sábado, 26 de março de 2011

CONFISSÕES DE SANTO AGOSTINHO - Parte 11

LIVRO  QUINTO 

CAPÍTULO I
Oração

  Recebe, Senhor, o sacrifício de minhas Confissões por meio da minha língua, que tu formaste e impeliste a confessar teu nome. Cura todos os meus ossos, e que eles proclamem:
Senhor, quem haverá semelhante ai ti? Na verdade, quem se dirige a ti, nada te informa do que ocorre em si, porque não há coração fechado que se possa subtrair a teu olhar, nem dureza de homem que possa repelir tua mão. Ao contrário, a abrandas quando queres, ou para compadecer-te, ou para castigar; não há quem se esconda de teu calor. Mas, que minha alma te louve para que te ame, a confesse tuas misericórdias para que te louve. Toda a criação não cala teus contínuos louvores, nem os espíritos todos, com sua boca voltada para ti, nem os animais e coisas corporais, pela boca dos que os contemplam. Assim, apoiando-se em tua criação, nossa alma se levanta de sua franqueza, e chega a ti, seu admirável criador, onde encontrará rejuvenescimento e verdadeira fortaleza.

 

CAPÍTULO II
Os que fogem de Deus

  Afastem-se e fujam de ti os irrequietos e os pecadores. Tu os vês e distingues suas sombras. E eis que, apesar deles, todas as continuam belas; somente eles são feios. E que damos te poderiam causar? Ou em que poderia desonrar teu império, justo e íntegro desde os céus até as coisas mais ínfimas? E para onde fugiram, ao fugir de tua presença? E em que lugar não os encontrarás? Fugiram, sim, para não ver-te a ti, que os estás vendo, mas deparam contigo, que não abandonas nada do que criaste; tropeçaram contigo, injustos, e justamente são castigados; subtraindo-se á tua brandura, ofenderam tua santidade, e caíram sob teus rigores.
Evidentemente eles ignoram que estás em toda parte, que nenhum lugar te limita, e que só tu estás presente mesmo nos que se afastam de ti.
  Que se convertam, pois, e te busquem, porque não abandonas tua criatura, como elas abandonaram a seu Criador. Que se convertam, e logo estarás em seus corações, nos corações dos que te confessam, dos que se lançam em ti, dos que choram em teu regaço depois de percorrerem penosos caminhos. E tu, bondoso, enxugarás suas lágrimas; e chorarão ainda mais, mas serão felizes por chorar, porque és tu, Senhor, e nenhum homem de carne e sangue, tu, Senhor, que os criaste, que os consolas e robusteces.
  E onde estava eu quando te buscava? Certamente, estavas diante de mim, mas eu me havia afastado de mim mesmo, e não me encontrava, e muito menos de ti!

