quinta-feira, 24 de março de 2011

CONFISSÕES DE SANTO AGOSTINHO - Parte 10

CAPÍTULO IX
O amigo de Deus


.  É isto o que se ama nos amigos; e de tal modo se ama, que a consciência humana se julga culpada se  não ama ao que a ama, ou se não retribui amor com amor procurando na pessoa do amigo apenas o sinal exterior de sua benevolência. Daqui o pranto do luto quando morre um amigo, as trevas de dores, e as lágrimas que inundam o coração quando a doçura se transforma em angústia, e a morte dos que morrem na morte dos que vivem. 
  Bem-aventurado o que te ama, Senhor, e ama ao amigo em ti, e ao inimigo por amor a ti; só não perde o amigo quem tem a todos por amigos naquele que nunca se perde. E quem é este, senão nosso Deus, o Deus que fez o céu e a terra, e os enche, porque, enchendo-os, os criou?


Ninguém, Senhor, te perde senão o que te abandona. Mas, quem te deixa, para onde vai, ou para onde foge, senão de ti benévolo para ti irado? Onde não achará tua lei para seu castigo? Porque tua lei é a verdade, e a verdade és tu mesmo. 

CAPÍTULO X
As mentiras da beleza


  Ó Deus das virtudes! Converte-nos e mostra-nos tua face, e seremos salvos! Porque, para onde quer que se volte a alma humana, onde quer que se estabeleça fora de ti, sempre encontrará dor, mesmo que sejam as belezas que estão fora de ti e fora de si mesma; e todavia, estas nada seriam se não existissem em ti. Elas nascem e morrem; e, nascendo, começam a existir, e crescem para alcançar a perfeição e, uma vez perfeitas, começam a envelhecer e morrem. Embora nem tudo envelheça, tudo perece. Logo, quando os seres nascem e se esforçam para existir, quanto mais depressa crescem para existir, tanto mais se apressam para deixar de existir. Esta é a sua condição. Eis tudo o que lhes deste, porque são partes de coisas que não existem simultaneamente mas, morrendo e sucedendo-se umas às outras, formam o conjunto de que são partes. 
  Assim forma-se também nosso discurso, por meio dos sinais sonoros; este nunca se realizaria se uma palavra não se extinguisse, depois de pronunciadas suas sílabas, para dar lugar à seguinte. 
  Que minha alma te louve por tudo isto, ó Deus, criador de todas as coisas; mas não se pegue a elas com o visco do amor dos sentidos, pois também elas caminham para o não-ser, e dilaceram a alma com desejos pestilenciais, e ela quer existir e gosta de descansar nas coisas que ama. Mas nelas não acha onde, porque as coisas não são estáveis. Elas são fugazes, e quem poderá segui-las com os sentidos da carne? Ou quem as pode alcançar, mesmo estando presentes? Lento é o sentido da carne, por ser da carne, mas essa é a sua condição. É suficiente para o que foi criado, mas não o é para reter o curso das coisas, do princípio que lhes foi fixado, até o fim que lhes foi designado, porque em teu Verbo, que as criou, ouvem estas palavras: “Daqui até ali”. 

CAPÍTULO XI 
A verdade de Deus


  Não seja vã, ó minha alma, nem ensurdeças o ouvido do coração com o tumulto de tua vaidade. Ouve também : o próprio Verbo clama que voltes, porque só acharás repouso imperturbável lá onde o amor não é abandonado, se ele não nos abandona antes. Eis que as coisas passam para ceder lugar as outras, e para que assim se forme este universo inferior, de todas as suas partes. “Mas, por acaso, afasto-me de um lugar para outro? – diz o Verbo de Deus – Fixa nele tua morada, confia a ele tudo o que dele recebeste, alma minha, já cansada de tantos enganos. Confia à Verdade quanto da Verdade recebeste, e nada perderás; antes, tua podridão reflorescerá e serão curadas todas as tuas fraquezas, e serão retomadas e renovadas, estreitamente unidas a ti, tuas partes inconscientes; e já não te arrastarão para a ladeira por onde
descem, mas permanecerão contigo para sempre onde está Deus, eterno e imutável. 
  Por que, perversa, segues o apelo de tua carne? Seja esta, convertida a te seguir. Tudo o que por ela sentes é parte, mas ignoras o todo de que é parte, ainda que te dê prazer. Mas, se os sentidos de tua carne fossem idôneos para compreender o todo, e se, para teu castigo, não tivessem sido justamente limitados a compreender apenas partes do universo, certamente desejarias que passasse tudo o que presentemente existe, para melhor desfrutar do conjunto. 
  O que falamos também ouves com os ouvidos da carne, e com certeza não queres que as sílabas se detenham, mas que voem, para que outras lhes sucedam, e assim ouvires o conjunto. O mesmo acontece com todas as coisas que compõem um todo, quando essas partes constituintes não existem simultaneamente; há mais encanto no todo do que nas partes percebidas separadamente. Mas melhor do que todas elas, é o que as fez, que é nosso Deus, que não passa, porque nada vem depois dele. 

