por Anastácio Sinaíta, aponta as duas naturezas de Cristo e de como é, assim, verdadeiro Deus e verdadeiro homem:
"Não é absolutamente necessário, ao tratar com pessoas inteligentes, aduzir que as ações de Cristo, após seu batismo, são provas de que sua alma e corpo e sua natureza humana era iguais às nossas, verdadeiras e não fantasmagóricas. As atividades de Cristo após seu batismo, especialmente os seus milagres, forneceram provas ao mundo da divindade oculta em sua carne. Sendo Deus e também homem perfeito, ele deu indicações positivas de suas duas naturezas: de sua divindade, pelos milagres durante os três anos que seguiram após seu batismo; e de sua humanidade, nos trinta anos anteriores ao seu batismo, durante o qual, em razão da sua condição segundo a carne, ele ocultara as características de sua divindade, ainda que fosse verdadeiro Deus existente antes das idades" (Fragmentos de Melitão em Anastácio Sinaíta; Guia 13).[17]

SANTO IRENEU (140-202 D.C.)

Bispo de Esmirna e mártir, teve contato com a Era Apostólica por ser discípulo de São Policarpo que, por sua vez, tinha sido discípulo do Apóstolo São João. Célebre por seu tratado "Contra as Heresias", em que combate as heresias de seu tempo, especialmente os gnósticos, expressa com clareza, nessa obra, a fé trinitária da Igreja em um só Deus Pai, um só Senhor Jesus Cristo e no Espírito Santo. Para o bispo, Jesus Cristo é para os cristãos "Senhor, Deus, Salvador e Rei". Particularmente importante é seu testemunho sobre como essa doutrina é pregada e professada por todas as Igrejas do orbe, como se tivessem uma só boca e um só coração. Este testemunho é bem anterior ao Concílio de Nicéia:
"A Igreja, estendida pelo orbe do universo até os confins da terra, recebeu dos Apóstolos e de seus discípulos a fé em um só Deus Pai soberano universal 'que fez os céus e a terra e o mar e tudo quanto neles existe'; e em um só Jesus Cristo Filho de Deus, que se encarnou para a nossa salvação; e no Espírito Santo, que pelos profetas proclamou as economias e o advento, a geração por meio da Virgem, a Paixão, a ressurreição dentre os mortos e a ascensão aos céus do amado Jesus Cristo nosso Senhor; e seu [novo] advento dos céus, na glória do Pai, para recapitular todas as coisas e para ressuscitar toda carne do gênero humano, de forma que diante de Jesus Cristo, nosso Senhor, Deus, Salvador e Rei, segundo o beneplácito do Pai invisível, 'todo joelho se dobre no céu, na terra e nos infernos, e toda língua o confesse'. Ele julgará todos justamente: os 'espíritos do mal', os anjos que caíram, os homens apóstatas, ímpios, injustos e blasfemos, para enviá-los para o fogo eterno; e para dar como prêmio, aos justos e santos que observam os seus mandamentos e perseveram no seu amor, alguns desde o princípio, outros a partir de sua conversão, a vida incorruptível, rodeando-os da luz eterna.
Como dissemos antes, a Igreja recebeu esta pregação e esta fé, e estendida por toda terra, com cuidado a guarda, como se habitasse em uma só família. Conserva uma só fé, como se tivesse uma só alma e um só coração, e a prega, ensina e transmite com a mesma voz, como se não tivesse senão apenas uma só boca. Certamente, são diversas as línguas, segundo as diversas regiões; porém, a força da Tradição é uma e a mesma. As igrejas da Germânia não crêem de maneira diversa, nem transmitem outra doutrina diferenta da que pregam as da Ibéria ou a dos celtas, ou as do Oriente, como as do Egito ou Líbia, assim como, tampouco, das igrejas constituídas no centro do mundo. Assim como o sol, que é uma criatura de Deus, é um e o mesmo em todo o mundo, assim também a luz, que é a pregação da verdade, brilha em todas as partes e ilumina todos os seres humanos que querem conhecer a verdade. E nem aquele que se sobressai por sua eloquência entre os chefes da Igreja prega coisas diferentes destas, pois nenhum discípulo está acima de seu Mestre, nem o mais débil na palavra recorta a Tradição; sendo uma e a mesma fé, nem o muito que pode explicar sobre ela aumenta, nem o menos a diminui" (Contra as Heresias 1,10,1-2).[18]

