CAPÍTULO VIII
Viagem a Roma
Também foi obra tua o fato de me convencerem a ir a Roma, para ali lecionar o que ensinava em Cartago. Mas não deixarei de confessar-te o motivo que me moveu, porque também nisso tudo se reconhece a profundidade de teu desígnio, e merece ser meditada e exaltada tua misericórdia sempre presente. O motivo que me levou a Roma não foram maiores lucros e maior dignidade, como me prometiam os amigos que tal me aconselhavam – se bem que essas razões ainda fossem importantes para mim nesse tempo – mas o principal e quase único motivo de minha determinação era saber que os jovens de Roma eram mais sossegados nas classes, em virtude da rigorosa disciplina a que estavam sujeitos. Não lhes era lícito entrar desordenada e impudentemente nas aulas dos professores dos quais não eram alunos, nem sequer eram admitidos sem licença; bem o contrário do que acontecia em Cartago, onde a liberdade dos estudantes é tão vergonhosa e destemperada que invadem cínica e furiosamente as aulas, perturbando a ordem estabelecida pelos mestres em seu próprio interesse. Além disso, com incrível insolência cometem uma quantidade de grosserias, que deveriam ser castigadas pelas leis, se a tradição não os protegesse. Tal costume aliás, apenas manifesta a infelicidade no caso desses jovens, que já praticam como lícito o que jamais será permitido por tua lei eterna. Julgam agir impunemente, quando a própria cegueira é seu maior castigo, padecendo eles males
incomparavelmente maiores do que os que causam aos outros.
Com isso vi-me obrigado, quando professor, a suportar nos outros costumes que não quis adotar como meus quando estudante; e por isso desejava ir para uma cidade na qual, segundo me asseguravam, não aconteciam tais coisas. E tu, Senhor, minha esperança e meu quinhão na terra dos vivos, a fim de que eu mudasse de residência para a saúde de minha alma, me punhas espinhos em Cartago, para arrancar-me dali, e deleites em Roma para atrair-me para lá. Atraías-me por meio de homens que amavam uma vida morta, dos quais uns agiam aqui como loucos, e outros me aliciavam alhures com bens ilusórios. E, para corrigir meus passos, usavas ocultamente da sua e da minha perversidade. Porque os que perturbavam minha paz estavam cegos por uma raiva vergonhosa, e os que me convidavam para mudar sabiam a terra; e eu, que detestava em Cartago uma verdadeira miséria, buscava em Roma uma falsa felicidade.
Mas o verdadeiro motivo de eu sair de Cartago e ir para Roma só tu, ó Deus, o sabias, sem manifestá-lo a mim nem à minha mãe, que chorou amargamente minha partida, seguindo-me até o mar. Mas tive de enganá-la, porque me agarrava com força, instando-me a desistir de meu propósito ou a levá-la comigo. Fingi pois que tinha que me despedir de um amigo que eu não queria abandonar, até que, soprando o vento, ele pudesse navegar. Assim enganei a minha mãe, e a uma tal mãe! Fugi, e tu também me perdoaste este pecado misericordiosamente, salvando-me a mim, cheio de execráveis imundícies, das águas do mar para que chegasse ás águas de tua graça. Purificado com elas, secariam os rios dos olhos de minha mãe, com que todos os dias regava a terra diante de ti, por minha causa.
Contudo, como se recusasse a voltar sem mim, apenas pude persuadi-la a permanecer aquela noite em uma capela próxima a nosso navio, consagrada à memória de São Cipriano. Mas naquela mesma noite parti às escondidas, deixando-a orar e a chorar. E que te pedia ela, meu Deus, com tantas lágrimas, senão que me impedisses de navegar? Mas tu, de visão infinitamente mais ampla, entendendo o intuito de seu desejo, não atendeste ao que ela então te pedia, para fazer em mim aquilo que sempre te pedia.
Soprou o vento, enfunou nossas velas, e logo desvaneceu de nosso olhar a praia, onde de manhã cedo minha mãe, louca de dor, enchia de queixas e de prantos teus ouvidos insensíveis.
Deixaste-me correr atrás de minhas paixões para dar fim ás minhas concupiscências, castigando com o justo flagelo da dor a saudade demasiado carnal de minha mãe. Ela, como todas as mães, e ainda mais que a maioria delas, desejava manter-me junto de si, desconhecendo as grandes alegrias que lhe preparavas com minha ausência. Não o sabia, e por isso chorava e se lamentava, denunciando com esses lamentos a herança que recebera de Eva, buscando em lágrimas ao que com gemidos havia dado à luz.