CAPÍTULO XII
O amor em Deus


  Se te agradam os corpos, louva a Deus neles, e dirige teu amor para teu artífice, para não o desagradar nas mesmas coisas que te agradam. 
  Se te agradam as almas, ama-as em Deus, porque, embora mutáveis, se fixas nele, terão estabilidade; de outro modo, passariam e pereceriam. Ama-as, pois, nele, e arrasta contigo até ele quantas almas puderes, dizendo-lhes: “Amemo-lo”.  Porque ele criou estas coisas, e não está longe; ele não as fez para depois ir embora, mas dele procedem e nele estão. E ele está onde aprecia a verdade: no mais íntimo do coração; mas o coração errante se afastou dele.
  Voltai, pecadores, ao coração, e ligai-vos àquele que é vosso criador. Firmai-vos nele, e estareis firmes; descansai nele, e estareis descansados. Para onde ides por esses ásperos caminhos? Para onde ides? O bem que amais, dele procede, mas só é bom e suave quando se dirige a ele; porém, será justamente amargo se, abandonando a Deus, amardes injustamente o que dele procede. Por que continuai por caminhos difíceis e trabalhosos? O descanso não está onde o buscais. Buscais a vida feliz na região das trevas: não está lá. Como achar a vida bem-aventurada onde nem sequer há vida?
  Ele, nossa vida real veio até nós; sofreu nossa morte, e a suplantou com a abundância de sua vida; com voz de trovão clamou para que voltássemos a ele, para o lugar escondido de onde veio até nós, passando primeiro pelo seio de uma virgem, onde se desposou com ele a natureza humana, carne mortal, para não ficar sempre mortal.
  Dali, como o esposo que sai do tálamo, deu saltos como um gigante, para correr seu caminho. E não se deteve; correu clamando com suas palavras, com suas obras, com sua própria morte, com sua vida, com sua descida aos ínferos e com sua ascensão, clamando para que voltássemos a ele. Se ele se afastou de nossa vista, foi para que entremos em nosso coração, e ali o encontremos; se partiu, ainda está conosco. Não quis ficar por muito tempo entre nós, mas não nos abandonou. Retirou-se de onde nunca se afastou, pois o mundo foi criado por ele, e no mundo estava, e ao mundo veio para salvar os pecadores. E a ele se confessa minha alma, a ele que a cura e contra quem pecou.
  Filhos dos homens, até quando sereis duros de coração? Será possível que, depois de ter a vida descido até vós, não queirais subir e viver? Mas para onde subis, quando vos ergueis e abris vossa boca no céu? Descei para subir, para subir até Deus, já que caístes levantando-vos contra Deus. 
  Dize-lhes isto, minha alma, para que chorem neste vale de lágrimas, e assim os arrebates contigo para Deus, pois, ao dizer estas palavras ardendo em chamas de caridade, é o espírito divino que te inspira. 

CAPÍTULO XIII
O problema do belo


  Então eu ignorava tais coisas – e  por isso amava belezas terrenas. Caminhava para o abismo, dizendo a meus amigos: “Será que amamos algo que não é belo? E que é o belo? E que é a beleza? Que é que nos atrai e apega às coisas que amamos? Pois, com certeza, se nelas não houvesse certa graça e formosura, não nos atrairiam. 
  E eu observava e via que num mesmo corpo uma coisa era o todo, harmonioso e belo, e outra o que lhe era conveniente, sal aptidão de se ajustar de maneira perfeita a alguma coisa como, por exemplo, a parte do corpo em relação ao conjunto, o calçado em relação ao pé, e outras similares. Esta consideração brotou em minha alma do íntimo de meu coração, e escrevi alguns livros sobre o belo e o conveniente, creio que dois ou três – tu o sabes, Senhor – pois já me esqueci, e não os tenho mais porque se me extraviaram não sei como. 