Ireneu interpreta que quando Deus diz: "Façamos o homem à nossa imagem e semelhança", está falando ao Filho e ao Espírito Santo. Afirma que Cristo é gerado, porém ninguém conhece os mistérios desta geração, razão pela qual é em vão que os hereges gnósticos tentam explicá-la.
"Assim pois, se alguém nos pergunta: 'Como o Pai emitiu o Filho?', respondemos que esta produção, ou geração, ou pronúncia, ou parto, ou qualquer outro nome que se queira dar a esta origem, é inefável. Não a conhecem nem Valentim, nem Marcião, nem Saturnino, nem Basílides, nem os anjos, nem os poderes, nem as potestades, mas apenas o Pai que O gerou e o Filho que Dele nasceu. Sendo, pois, inefável esta geração, quem quer que se atreva a narrar as gerações e emanações não está em seu são juízo quando promete descrever o indescritível" (Contra as Heresias 2,28,6).

Mais claro ainda encontra-se no livro 3, quando volta a declarar que Cristo é Deus, Senhor, sempre Rei, Unigênito e Verbo encarnado:
"Que ninguém entre todos os filhos de Adão seja chamado Deus por si mesmo ou proclamado Senhor o demonstramos pelas Escrituras. E que apenas Ele [Jesus], entre todos os homens de seu tempo, seja proclamado Deus, Senhor, sempre Rei, Unigênito e Verbo encarnado, por todos os Profetas e Apóstolos e ainda pelo próprio Espírito, é algo que podem constatar todos aqueles que aceitam um mínimo de verdade" (Contra as Heresias 3,19,2).
Ensina que Cristo é verdadeiro Deus e verdadeiro homem:
"As Escrituras não dariam todos estes testemunhos a respeito Dele se fosse apenas um homem semelhante a todos [nós]. Porém, como teve uma geração sobretudo iluminada do Pai Altíssimo e também por ter sido concebido da Virgem, as divinas Escrituras testemunham ambas as coisas sobre Ele: que é homem sem beleza e passível, que se sentou sobre o dorso de uma asna, que ingeriu fel e vinagre, que foi desprezado pelo povo e que desceu até a morte; porém, que é também Senhor Santo e Conselheiro admirável, formoso à vista, Deus forte, que vem sobre as nuvens como Juiz de todos. Isto é o que as Escrituras profetizam acerca Dele.
Enquanto homem, o era para ser tentado; enquanto Verbo, para ser glorificado. O Verbo repousou para que pudesse ser tentado, desonrado, crucificado e morto, habitando naquele Homem que vence e suporta [o sofrimento], que se comporta como homem de bem, ressuscita e é elevado ao céu. Este é o Filho de Deus, Senhor nosso, Verbo existente do Pai e filho do homem porque nasceu da Virgem Maria, que teve sua origem nos homens, pois ela mesma era um ser humano; teve gestação enquanto homem e assim chegou a ser filho do homem" (Contra as Heresias 3,19,2-3).

Opõe-se, com mais de dois séculos de antecedência, à heresia do Arianismo (que afirmava que houve um tempo em que o Filho não esteve com o Pai). Também com antecedência, rejeita o Modalismo, diferenciando as três Pessoas divinas:
"Que o Verbo, ou seja, o Filho, sempre esteve com o Pai, de múltiplas maneiras já o demonstramos; e também que sua Sabedoria, ou seja, o Espírito, estava com Ele antes da Criação" (Contra as Heresias 4,20,3).
No entanto, há autores que opinam que Ireneu não estava totalmente livre do Subordinacionismo, e que poderia ser considerado heterodoxo à luz da teologia posterior:
"Se, por exemplo, alguém procura o motivo pelo qual apenas o Pai conhece o dia e a hora, ainda que comunique tudo ao Filho, o próprio Senhor o disse (e ninguém pode inventar outro [motivo] sem risco [de se equivocar] porque apenas o Senhor é o Mestre da verdade). Ele nos disse que o Pai está sobre todas as coisas, pois declarou: 'O Pai é maior do que Eu' (João 14,28). O Senhor, portanto, apresentou o Pai como superior a todos em relação ao seu conhecimento, a fim de que nós, enquanto caminhamos por este mundo (1Coríntios 7,31), deixemos a Deus o saber mais profundo sobre tais questões; porque se pretendemos investigar a profundidade do Pai (Romanos 11,33), corremos o perigo de perguntar, inclusive, se existe outro Deus acima de Deus" (Contra as Heresias 2,28,8).