Por fim, depois de ter-me chamado de mentiroso e de mau filho, pôs-se de novo a rezar por mim e voltou para sua vida habitual, enquanto eu me dirigia a Roma.
CAPÍTULO IX
Enfermo
Em Roma fui colhido pelo flagelo de uma doença corporal, que esteve a ponto de me mandar para a sepultura, carregado de todos os pecados cometidos contra ti, contra mim e contra o próximo; pecados numerosos e pecados, que se somavam à cadeia do pecado original, pelo qual todos morremos em Adão. Ainda não me tinhas perdoado nenhum deles em Cristo, nem ele havia apagado com sua cruz as inimizades que contraíra contigo com meus pecados. E como poderia ele desfazê-los por uma cruz de onde eu não via pender mais que um fantasma? Porque tão falsa me parecia a morte de sua carne como verdadeira a morte de minha alma, e tão verdadeira a morte de sua carne como falsa a vida de minha alma, que disto se não persuadia.
Entretanto, agravando-se as febres, eu estava a ponto de partir e de perecer. Para onde iria eu, se então tivesse que morrer, senão para o fogo e tormentos merecidos por minhas ações, de acordo com a justa ordem por ti estabelecida? Minha mãe tudo ignorava, mas, ausente, orava por mim, e tu, presente em todas as partes onde ela estava, lhe dava ouvidos; exercias tua misericórdia para comigo onde eu estava, restituindo-me a saúde do corpo, ainda que meu coração sacrílego continuasse doente. Nem mesmo estando em tão grande perigo desejei teu batismo. Quando menino eu era melhor, porque então o solicitei à piedade de minha mãe, como já recordei e confessei. Mas, para minha vergonha, eu havia crescido e, em minha loucura, zombava dos remédios de tua medicina, que não me deixou morrer duplamente em tal estado.
Se o coração de minha mãe fosse transpassado por essa ferida, nunca haveria de sarar.
Minha eloqüência não é suficiente para descrever o grande amor que me dedicava, e a que ponto seus cuidados para me gerar em espírito eram piores que os que suportava quando me concebeu pela carne.
Por isso, não vejo como poderia sarar se minha morte em tal estado tivesse ferido as entranhas de seu amor. E onde estariam tantas orações, continuamente repetidas? Estariam em ti, somente em ti. Seria possível que tu, Deus de misericórdia, desprezasses o coração contrito e humilhado de uma viúva casta e sóbria, que frequentemente dava esmolas e servia obsequiosa a teus santos? Que em nenhum dia deixava de levar sua oferenda a teu altar? Que ia duas vezes por dia – de manhã e à tarde – à tua igreja, sem faltar jamais, e não para entreter-se em vãs conversas e cochichos de velhas, mas para te ouvir as palavras e para que a ouvisses em suas orações? Poderias desprezar as lágrimas de uma mãe que não te pedia nem ouro, nem prata, nem bem algum terreno e frágil, mas a salvação da alma de seu filho? Poderias, ó Deus, a quem ela devia tudo o que era, poderias desprezá-la e negar-lhe teu auxílio? De nenhum modo, Senhor; pelo contrário, tu a assistias, e a escutavas, mas pelo caminho determinado por tua providência.
Como poderias enganá-la naquelas visões e respostas, de algumas das quais já falamos, e de outras que passo em silêncio, que ela guardava em seu coração fiel, e que te apresentava em suas orações contínuas como compromissos assinados por tua mão, e que irias cumprir. Porque, por tua misericórdia infinita, gostas de te fazer devedor daqueles a quem perdoas todas as dívidas.
CAPÍTULO X
Agostinho e os erros dos maniqueus
Restabeleceste-me, pois, daquela doença, e então salvaste o filho de tua serva quanto ao corpo a fim de poder, salvá-lo melhor e mais firmemente. Em Roma juntei-me ainda com os que se diziam “santos”, falsos e enganadores. E não só convivia com os ouvintes, entre os quais se contava o dono da casa em que eu adoecera e convalescera – mas também com os que se chamam “eleitos”.