CAPÍTULO XIV
Razões de uma dedicatória 


  Mas, meu Senhor e meu Deus, qual o motivo de dedicar esses livros a Hiério, orador de Roma? Não o conhecia, apreciando-o apenas pela fama de sua doutrina, que era grande, e por alguns ditos seus, que ouvira, e que me agradaram. Mas dele gostava principalmente porque ele agradava aos outros, que lhe tributavam grandes elogios, admirados de que um sírio, educado na eloqüência grega, chegasse a orador admirável na latina, e grande conhecedor de todos os assuntos, ligados à filosofia. Assim, ouve-se louvar a um homem, e, embora ausente, começa-se a amá-lo. Entrará o amor no coração do que ouve pela boca do que louva? É certo que não, mas o amor de um se inflama com amor do outro. Por isso se ama ao que é louvado; mas só quando se está persuadido de que o louvor vem de coração sincero, ou quando o louvor é inspirado pelo amor. 
  Assim pois amava eu então aos homens, pelo juízo dos homens, e não pelo teu, meu Deus, em quem ninguém se engana. Contudo, por que não o louvava como se louva a uma auriga famoso ou a um caçador afamado pelas aclamações do povo, mas de modo mais distinto e mais ponderado, tal como eu gostaria de ser louvado? 
  Certamente, eu não gostaria de ser louvado e amado como os comediantes, embora eu também os ame e louve; antes, preferiria mil vezes, permanecer desconhecido a ser louvado dessa maneira, e mesmo ser odiado a ser amado assim. De que modo convivem em uma alma gostos tão vários e diversos? Como é que amo em outro o que rejeitaria e afastaria para longe de mim, sendo ambos homens? Aprecia-se um bom cavalo, sem que se queira ser um cavalo, se isso fosse possível. Mas de um histrião não se pode dizer o mesmo, pois tem a mesma natureza que nós. Logo, amo em um homem o que teria horror de ser, embora também eu seja homem?
Grande abismo é o homem, cujos cabelos tu, Senhor, tens contados; e não se perde um sem que tu o saibas; e, contudo, mais fáceis de contar são seus cabelos que suas paixões e os movimentos de seu coração. 
  Mas aquele orador era do número dos que eu amava a ponto de desejar ser como ele; mas eu andava errante por meu orgulho e era arrastado por toda espécie de vento, embora em segredo fosse governado por ti. E como sei, e como te confesso com tanta certeza que o amava mais por amor dos que o louvavam do que pelos méritos que lhe valiam esses louvores? 
  Se em vez de o louvarem aquelas mesmas pessoas o criticassem, e se me contassem dele as mesmas coisas, mas com censura e desprezo, certamente não me entusiasmaria por ele; não obstante, os fatos não seriam diferentes e nem o homem outro, mas unicamente os sentimentos dos narradores.
  Eis onde jaz enferma a alma que ainda não se apoiou na firmeza da verdade. É levada e trazida, atirada e rechaçada, segundo os sopros das línguas que ventam dos peitos dos que opinam! E de tal modo a luz lhe é toldada, que não distingue a verdade, apesar de estar ela à nossa vista.
  Para mim era importante que aquele homem conhecesse minhas palavras e meus trabalhos. Se ele os aprovasse, me entusiasmaria ainda mais por ele; mas se os reprovasse, meu coração fútil e vazio de tua firmeza, se lastimaria. Contudo, meu prazer era pensar e refletir no problema do belo e do conveniente, assunto do livro que lhe dedicara, admirando-o na minha imaginação, mesmo que ninguém mais o louvasse. 