CAPÍTULO III
Fausto e o maniqueísmo

  Falarei, na presença de meu deus, do ano vigésimo-nono de minha vida. Já havia chegado a Cartago um dos bispos maniqueus, chamado Fausto, grande laço do demônio, no qual caíam muitos pelo encanto sedutor de sua eloqüência. Apesar de ser exaltada por mim, eu a sabia contudo discernir das verdades que desejava conhecer. Não era o prato do estilo que eu considerava, mas o alimento doutrinal que nele me era servido por aquele famoso Fausto, tao reputado entre os seus.
  Antecedera-o a fama de homem erudito em toda espécie de ciência, e particularmente instruído nas artes liberais. E como eu tinha lido muitas teorias dos filosofo, e as guardava na memória, quis comparar algumas destas com as grandes fábulas do maniqueísmo. Pareciam-me mais prováveis as doutrinas daqueles que chegaram a conhecer a ordem do mundo, embora não tivessem encontrado a seu Criador. Porque tu és grande, Senhor, e pondes os olhos nas coisas humildes, e as elevadas as conheces de longe, e não te aproximas senão dos contritos de coração. Nem és encontrado pelos soberbos, ainda que sua curiosa perícia seja capaz de contar as estrelas do céu e as areias do mar; seja capaz de medir as regiões do céu e de investigar o curso dos astros.
  Com a inteligência e o engenho que lhes deste investigam os segredos do mundo, e descobriram muitos deles; predisseram com muitos anos de antecedência os eclipses do sol e da lua, no dia e hora em que hão de suceder, sem que nunca lhes falhasse o cálculo, acontecendo sempre tal e como haviam anunciado. Deixaram ainda por escrito as leis por eles descobertas, as quais ainda hoje se lêem, e de acordo com elas se prediz em que ano, e em que mês do ano, e em que dia do mês, e em que hora do dia, e em que parte de sua luz se hão de eclipsar o sol e a lua; e tudo acontece como está predito.
  Admiram-se disto os ignorantes, e pasmam. Os sábios gloriam-se disso, e se desvanecem, e com ímpia soberba afastam-se e se eclipsam de tua luz. E, prevendo com exatidão o eclipse vindouro do sol, não vêem o seu, que já está presente. Não procuram religiosamente saber de onde lhes vem o talento com que investigam essas coisas e, achando que tu as criaste, não se entregam a ti, para que conserves o que lhes deste, nem se te oferecem em sacrifício, como se tivessem feito a si mesmos; nem dão morte às suas soberbas, que alçam vôo como aves do céu; nem às suas insaciáveis curiosidades que, como peixes do mar, passeiam pelas secretas sendas do abismo; nem às suas luxúrias, que os igualam aos animais do campo, a fim de que tu, ó Deus, fogo devorador, destruas estas suas preocupações de morte, e os torne a criar para uma vida imortal.
  Mas não conheceram o caminho, o teu Verbo, por quem fizeste as coisas que numeram, e a eles próprios que as numeram, e os sentidos com que percebem as coisas que numeram, e a mente graças à qual as numeram. Tua sabedoria escapa aos números. Teu Filho Unigênito se fez para nós sabedoria, justiça e santificação, e foi contado entre nós, e pagou tributo a César. Não conheceram este caminho, por onde desceriam de seu orgulho até ele, e por ele subiriam até ele; não conheceram, digo, este caminho, e se julgaram mais elevados e resplandecentes que estrelas, e assim vieram a rolar por terra, e seu coração insensato se obscureceu.
  Dizem muitas coisas verdadeiras acerca das criaturas; mas, como não procuram piedosamente a Verdade, isto é, o autor da Criação, não o encontram; e, se o encontram reconhecendo-o por Deus, não o honram como a Deus, nem lhe dão graças. Antes, se desvanecem em seus pensamentos, e se dizem  sábios, atribuindo a si próprios o que é teu.
Atribuem a ti, com perversa cegueira, suas mentiras, a ti, que és a própria Verdade; alteram a glória de um Deus incorruptível, concebendo-a à semelhança e imagem do homem corruptível, das aves, dos quadrúpedes, das serpentes. E convertem tua verdade em mentira, e adoram e servem antes à criatura do que ao Criador.
  Eu porém guardava muitas de suas opiniões verdadeiras acerca das criaturas, cuja explicação encontrava nos números, na ordem dos tempos e no testemunho visível dos astros; comparava-as com os ensinamentos de Manés, que escreveu sobre essas matérias numerosas e delirantes loucuras, sem achar nenhuma explicação para os solstícios e equinócios, os eclipses do sol e da lua, e para outras coisas, enfim, das quais tomara conhecimento pelos livros da sabedoria profana.
  Contudo, exigia-me que acreditasse nessas doutrinas, embora não concordassem absolutamente com meus cálculos e com o que meus olhos testemunhavam.

CAPÍTULO IV
Ciência e ignorância

  Senhor, Deus da verdade, acaso te agradará quem conhecer essas coisas? Infeliz do homem que, conhecendo-a todas, te ignora ti; mas feliz de quem te conhece, embora as ignore!
Quanto ao que conhece a ti e a elas, este não é mais bem-aventurado por causa de seu saber, mas só é feliz por ti, se, conhecendo-te, te glorifica como Deus, e te dá graças, e não se desvanece em seus pensamentos.
  É melhor aquele que reconhece estar na posse de uma árvore e te dá graças por sua utilidade, embora ignore quantos côvados tem de altura e de largura, que o que a mede, e conta todos os seus ramos, mas não a possui, nem conhece, nem ama a seu Criador. Assim o homem fiel, a quem pertencem todas as riquezas do mundo, e que, nada possuindo, possui tudo, por estar unido a ti, a quem servem todas as coisas – embora desconheça até o curso das estrelas da Ursa – e seria insensatez duvidar – é certamente melhor do que o que mede os céus, conta as estrelas e pesa os elementos, mas despreza a ti, que dispuseste todas as coisas em número, peso e medida.
 
