sexta-feira, 18 de fevereiro de 2011

Entrevista de Dom Bernard Fellay. Discussões teológicas, Motu Proprio e Assis III.

Dom Bernard Fellay, superior geral da Fraternidade São Pio X, concedeu uma entrevista ao Distrito Norte Americano. Abaixo segue nossa tradução da primeira parte [via versão espanhola]:
Os membros da comissão da FSSPX nas discussões teológicas: Dom Galarreta, os padres Gleize, de Jorna e de la Rocque na sacada do Santo Ofício, em Roma.
Os membros da comissão da FSSPX nas discussões teológicas: Dom Galarreta, os padres Gleize, de Jorna e de la Rocque na sacada do Santo Ofício, em Roma.
1. Monsenhor, o senhor tomou a decisão de levar adiante conversações doutrinais com Roma. Poderia nos recordar qual é o objetivo?
É preciso distinguir o fim que Roma persegue do nosso. Roma indicou que existiam problemas doutrinais com a Fraternidade e que os mesmos deviam se esclarecer antes de um reconhecimento canônico — problemas que, tratando-se da aceitação do Concílio, obviamente procederiam de nossa parte. Para nós, no entanto, trata-se de outra coisa: queremos expôr a Roma o que a Igreja sempre ensinou, e, com isso, apontar as contradições existentes entre este ensinamento multisecular e o que acontece depois do Concílio. De nossa parte, esse é o único objetivo que perseguimos.
2.  Que natureza tem estas conversações: negociações, discussões ou exposição da doutrina?
Não se pode falar de negociações. De modo algum se trata disso. Trata-se, por um lado, de uma exposição da doutrina, e, de outro, de uma discussão, já que estamos efetivamente diante de um interlocutor romano, com o qual discutimos sobre os textos e sobre a maneira de interpretá-los. Mas não se pode falar de negociações, nem de procura por um compromisso, porque é uma questão de fé.
3.  O senhor poderia nos recordar qual é o método de trabalho utilizado? Quais são os temas que já foram abordados?
O método é escrito: são redigidos textos sobre os quais depois se baseará o colóquio teológico seguinte. Já se tocaram em vários temas, mas por ora deixo está questão aberta. Posso dizer simplesmente que estamos chegando ao fim, porque já repassamos os principais temas resultantes do Concílio.
4.  Poderia nos descrever os interlocutores romanos?
São experts, isto é, professores de teologia, que ao mesmo tempo atuam como consultores da Congregação para a Doutrina da Fé. Pode-se dizer que são “profissionais” da teologia. Um, suíço, o Padre Morerod, é reitor do Angelicum; outro, jesuíta, maior que o anterior, é o Padre Becker; um membro do Opus Dei, na pessoa de seu Vigário Geral, Monsenhor Ocariz Braña; depois, Monsenhor Ladaria Ferrer, secretário da Congregação para a Doutrina da Fé; e, por fim, o moderador, que é o Secretário da Comissão Ecclesia Dei, Monsenhor Pozzo.
5. Há uma evolução no pensamento de nossos interlocutores depois de nossas exposições?
Não creio que se possa dizer isso.
Dom Galarreta, no sermão das ordenações em La Reja de dezembro de 2009, dizia que Roma havia aceitado que o magistério anterior ao Vaticano II fosse tomado como “único critério comum e plausível” para estas conversações. Existe esperança de que nossos interlocutores revisem o Vaticano II ou é algo impossível para eles? O Vaticano II é realmente um obstáculo insuperável?
Creio que o assunto deve ser proposto de outra maneira. Considerando as distinções feitas pelo Papa Bento XVI em seu discurso de dezembro de 2005, observa-se claramente que está vedado fazer determinada interpretação do Concílio. Portanto, sem falar abertamente de uma revisão do Concílio, percebe-se — apesar de tudo — certa intenção de revisar a maneira de apresentar o Concílio. A distinção pode parecer um pouco sutil, mas nela se apoiam precisamente os que não quere tocar o Concílio, e, contudo, admitem que, em razão de um certo número de ambiguidades, ultrapassou-se os limites, sendo necessário voltar a recordar que estão proibidos. Se o Vaticano II é realmente um obstáculo insuperável? Para nós, em todo caso, sim, ele o é.
7. Por que é tão difícil a eles admitir uma contradição entre o Vaticano II e o magistério anterior?
A resposta é bastante simples. A partir do momento em que se admite o princípio conforme o qual a Igreja não pode mudar, se se quer fazer aceitar o Vaticano II, é preciso afirmar que o Vaticano II não mudou nada. Eis aí o porque de não admitirem contradições entre o Vaticano II e o magistério anterior, Todavia, entram em apuros quando têm de explicar a natureza da mudança que realmente se produziu.
8. Além do testemunho da fé, é importante e vantajoso que a Fraternidade vá a Roma? É perigoso? O senhor acredita que isso possa se prolongar no tempo?