"O Pai sustenta ao mesmo tempo toda a sua criação e o seu Verbo; e o Verbo, que o Pai sustenta, concede a todos o Espírito segundo a vontade do Pai: a uns, na própria Criação, lhes dá [o espírito] da criação, que é criado; a outros, o da adoção, isto é, o que provém do Pai, que é obra de sua geração. Assim se revela como único o Deus e Pai que está acima de tudo, através de todas [as coisas] e em todas as coisas. O Pai está sobre todos os seres e é a cabeça de Cristo (1Coríntios 11,3); através de todas as coisas, age o Verbo, que é Cabeça da Igreja; e em todas as coisas porque o Espírito está em nós, o qual é água viva (João 7,38-39) que Deus outorga àqueles que crêem retamente Nele e O amam, sabendo que 'um só é o Pai que está sobre todas, por todas e em todas as coisas'" (Contra as Heresias 5,18,2).
CLEMENTE DE ALEXANDRIA (MEADOS DO SÉC. II - ANTERIOR A 215)

Nasceu por volta do ano 150, provavelmente em Atenas, de pais pagãos. Após se tornar cristão, viajou pelo sul da Itália, Síria e Palestina à procura de mestres cristãos, até que chegou em Alexandria. Os ensinamentos de Panteno (chefe da escola catequética de Alexandria, no Egito) fizeram com que fixasse residência ali. No ano 202, a perseguição de Sétimo Severo o obrigou a abandonar o Egito e a se refugiar na Capadócia, onde faleceu pouco antes de 215. Seu conhecimento dos escritos pagãos e da literatura cristã é notável. Segundo Quasten, em suas obras se encontram cerca de 360 citações dos clássicos, 1500 do Antigo Testamento e 2000 do Novo Testamento. Por isso, é considerado cronologicamente como o primeiro sábio cristão conhecedor profundo não apenas da Sagrada Escritura como também das obras cristãs anteriores a ele e, inclusive, obras da literatura profana. Em sua obra "O Protréptico" ou "Exortação aos Gregos", escreve:
"A Palavra, então, o Cristo, é a causa de nosso antigo princípio - porque Ele estava com Deus - de nosso bem-estar. E agora esta mesma Palavra apareceu como homem. Apenas Ele é Deus e Homem, e fonte de todas as coisas boas. É por Ele que nos ensina a viver bem e, então, somos mandados para a vida eterna (...) Ele é o cântico novo, a manifestação que agora nos foi feita, da Palavra que existiu no princípio e antes do princípio. O Salvador, que existiu antes, apareceu apenas posteriormente. Ele, que apareceu, está Nele que é, pela Palavra que estava com Deus, a Palavra pela qual todas as coisas foram feitas; apareceu como nosso Mestre e Ele, que nos concedeu a vida no princípio quando, como nosso Criador, Ele nos formou; agora que Ele apareceu como nosso Mestre, nos ensinou a viver bem de modo que, logo, como Deus, poderá nos dar abundância na vida eterna" (Exortação aos Gregos 1,7,1).[19]
Mais adiante, na mesma obra, continua aprofundando sua teologia do Logos, afirmando que a Palavra divina é "evidentemente verdadeiro Deus", acrescentando ainda que estava "no mesmo nível" do Pai, o que provaria que não tinha inclinações subordinacionistas:
"Desdenhado na sua aparência, porém, na verdade adorado, o Expiador, o Salvador (...), a Palavra divina, Ele que é absolutamente e evidentemente Deus verdadeiro, Ele que está no mesmo nível do Senhor do universo porque era seu Filho e a Palavra estava com Deus" (Exortação aos Gregos 10,110,1).[20]

Em "O Pedagogo" (uma obra em 3 livros, que é a continuação do "Protréptico"), explica:
"Meus filhos: nosso Instrutor é como seu Deus, o Pai, pois é Filho Dele: livre de pecado, livre de culpa e com a alma livre de Paixão. Deus em forma de homem, inoxidável; o ministro de seu Pai, a Palavra que é Deus; que está no Pai, que é a mão direita do Pai; e, com a forma de Deus, é Deus. Ele é para nós uma imagem irrepreensível..." (O Pedagogo 1,2).[21]
Em seu comentário sobre 1João, escreve:
"O Filho de Deus, sendo, por igualdade de substância, um com o Pai, é eterno e não-criado".

(Continua...)

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