CAPÍTULO XV 
Os primeiros livros


  Mas não atinava com a chave de tuas artes em tão grandes obras, ó Deus onipotente, único criador de maravilhas. Vagava minha alma pelas formas corpóreas, e definia o belo como o que agrada por si mesmo, e o conveniente como o que agrada por sua acomodação a outra coisa, e apoiava essa distinção com exemplos tomados dos corpos. 
  Daqui passei à natureza da alma, mas o falso conceito que tinha das coisas espirituais não me permitia perceber a verdade. A própria força da verdade saltava-me aos olhos, mas logo eu afastava da realidade incorpórea meu espírito inquiridor, voltando-me para as figuras, as cores e as grandezas materiais. E como não podia ver nada semelhantes na alma, julgava que tampouco seria possível ver minha alma. 
  Mas, como eu amava a paz da virtude, e aborrecia a discórdia do vício, notava naquela certa unidade e neste certa desunião; parecia-me que residisse nessa unidade a alma racional, a essência da verdade e do sumo bem. Na desunião, via eu não sei que substância de vida irracional e a natureza do sumo mal, que não era apenas substância, mas também verdadeira vida. Todavia não procedia de ti, meu Deus, de  quem procedem todas as coisas. E chamava àquela unidade mônada, como alma sem sexo, e a esta multiplicidade díada, como a ira nos crimes, a concupiscência nas paixões, sem saber o que dizia. Ignorava então, ainda não havia aprendido que o mal não é substância alguma, nem que nosso espírito não é o bem soberano e imutável. 
  Assim como se cometem crimes quando o movimento do espírito é vicioso e se atira insolente e turbulento, e se cometem infâmias quando o afeto da alma, fonte dos prazeres carnais, é imoderado, assim os erros e falsas opiniões contaminam a vida se a alma racional está viciada, como estava a minha então. Ignorava que ela deveria ser ilustrada por outra luz para participar da verdade, por não ser da mesma essência da verdade, porque tu, Senhor, alumiarás minha lâmpada; tu, meu Deus, iluminarás minhas trevas, e todos participamos de tua plenitude, porque és a luz verdadeira que ilumina a todo homem que vem a este mundo, e porque em ti não há mudança nem a momentânea obscuridade. 
  Eu me esforçava para me aproximar de ti, mas tu me repelias para que experimentasse a morte, pois resistes aos soberbos. E que maior soberba haveria que afirmar, com inaudita loucura, que eu era da mesma natureza que tu? Porque, sendo eu mutável, e reconhecendo-me tal – pois, se queria ser sábio, era para fazer-me de menos para mais perfeito – preferia, contudo, julgar mutável a ti do que não ser o que tu és. Eis aqui por que era repelido, e por que resistias à minha soberba cheia de vento. 
  Eu não imaginava mais que formas corpóreas; carne, acusava a carne; espírito errante, não conseguia voltar para ti, nem em mim, nem nos corpos; não eram sugeridas por tua verdade, mas imaginadas por minha vaidade, de acordo com os corpos. E dizia aos pequeninos teus fiéis concidadãos, dos quais eu, ignaro, ainda exilado, dizia-lhes eu, tagarela inepto: “Por que a alma, criatura de Deus, se engana?” Mas não queria que dissessem: “E por que Deus se engana?” E defendia antes que tua substância imutável era obrigada a errar, para não confessar que a minha, mutável, se desencaminhara espontaneamente, ou que era castigada pelo erro.
  Teria eu vinte e seis ou vinte e sete anos quando escrevi essas coisas, revolvendo dentro de mim apenas imagens corporais, cujo ruído aturdia os ouvidos do meu coração. Buscava eu aplicá-los – ó doce verdade – à tua melodia interior, quando meditava sobre o belo e o conveniente. Meu desejo era estar diante de ti, e ouvir tua voz, e alegrar-me intensamente com a voz do esposo, mas não o podia, porque o alarido do meu erro me arrebatava para fora e, sob o peso de minha soberba, caía no abismo. Pois ainda não davas gozo e alegria a meus ouvidos, nem exultavam meus ossos, porque ainda não haviam sido humilhados. 