Ainda então me parecia que não éramos nós que pecávamos, mas não sei que estranha natureza que pecava em nós; por isso minha soberba se deleitava em me ter como isento de culpa, e portanto de todo desobrigado a confessar meu pecado, quando agia mal, para que pudesses curar minha alma que te ofendia. Antes, gostava de me desculpar, acusando a não sei que ser estranho que estava em mim, mas que não era eu. Na verdade, eu era tudo aquilo, embora minha impiedade me tivesse dividido contra mim mesmo. E o mais incurável de meu pecado era justamente o não me considerar pecador, preferindo, minha execrável iniqüidade, que fosses vencido em mim, para minha perdição, ó Deus onipotente, a que vencesses minha alma
para minha salvação. Ainda não tinhas posto guarda diante da minha boca, nem porta de proteção ao redor de meus lábios, a fim de que meu coração não se inclinasse para as más palavras, nem buscasse desculpas para seus pecados, como os homens prevaricadores. Eis a razão pela qual eu ainda mantinha relações de amizade com os eleitos dos maniqueus. Mas, desesperado de poder progredir para a verdade dentro daquela falsa doutrina, contentava-me a segui-la até encontrar algo melhor, professando-a já com mais liberdade e frouxidão.
Nesse tempo, veio-me à mente a idéia de que os filósofos chamados acadêmicos haviam sido mais prudentes que os outros, por sustentarem que se deve duvidar de tudo, e que nenhuma verdade pode ser compreendida pelo homem. Julguei então que era esse o seu pensamento, como geralmente se crê, não tendo ainda compreendido suas verdadeiras intenções.
Quanto a meu hospede, não me furtei de admoestar sua excessiva credulidade com que aceitava as fábulas de que estavam cheios os livros dos maniqueus. Todavia, tinha mais amizade com tais homens do que com os estranhos à sua heresia. É verdade que já não a defendia com a antiga animosidade; mas sua familiaridade – em Roma havia muitos deles ocultos – tornava-me bastante negligente para procurar outra coisa. Desesperava eu principalmente de poder achar a verdade em tua Igreja, ó Senhor dos céus e da terra, Criador de todas as coisas visíveis e invisíveis, verdade da qual eles me afastavam. Parecia-me mui torpe acreditar que tinhas figura de carne humana, e que estavas limitado pelos contornos de um corpo como o nosso. E quando queria pensar em meu Deus, não o sabia imaginar senão com massa corpórea – pois não me parecia que pudesse existir algo diferente – esta era a causa principal e quase única de meu erro
inevitável.
Daqui se gerou também minha crença de que o mal tivesse substância, também corpórea, massa negra e disforme, ora espessa – a que chamavam terra – ora tênue e sutil, como o ar, a qual julgava ser um espírito maligno que investia sobre a terra. E visto que minha piedade, por pouca que fosse me obrigava a pensar que um Deus bom não podia criar nenhuma natureza má, eu imaginava duas substâncias antagônicas, ambas infinitas, a do mal um pouco menor, a do bem um pouco maior; e deste princípio pestilencial originavam-se as demais blasfêmias. Com efeito, quando meu espírito se esforçava por voltar à fé católica, era rechaçado porque minha idéia de fé católica não era correta. E me parecia ser mais piedoso, ó Deus, a quem louvam em mim tuas misericórdias, julgar-te infinito por todas as partes, com exceção de um aspecto, a substância do
mal, onde era forçoso reconhecer teus limites, do que julgar-te limitado por todas as partes pelas formas do corpo humano.
Também tinha como melhor admitir que não havias criado nenhum mal – o qual aparecia à minha ignorância não só como substância, mas como substância corpórea, por eu não poder conceber o espírito senão como corpo sutil difundido pelos espaços – do que crer que a natureza do mal, tal como a imaginava, procedesse de ti.
Também supunha que nosso Salvador, teu Filho Unigênito, houvesse surgido, para nos salvar, dessa substância luzidíssima de teu corpo. A seu respeito, nada aceitava senão o que me sugeria minha louca imaginação. E por isso julgava que tal natureza não podia nascer da Virgem Maria sem se ajuntar com a carne, mas não via como poderia juntar-se à carne sem se corromper; por isso tinha medo de acreditar em sua encarnação, para não me ver obrigado a julgá-lo corrompido pela carne.