CAPÍTULO V
Loucuras de Manés

  Mas, quem pediu a esse Manés que escrevesse sobre coisas cujo conhecimento não é necessário à piedade? Tu disseste ao homem: Vê que a piedade é a sabedoria. Manés podia muito bem ignorar essa piedade ainda que fosse muito instruído nas ciências profanas. Mas, como não as conhecia, e se atrevia desavergonhadamente a ensiná-las, de nenhum modo conhecia a piedade. Pois certamente é vaidade alardear conhecimentos humanos, mesmo verdadeiros, e é piedade confessar-te a ti. Manés, afastando-se dessa regra, falou tanto sobre essas coisas que foi convencido de sua ignorância pelos que as conhecem bem. Donde se viu-se claramente o crédito que merecia em matérias mais obscuras. Ele não queria ser pouco estimado; empenhou-se em convencer aos demais que tinha em si, pessoalmente, e na plenitude de seu poder, o Espírito Santo, que consola e enriquece teus fiéis. Surpreendido em erro ao falar do céu, das estrelas, e do curso do sol e da lua, embora tais coisas não pertençam à religião, claramente deixou ver ser sacrílego seu atrevimento ao ensinar coisas que ignorava e também falsas, e isso com tão insano orgulho a ponto de atribuí-las à pretensa divindade de sua pessoa.
  Quando pois ouço que este ou aquele irmão em Cristo ignora esses problemas, e confunde uma coisa com outra, suporto com paciência seu modo de opinar. Nada vejo que possa ser-lhe prejudicial enquanto não fizer idéia indigna de ti, Senhor, criador do universo, mesmo que ignore até o lugar e a natureza das coisas materiais. O mal seria acreditar que esses problemas pertencem à essência da piedade, e tenazmente atrever-se a afirmar o que ignora. Mas ainda essa fraqueza é suportada nos primórdios da fé pela mãe caridade, até que o homem novo cresça e se transforme em varão perfeito, e não possa ser abalado por qualquer vento de doutrina.
  Quanto a Manés, que se atreveu a se fazer de doutor, de mestre, de guia e cabeça daqueles a quem convertera, de tal forma que os que o seguiam acreditassem seguir não um homem qualquer, mas teu Espírito Santo, quem não julgaria que tão rematada loucura, uma vez demonstrada sua falácia, deveria ser detestada e afastada para bem longe?
  Contudo, eu ainda não estava certo se o que havia lido em outros livros, sobre as mudanças dos dias e das noites, uns mais longos, outros mais curtos, e sobre o suceder-se dos dias e das noites, e dos eclipses do sol e da lua, e outros fenômenos semelhantes, poderiam ser explicados conforme sua doutrina. Caso isso fosse possível, eu ainda ficaria em dúvida quanto ao modo por que se realizariam esses fenômenos; eu anteporia a autoridade de Manés à minha fé, pois o tinha então em conta de santo.

CAPÍTULO VI
A eloqüência de Fausto

  Durante os quase nove anos em que meu espírito errante deu ouvidos aos maniqueus, esperei ansiosamente a vinda de Fausto. Os demais adeptos, com os quais me encontrava casualmente, embaraçados com as objeções que eu lhes fazia, remetiam-me a ele que, à sua chegada, com uma simples entrevista resolveria facilmente todas aquelas dificuldades, e ainda outras maiores que me ocorressem, de maneira claríssima.
  Logo que chegou, pude notar que se tratava de um homem simpático, de fala cativante, e que expunha os temas comuns dos maniqueus, mas com muito mais agrado que eles. Mas, que interessava à minha sede este elegante copeiro de copos preciosos? Eu já tinha os ouvidos fartos daquelas teorias, e nem me pareciam melhores por serem expostas em melhor estilo, nem mais verdadeiras pela elegância de suas formas; nem eu considerava Fausto mais sábio por ter o rosto de mais graça e sua linguagem mais finura. Aqueles que mo haviam recomendado não eram bons juizes: tinham Fausto como homem sábio e prudente somente porque lhes agradava sua facúndia. Diferentes de outra espécie de homens que conheci, que tinham como suspeita a verdade, e não se lhe renderiam se lhes fosse apresentada com linguagem elegante e verbosa.
  Mas eu, meu Deus, nessa época já tinha aprendido de ti, por caminhos ocultos e admiráveis – e creio que eras tu que me ensinavas, porque era verdade, e ninguém pode ser mestre da verdade senão tu, seja qual for a instância e modo dela brilhar – já havia aprendido de ti que não se deve ter por verdadeiro um pensamento porque expresso eloquentemente nem falso porque é dito com rudeza; e que, pelo contrário, um pensamento não é verdadeiro por ser enunciado com simplicidade, nem falso porque sua expressão é elegante; a sabedoria e a ignorância são como alimentos, proveitosos ou nocivos, e as palavras, elegantes ou rudes, como pratos preciosos ou toscos, nos quais se podem servir a ambos.
  A ânsia com a qual por tanto tempo esperara por Fausto, deleitava-se enfim com o ardor e a vivacidade de suas disputas, com os termos apropriados e a facilidade com que lhe vinham à boca para adornar seu pensamento. Deleitava-me, certamente, e eu o louvava e exaltava com os outros, e muito mais ainda do que eles.
  Contudo, na reunião dos ouvintes, me aborrecia não poder apresentar-lhe minhas dúvidas, e dividir com ele os cuidados de meus problemas, conferindo com ele minhas dificuldades em forma de perguntas e respostas. Quando, enfim, o pude fazer, acompanhado de meus amigos, comecei a falar-lhe em ocasião e lugar oportunos para tais discussões, apresentando-lhe algumas objeções das que mais me preocupavam. Vi então que se tratava de homem completamente ignorante das artes liberais, com exceção da gramática, que conhecia de modo superficial.
Contudo como havia lido alguns discursos de Cícero, e pouquíssimos livros de Sêneca, alguns poemas e livros da seita, escritos em bom latim e com arte, e como se exercitava todos os dias em falar, adquirira grande facilidade de expressão, que ele tornava mais agradável e sedutora com o bom emprego de seu talento e certa graça natural.
  Não é assim como estou contando, meu Senhor e meu Deus, juiz de minha consciência?
Diante de ti estão meu coração e minha memória, e que já então guiavas no segredo oculto de tua providência, pondo diante de meus olhos meu erros vergonhosos, para que os visse e odiasse.