CAPÍTULO XVI
As dez categorias de Aristóteles 


  E que lucro me trazia, tendo eu vinte anos de idade, mais ou menos, e chegando-me às mãos a obra de Aristóteles, intitulada As Dez Categorias – que meu mestre, o retórico de Cartago, e outros, considerados doutos, citavam com grande ênfase e ponderação, fazendo-me suspirar por ela como por algo grandioso e divino – de que me servia ler essa obra e compreendê-la sozinho? Falando com outros, que afirmavam ter conseguido entendê-la só por meio de mestres eruditíssimos, que lha haviam explicado não apenas com palavras, mas também com figuras pintadas na areia, nada me souberam dizer que eu já não tivesse entendido em minha leitura particular. 
  Parecia-me que essa obra falava com muita clareza das substâncias, como o homem, e das coisas que nelas se encerram, como a forma do homem; a estatura, quantos pés mede; o parentesco, de quem é irmão; onde se encontra, quando nasceu; se está de pé, sentado, calçado ou armado; se faz alguma coisa ou se padece de alguma coisa, e, enfim, uma infinidade de relações que se contêm nestes nove gêneros, dos quais citei alguns exemplos, ou no próprio gênero da substância, que são também inumeráveis os que encerra. 
  De que me aproveitava tudo isso, se até me prejudicava? Julgando que naqueles dez predicamentos se achavam compreendidas, de modo absoluto, todas as coisas, esforçava-me por compreender também a ti, meu Deus, Ser maravilhosamente simples e imutável, como se fosses subordinado à tua grandeza e formosura, como se estas estivessem em ti como em seu sujeito,
como se fosses um corpo; tua grandeza e beleza são porém uma mesma coisa contigo, ao contrário dos corpos, que não são grandes ou belos por serem corpos, pois, embora fosses menores e menos belos, nem por isso deixariam de ser corpos. 
  Era pois falso o que pensava de ti, e não verdade; ilusões de minha miséria, e não representação sólida de tua beleza. Havias ordenado, Senhor, e assim se cumpria em mim tua vontade, que a terra me produzisse abrolhos e espinhos, e que eu só conseguisse meu pão à custa de trabalho. 
  De que me aproveitava também ler e compreender por mim mesmo todos os livros que pude ter nas mãos sobre as artes chamadas liberais, se eu era então escravo de minhas más inclinações? Comprazia-me em sua leitura, sem atinar de onde vinha quanto de verdadeiro e certo achava neles; eu estava de costas para a luz, e o rosto, para os objetos iluminados, e por isso meus olhos, que os viam iluminados, não recebiam luz. 
  Tu sabes, Senhor, meu Deus, como sem ajuda de mestre, aprendi tudo o que li, quanto às leis da retórica, da dialética, da geometria, da música e da matemática, porque também a vivacidade da inteligência e a agudeza da intuição são dons teus. Mas não te oferecia por eles sacrifício algum, e por isso causavam-me mais dano do que proveito. Insisti em me apoderar da melhor parte da minha herança, e não guardei em ti minha força, mas afastei-me de ti para uma região longínqua,  a fim de dissipá-la entre as meretrizes de minhas paixões. 
  De que me serviam dons tão preciosos, se não usava bem deles? Só compreendi que aquelas artes eram tão difíceis de entender, mesmo para os estudiosos e sábios, quando me esforçava para expô-las: entre eles, o mais destacado era o que me compreendia menos vagarosamente. 
  Mas qual o fruto disso, se eu te concebia, Senhor meu Deus, ó Verdade, como um corpo luminoso e infinito, e eu como uma parcela desse corpo? Que rematada perversidade! Assim era eu; não me envergonho agora, meu Deus, de confessar tuas misericórdias para comigo, e de te invocar, já que não me envergonhei então de proferir ante os homens tais blasfêmias e de ladrar contra ti. De que me aproveitava, repito, a inteligência ágil para entender aquelas ciências, e para explicar com clareza tantos livros complicados, sem que ninguém mos houvesse explicado, se errava monstruosamente na piedade com sacrílega torpeza? E que prejuízo sofriam teus pequeninos em serem de menor inteligência, se não se afastavam de ti, para que, seguros no ninho da tua Igreja, se cobrissem de penas, e lhes alimentassem as asas da caridade com o sadio alimento da fé? 
  Ó Deus e Senhor nosso! Esperemos, ao abrigo de tuas asas; protege-nos, leva-nos! Tu levarás os pequeninos, e até escarnecidos tu os levarás, nossa firmeza só é firmeza quando está em ti; mas quando depende de nós, então é debilidade. Nosso bem vive sempre em ti, e somos perversos porque nos afastamos de ti. Voltemos já, Senhor, para não nos aniquilarmos, porque em ti vive nosso bem, sem deficiência alguma; sem medo de não o encontrar quando voltarmos para nossa origem e, embora ausentes, nem por isso desaba nossa casa, tua eternidade.    

(Continua...)

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