Sem dúvida agora teus fiéis irão sorrir, branda e amorosamente, se lerem estas minhas confissões; mas eu, realmente, era assim.
CAPÍTULO XI
Desculpas dos maniqueus
Além de tudo, eu já não estava convencido que se pudessem defender os pontos que os maniqueus criticavam em tuas Escrituras. Todavia, desejava por vezes discutir com sinceridade cada um desses pontos com algum varão, grande conhecedor de seus livros, para lhe indagar a opinião. Quando ainda em Cartago, já me despertara o interesse o discurso de um tal Elpídio, que falava e discutia publicamente contra os maniqueus, alegando citações da Sagrada Escritura que não me era fácil refutar.
Por sua vez, as respostas dos maniqueus me pareciam fracas; e mesmo assim não as expunham em público, mas somente entre nós, e muito em segredo, alegando que as Escrituras do Novo Testamento haviam sido falsificadas por não sei quem, com o intuito de mesclar a lei dos judeus com a fé cristã; por isso eles próprios não podiam mostrar nenhum exemplar sem ser apócrifo.
Mas o que principalmente me mantinha cativo, e como que sufocado, eram as tais “substâncias”, que pareciam oprimir-me, e debaixo de cujo peso, arquejante, me era impossível respirar a atmosfera pura e simples de tua verdade.
CAPÍTULO XII
Os estudantes de Roma
Com toda diligência comecei a pôr em prática a tarefa que me levara a Roma, ensinar a arte retórica, e comecei por reunir alguns estudantes em casa, para me tornar conhecido deles, e, por seu intermédio, dos demais.
Mas logo vim a saber, com surpresa, que os estudantes de Roma praticavam outras artimanhas, que eu não havia experimentado na África. Se bem era verdade, como me haviam assegurado, que em Roma não ocorriam as mesmas violências dos jovens corrompidos de Cartago, também me afirmavam que aqui os estudantes, aos grupelhos, deixavam de repente de assistir às aulas, passando para outro professor, com o fim de não pagar o devido salário, faltando assim aos compromissos e desprezando a justiça por amor ao dinheiro.
Também a estes odiava meu coração, porém, não com rancor perfeito, porque na realidade, mas os aborrecia pelo prejuízo que me podiam causar do que pela simples injustiça de seu comportamento. Sem dúvida são infames os que assim agem, e se maculam longe de ti, amando passatempos efêmero e a recompensa de lodo, que imundece as mãos ao ser colhida, agarrando-se a um mundo fugaz, e desprezando a ti, que permaneces eternamente, a ti que chamas e perdoas à alma humana adúltera quando se volta para ti. Ainda agora aborrece-me gente tão depravada e sem modos, embora agora deseje que se corrijam, para que prefiram ao dinheiro a ciência que aprendem, e à essa ciência prefiram a ti, Deus, verdade e abundância de verdadeiro bem e paz castíssima. Mas naquele tempo – confesso – preferia que não fossem maus para meu interesse do que bons por teu amor.
CAPÍTULO XIII
Viagem a Milão, Santo Ambrósio
Por isso, quando da cidade de Milão escreveram ao prefeito de Roma pedindo para lá um professor de retórica, com viagem paga pelo Estado, eu mesmo solicitei esse emprego por intermédio dos mesmos amigos, ébrios com as vaidades dos maniqueus, dos quais ia-me separar. Tanto eles como eu, porém, o ignorávamos. Símaco, então prefeito da cidade, propôs-me o tema de um discurso, e sendo eu aprovado, mandou-me para Milão.
Chegado a Milão, visitei o bispo Ambrosio, famoso na terra por suas qualidades, piedoso servo teu, cuja eloqüência distribuía zelosamente entre teu povo a flor de teu trigo, a alegria do azeite e a sóbria embriaguez de teu vinho. A ele era eu conduzido por ti sem o saber, a fim de que ele me conduzisse a ti conscientemente.