CAPÍTULO VII
Desilusão

  Por isso, logo que reconheci sua ignorância naquelas ciências em que o julgava grande conhecedor, comecei a desesperar de que me pudesse esclarecer e resolver as dificuldades que me preocupavam. É bem verdade que ele podia ignorar tais coisas e possuir a verdadeira piedade, contanto que não fosse maniqueísta. Seus livros estão cheios de fábulas intermináveis acerca do céu e dos astros, do sol e da lua, que eu já não esperava, mas que pudesse explicar tão argutamente como eu o desejava, comparando-as com os cálculos matemáticos que eu lera em outras partes, para ver se deveria preferir o que diziam os livros de Manés, ou se, pelo menos, estes apresentavam demonstrações de igual valor.
  Mas, quando apresentei minhas dificuldades à sua consideração e crítica, com grande modéstia, não se atreveu a tomar sobre si tal encargo, pois certamente sabia que ignorava o assunto e não se envergonhava de confessá-lo. Não pertencia à classe de charlatães que me vi obrigado muitas vezes a suportar, que pretendiam ensinar-me tais coisas, mas não me diziam nada. Este, pelo menos, tinha coração, senão dirigido a ti, pelo menos não era incauto consigo mesmo. Não ignorava totalmente sua ignorância, razão pela qual não quis meter-se temerariamente em questões de onde não pudesse sair, ou de mui difícil retirada. Por isso mesmo cresceu aos meus olhos, por ser a modéstia de uma alma que se conhece muito mais bela que o
saber que eu desejava; e em todas as questões mais difíceis e sutis o encontrei sempre com igual ânimo.
  Esfriado pois meu entusiasmo pelos livros de Manés, e muito mais desconfiado dos outros doutores maniqueus, depois que este, tão renomado, se me havia mostrado tão ignorante em muitas das questões que me inquietavam, continuei a tratar com ele, mas por causa de sua paixão pelas letras, que eu ensinava então aos jovens de Cartago. Lia com ele os livros que desejava conhecer por ter ouvido falar deles, ou os que eu considerava apropriados à sua inteligência.    Quanto ao mais, todo o empenho que eu havia posto em progredir na seita desapareceu por completo tão logo conheci este homem, mas não a ponto de me separar definitivamente dela. De fato, não achando na ocasião caminho melhor que aquele por onde cegamente me lançara, resolvi continuar provisoriamente na mesma, até que tivesse a fortuna de encontrar algo melhor e
preferível. Foi assim que aquele Fausto, que havia sido para muitos laço de morte, começava involuntária e inconscientemente a desfazer o laço que me enredara. É que tuas mãos, meu Deus, no segredo de tua providência, não abandonavam minha alma; e minha mãe, dia e noite, não deixava de te oferecer em sacrifício por mim o sangue de seu coração, na forma de suas lágrimas.
  E tu, Senhor, agiste comigo de modo admirável, pois isso foi obra tua, meu Deus. Porque o Senhor é quem dirige os passos do homem  e quem inspira seu caminho. E quem poderá dar-nos a salvação, senão tua mão, que restaura o que fez? 

(Continua...)

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