É muito importante que a Fraternidade ofereça este testemunho; essa é, inclusive, a razão destas discussões doutrinais. Trata-se verdadeiramente de fazer ressoar a fé católica em Roma e inclusive tentar — por que não? — que ressoe forte por toda a Igreja. Há um perigo: o de alimentar ilusões. Vê-se que alguns fiéis criaram ilusões, mas os últimos acontecimentos se encarregaram de dissipá-las. Penso no anúncio da beatificação de João Paulo II e do novo Assis, na linha das reuniões inter-religiosas de 1986 e 2002.
9. O Papa segue de perto estas discussões? Fez algum comentário sobre elas?
Creio que sim, mas sem estar a par dos pormenores. Se comentou algo sobre elas? Por ocasião de uma reunião com seus colaboradores, neste verão, em Castelgandolfo, disse que estava satisfeito com elas. É tudo.
10. Pode-se dizer que o Santo Padre, que há mais de 25 anos teve que tratar com a Fraternidade, hoje em dia está melhor disposto para com ela do que no passado?
Não estou seguro disso. Sim e não. Penso que, como Papa, ele tem a responsabilidade por toda a Igreja, a preocupação por sua unidade, teme que se produza um cisma. Foi ele mesmo quem disse que esses eram os motivos que o moviam a agir. Agora ele é a cabeça visível da Igreja; está aí talvez a explicação por atuar dessa maneira. Isso significa que manifesta maior compreensão para com a Fraternidade? Penso que há certa simpatia, mas com limites.
11. Em síntese, o que o senhor diria hoje sobre estas discussões?
Que se fosse necessário voltar a fazê-las, nós as faríamos. É muito importante, é capital. Se esperamos corrigir um movimento de idéias, estas discussões não podem ser evitadas.
12. Há algum tempo se escutam algumas vozes de eclesiásticos — Mons. Gherardini, Mons. Schneider — que, inclusive em Roma, difundem verdadeiras críticas aos textos do Vaticano II e não só à sua interpretação. É possível esperar que este movimento aumente e entre no Vaticano?
Não digo que se possa esperar, mas que se deve esperar. Verdadeiramente, é necessário esperar que estas críticas iniciais — chamemo-las de objetivas, serenas — se ampliam. Até agora sempre se considerou o Vaticano II como um tabú, o que torna quase impossível curar esta enfermidade que é a crise da Igreja. É necessário pode falar dos problemas e ir ao fundo das coisas; do contrário, nunca se poderá administrar o remédio.
13. A Fraternidade pode desempenhar um papel importante nesta tomada de consciência? De que modo? Qual é o papel dos fiéis a esse respeito?
Da parte da Fraternidade, sim, podemos desempenhar um papel, justamente apresentando o que a Igreja sempre ensinou e lançando objeções às novidades conciliares. O papel dos fiéis reside em dar a prova nos fatos, já que eles são a prova de que hoje a Tradição pode ser vivida. O que a Igreja sempre ensinou — a disciplina tradicional — não é somente atual: pode ser verdadeiramente vivida ainda hoje em dia.
14. Excelência, o senhor pensa que o Motu Proprio, apesar de suas deficiências, é um passo em favor da restauração da Tradição?
É um passo capital, essencial — se poderia dizer — ainda que até agora praticamente não tenha tido efeito, ou pouco, já que existe uma oposição massiva da parte dos bispos. No âmbito jurídico, o fato de ter reconhecido que a antiga lei — isto é, a lei da missa tradicional — nunca havia sido abrogada, é um passo capital para voltar a conceder à Tradição o lugar que lhe é devido.
15. Concretamente, o senhor viu pelo mundo mudanças importantes da parte dos bispos a respeito da missa tradicional desde o Motu Proprio?
Não. Aqui e ali alguns obedecem o Papa, mas são raros.
16. E os sacerdotes?
Sim, vejo grande interesse da parte deles, mas muitos são perseguidos. É necessário ter uma coragem extraordinária para tentar simplesmente aplicar o Motu Proprio, tal como foi publicado. Sim, há padres, cada vez mais, sobretudo nas gerações jovens, que se interessam pela missa tradicional. É muito consolador!
17. Existem comunidades que decidiram adotar a liturgia antiga?
Talvez haja várias, mas há uma que conhecemos, na Itália, os Franciscanos da Imaculada, que decidiu restaurar a liturgia antiga. O ramo feminino já o fez. Quanto ao ramo dos sacerdotes, que exerce apostolado nas dioceses, nem sempre é fácil.
18. O que aconselha aos fiéis que, desde o Motu Proprio e graças a ele, têm a missa tradicional mais perto de seus lares do que indo a uma capela da Fraternidade Sacerdotal São Pio X?
O que lhes aconselho é pedido conselho antes aos padres da Fraternidade, não ir de olhos fechados a qualquer missa tradicional que se celebra próximo de suas casa. A missa é um tesouro, mas há também uma maneira de rezá-la, e tudo o que a acompanha, o sermão, o catecismo, o modo de administrar os sacramentos… Nem toda missa tradicional está necessariamente acompanhada das condições devidas para que produza todos os seus frutos e para que proteja as almas dos perigos da crise. Assim, pois, aconselhem-se antes com os padres da Fraternidade.