Esse homem de Deus recebeu-me paternalmente, e se interessou muito por minha viagem, como bispo. Comecei a amá-lo; a princípio, não como mestre da verdade, que eu desesperava de achar em tua Igreja, mas pela sua amabilidade para comigo. Ouvia-o atentamente quando pregava ao povo, não com espírito adequado, mas como se quisesse sondar sua eloqüência, para ver se correspondia à sua fama, ou se era maior ou menor que a que se dizia; ficava suspenso das suas palavras, mas indiferente ao conteúdo, coisa que eu até desprezava. Deleitava-me com a suavidade dos sermões, os quais, embora mais eruditos que os de Fausto, eram contudo, menos alegres e envolventes no estilo. Quanto à substância de tais sermões não havia comparação, pois Fausto se perdia por entre as fábulas dos maniqueus, e Ambrosio ensinava claramente a mais sã doutrina da salvação. Mas a salvação anda longe dos pecadores, tal como eu era então. Todavia, insensivelmente e sem o saber, ia-me aproximando dela.
CAPÍTULO XIV
Catecúmeno
Não cuidava eu de aprender o que dizia, interessado apenas em como o dizia – era este gosto frívolo o único que ainda permanecia em mim, perdidas já as esperanças de que se abrisse para o homem o caminho para ti. Todavia, infiltravam-se em meu espírito, juntamente com as palavras que me agradavam, as coisas que desprezava. Já não me era possível discernir umas das outras, e assim, ao abrir meu coração à sua eloqüência, nele entrava ao mesmo tempo e aos poucos, a verdade.
Parece-me, de bom início, que seus ensinamentos podiam ser defendidos e que as afirmações de fé católica – que eu julgava impotente contra os ataques dos maniqueus – não eram absolutamente temerárias, principalmente depois de me serem explicados uma, duas ou mais vezes, as passagens obscuras do Velho Testamento que, interpretadas no sentido literal, me davam a morte. Assim, interpretados no sentido espiritual muitos dos textos daqueles livros, comecei a repreender aquele meu desespero, que me levava a crer na impossibilidade de resistir aos que aborreciam e zombavam da lei e dos profetas.
Contudo, não me julgava na obrigação de segui o caminho dos católicos, só porque também esta fé podia ter defensores doutos, capazes de refutar objeções com eloqüência e lógica. Nem por isso me parecia que devia condenar a fé que antes abraçara, pois as armas de defesa eram iguais. Assim, de um lado a fé católica não me parecia vencida, contudo ainda não me parecia vencedora.
Apliquei então todas as forças de meu espírito para ver se podia de algum modo, com
argumentos decisivos, convencer de falsidade os maniqueus. A verdade é que se eu então tivesse
podido conceber uma substância espiritual, imediatamente todas as invenções daqueles se
esvaeceriam e seriam arrancadas de minha alma. Mas não podia.
Contudo, refletindo e comparando sempre mais o que os filósofos haviam teorizado acerca do mundo material e de toda a natureza sensível, cada vez mais me capacitava de que eram muito mais prováveis as doutrinas destes que as dos maniqueus. Por isso, duvidando de tudo e flutuando por entre as doutrinas, à maneira dos acadêmicos, como os julga a opinião geral, resolvi abandonar os maniqueus, julgando que enquanto tivesse em dúvida não devia permanecer em uma seita à qual eu já antepunha alguns filósofos. Recusava-me, contudo, terminantemente, a confiar-lhes a cura das enfermidades de minha alma, por ser-lhes desconhecido o nome salutar de Cristo.
Por isso tudo, resolvi tornar-me catecúmeno na Igreja Católica, que me havia sido recomendada por meus pais, até que alguma claridade certa viesse dirigir meus passos.
Viagem a Roma
Também foi obra tua o fato de me convencerem a ir a Roma, para ali lecionar o que ensinava em Cartago. Mas não deixarei de confessar-te o motivo que me moveu, porque também nisso tudo se reconhece a profundidade de teu desígnio, e merece ser meditada e exaltada tua misericórdia sempre presente. O motivo que me levou a Roma não foram maiores lucros e maior dignidade, como me prometiam os amigos que tal me aconselhavam – se bem que essas razões ainda fossem importantes para mim nesse tempo – mas o principal e quase único motivo de minha determinação era saber que os jovens de Roma eram mais sossegados nas classes, em virtude da rigorosa disciplina a que estavam sujeitos. Não lhes era lícito entrar desordenada e impudentemente nas aulas dos professores dos quais não eram alunos, nem sequer eram admitidos sem licença; bem o contrário do que acontecia em Cartago, onde a liberdade dos estudantes é tão vergonhosa e destemperada que invadem cínica e furiosamente as aulas, perturbando a ordem estabelecida pelos mestres em seu próprio interesse. Além disso, com incrível insolência cometem uma quantidade de grosserias, que deveriam ser castigadas pelas leis, se a tradição não os protegesse. Tal costume aliás, apenas manifesta a infelicidade no caso desses jovens, que já praticam como lícito o que jamais será permitido por tua lei eterna. Julgam agir impunemente, quando a própria cegueira é seu maior castigo, padecendo eles males
incomparavelmente maiores do que os que causam aos outros.
Com isso vi-me obrigado, quando professor, a suportar nos outros costumes que não quis adotar como meus quando estudante; e por isso desejava ir para uma cidade na qual, segundo me asseguravam, não aconteciam tais coisas. E tu, Senhor, minha esperança e meu quinhão na terra dos vivos, a fim de que eu mudasse de residência para a saúde de minha alma, me punhas espinhos em Cartago, para arrancar-me dali, e deleites em Roma para atrair-me para lá. Atraías-me por meio de homens que amavam uma vida morta, dos quais uns agiam aqui como loucos, e outros me aliciavam alhures com bens ilusórios. E, para corrigir meus passos, usavas ocultamente da sua e da minha perversidade. Porque os que perturbavam minha paz estavam cegos por uma raiva vergonhosa, e os que me convidavam para mudar sabiam a terra; e eu, que detestava em Cartago uma verdadeira miséria, buscava em Roma uma falsa felicidade.
Mas o verdadeiro motivo de eu sair de Cartago e ir para Roma só tu, ó Deus, o sabias, sem manifestá-lo a mim nem à minha mãe, que chorou amargamente minha partida, seguindo-me até o mar. Mas tive de enganá-la, porque me agarrava com força, instando-me a desistir de meu propósito ou a levá-la comigo. Fingi pois que tinha que me despedir de um amigo que eu não queria abandonar, até que, soprando o vento, ele pudesse navegar. Assim enganei a minha mãe, e a uma tal mãe! Fugi, e tu também me perdoaste este pecado misericordiosamente, salvando-me a mim, cheio de execráveis imundícies, das águas do mar para que chegasse ás águas de tua graça. Purificado com elas, secariam os rios dos olhos de minha mãe, com que todos os dias regava a terra diante de ti, por minha causa.
Contudo, como se recusasse a voltar sem mim, apenas pude persuadi-la a permanecer aquela noite em uma capela próxima a nosso navio, consagrada à memória de São Cipriano. Mas naquela mesma noite parti às escondidas, deixando-a orar e a chorar. E que te pedia ela, meu Deus, com tantas lágrimas, senão que me impedisses de navegar? Mas tu, de visão infinitamente mais ampla, entendendo o intuito de seu desejo, não atendeste ao que ela então te pedia, para fazer em mim aquilo que sempre te pedia.
Soprou o vento, enfunou nossas velas, e logo desvaneceu de nosso olhar a praia, onde de manhã cedo minha mãe, louca de dor, enchia de queixas e de prantos teus ouvidos insensíveis.
Deixaste-me correr atrás de minhas paixões para dar fim ás minhas concupiscências, castigando com o justo flagelo da dor a saudade demasiado carnal de minha mãe. Ela, como todas as mães, e ainda mais que a maioria delas, desejava manter-me junto de si, desconhecendo as grandes alegrias que lhe preparavas com minha ausência. Não o sabia, e por isso chorava e se lamentava, denunciando com esses lamentos a herança que recebera de Eva, buscando em lágrimas ao que com gemidos havia dado à luz.
Por fim, depois de ter-me chamado de mentiroso e de mau filho, pôs-se de novo a rezar por mim e voltou para sua vida habitual, enquanto eu me dirigia a Roma.
CAPÍTULO IX
Enfermo
Em Roma fui colhido pelo flagelo de uma doença corporal, que esteve a ponto de me mandar para a sepultura, carregado de todos os pecados cometidos contra ti, contra mim e contra o próximo; pecados numerosos e pecados, que se somavam à cadeia do pecado original, pelo qual todos morremos em Adão. Ainda não me tinhas perdoado nenhum deles em Cristo, nem ele havia apagado com sua cruz as inimizades que contraíra contigo com meus pecados. E como poderia ele desfazê-los por uma cruz de onde eu não via pender mais que um fantasma? Porque tão falsa me parecia a morte de sua carne como verdadeira a morte de minha alma, e tão verdadeira a morte de sua carne como falsa a vida de minha alma, que disto se não persuadia.