19. A liturgia não é o centro da crise da Igreja. O senhor acredita que a restauração da liturgia é sempre o princípio de um regresso à integridade da fé?
A missa tradicional tem um poder de graça absolutamente extraordinário. É possível vê-lo na prática apostólica, vê-lo sobretudo nos sacerdotes que voltam a ela, ela é verdadeiramente o antídoto para a crise. É realmente muito poderosa, em todo nível, tanto no âmbito da graça como no da fé. Penso que se fosse concedida uma verdadeira liberdade à missa antiga, a Igreja poderia sair rapidamente desta crise, mas isso ainda levará anos!
20. Há muito tempo o Papa fala da “reforma da reforma”. O senhor acredita que ele aspire conciliar a liturgia antiga com a doutrina do Vaticano II em uma reforma que seria um meio termo?
Veja, por ora não sabemos de nada! Sabemos que ele quer esta reforma, mas que amplitude terá? Ao fim eventualmente se misturará tudo, a “forma ordinária” e a “forma extraordinária”? Não é isso que encontramos no Motu Proprio, que pede que se distinguam bem as duas “formas”, sem misturá-las — o que é muito sábio. É necessário esperar e ver o que acontece. No momento, fiquemos com o que dizem as autoridades romanas.
21. O Santo Padre anunciou a próxima reunião de Assis. O senhor respondeu no sermão dado em San Nicolás, em 9 de janeiro passado, fazendo sua a posição que Dom Lefebvre manifestou por ocasião da primeira reunião, há vinte e cinco anos. O senhor pensa em intervir diretamente junto ao Santo Padre?
Se for a ocasião e se puder dar algum fruto, por que não?
22. É tão grave convocar as outras religiões para trabalhar pela paz?
Sob um aspecto — e apenas sob este aspecto — não. Convocar as outras religiões para trabalhar pela paz — uma paz civil — não tem problema; mas neste caso não é no âmbito da religião, mas no âmbito civil. Não se trata de um ato de religião, mas simplesmente de um ato de uma entidade religiosa que trabalha civilmente em favor da paz. Aí o objetivo não é sequer a paz religiosa, mas a paz civil entre os homens. Entretanto, é um absurdo pedir que se realizem atos religiosos por ocasião desta reunião, já que entre as religiões existe uma divergência radical. Neste contexto, é difícil entender o que significa aspirar a paz, quando não se está de acordo sobre a natureza de Deus, sobre o significado que se atribui à divindade. É possível se questionar verdadeiramente como se poderia chegar a qualquer resultado sério.
23. É possível pensar que o Santo Padre não entende o ecumenismo da mesma maneira que João Paulo II? Não se trata de uma diferença de grau no mesmo erro?
Não, eu creio que ele entende da mesma maneira. De fato, ele disse “não podemos rezar juntos”. Mas é necessário ver o que ele quer dizer com isso. Em 2003, ele deu uma explicação no livro “Fé, verdade, tolerância, Cristandade e as religiões do mundo” (Friburgo, 2003). No meu modo de ver, quer “enredar o enredo” (1). Tenta justificar Assis. Pode-se questionar o que ocorrerá em outubro próximo.
24. Alguns intelectuais italianos manifestaram sua inquietação pelas conseqüências de tal reunião. O senhor conhece alguma outra reação no seio da Igreja?
Tem razão. Vemos alguma outra reação no seio da Igreja? Nos meios oficiais não. Entre nós, sim, evidentemente.
25. Há alguma reação das congregações da Ecclesia Dei?
Nenhuma, que eu saiba.
26. Como o senhor explica que o Santo Padre, que denuncia o relativismo em matéria religiosa e que, inclusive, não quis ir à reunião de Assis em 1986, possa querer comemorá-la repetindo-a?
Para mim é um mistério. Não sei. Creio que talvez sofra pressões ou influências. Provavelmente esteja comovido pelos atentados anti-cristãos, pela violência anti-católica, as bombas no Egito, Iraque. Não deveria surpreneder que — quiçá este seja o motivo que o levou a realizar este novo Assis — não quero dizer que seja um ato de desespero, mas um ato realizado em meio ao desespero… Tenta fazer algo. Não me surpreenderia que fosse assim, mas não sei mais nada.
27. Existe alguma possibilidade de que o Santo Padre renuncie a este ato inter-religioso?
Não se sabe muito bem como será organizado. Teremos que ver. Supunho que tentarão fazer o mínimo, já que — reitero — para o Papa atual é impossível que grupos diferentes possam rezar juntos quando não reconhece o mesmo Deus; por isso alguém se perguntará uma e outra vez, o que eles poderão fazer todos juntos!
28. O que os católicos devem fazer diante do anúncio de um Assis III?
Rezar a fim de que Deus intervenha de uma maneira ou de outra para que não ocorra, e, em todo caso, começar desde já a reparar.
NOTA:
(1) Complicar algo desnecessária ou superfluamente.

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