Entretanto, agravando-se as febres, eu estava a ponto de partir e de perecer. Para onde iria eu, se então tivesse que morrer, senão para o fogo e tormentos merecidos por minhas ações, de acordo com a justa ordem por ti estabelecida? Minha mãe tudo ignorava, mas, ausente, orava por mim, e tu, presente em todas as partes onde ela estava, lhe dava ouvidos; exercias tua misericórdia para comigo onde eu estava, restituindo-me a saúde do corpo, ainda que meu coração sacrílego continuasse doente. Nem mesmo estando em tão grande perigo desejei teu batismo. Quando menino eu era melhor, porque então o solicitei à piedade de minha mãe, como já recordei e confessei. Mas, para minha vergonha, eu havia crescido e, em minha loucura, zombava dos remédios de tua medicina, que não me deixou morrer duplamente em tal estado.
Se o coração de minha mãe fosse transpassado por essa ferida, nunca haveria de sarar.
Minha eloqüência não é suficiente para descrever o grande amor que me dedicava, e a que ponto seus cuidados para me gerar em espírito eram piores que os que suportava quando me concebeu pela carne.
Por isso, não vejo como poderia sarar se minha morte em tal estado tivesse ferido as entranhas de seu amor. E onde estariam tantas orações, continuamente repetidas? Estariam em ti, somente em ti. Seria possível que tu, Deus de misericórdia, desprezasses o coração contrito e humilhado de uma viúva casta e sóbria, que frequentemente dava esmolas e servia obsequiosa a teus santos? Que em nenhum dia deixava de levar sua oferenda a teu altar? Que ia duas vezes por dia – de manhã e à tarde – à tua igreja, sem faltar jamais, e não para entreter-se em vãs conversas e cochichos de velhas, mas para te ouvir as palavras e para que a ouvisses em suas orações? Poderias desprezar as lágrimas de uma mãe que não te pedia nem ouro, nem prata, nem bem algum terreno e frágil, mas a salvação da alma de seu filho? Poderias, ó Deus, a quem ela devia tudo o que era, poderias desprezá-la e negar-lhe teu auxílio? De nenhum modo, Senhor; pelo contrário, tu a assistias, e a escutavas, mas pelo caminho determinado por tua providência.
Como poderias enganá-la naquelas visões e respostas, de algumas das quais já falamos, e de outras que passo em silêncio, que ela guardava em seu coração fiel, e que te apresentava em suas orações contínuas como compromissos assinados por tua mão, e que irias cumprir. Porque, por tua misericórdia infinita, gostas de te fazer devedor daqueles a quem perdoas todas as dívidas.
CAPÍTULO X
Agostinho e os erros dos maniqueus
Restabeleceste-me, pois, daquela doença, e então salvaste o filho de tua serva quanto ao corpo a fim de poder, salvá-lo melhor e mais firmemente. Em Roma juntei-me ainda com os que se diziam “santos”, falsos e enganadores. E não só convivia com os ouvintes, entre os quais se contava o dono da casa em que eu adoecera e convalescera – mas também com os que se chamam “eleitos”.
Ainda então me parecia que não éramos nós que pecávamos, mas não sei que estranha natureza que pecava em nós; por isso minha soberba se deleitava em me ter como isento de culpa, e portanto de todo desobrigado a confessar meu pecado, quando agia mal, para que pudesses curar minha alma que te ofendia. Antes, gostava de me desculpar, acusando a não sei que ser estranho que estava em mim, mas que não era eu. Na verdade, eu era tudo aquilo, embora minha impiedade me tivesse dividido contra mim mesmo. E o mais incurável de meu pecado era justamente o não me considerar pecador, preferindo, minha execrável iniqüidade, que fosses vencido em mim, para minha perdição, ó Deus onipotente, a que vencesses minha alma
para minha salvação. Ainda não tinhas posto guarda diante da minha boca, nem porta de proteção ao redor de meus lábios, a fim de que meu coração não se inclinasse para as más palavras, nem buscasse desculpas para seus pecados, como os homens prevaricadores. Eis a razão pela qual eu ainda mantinha relações de amizade com os eleitos dos maniqueus. Mas, desesperado de poder progredir para a verdade dentro daquela falsa doutrina, contentava-me a segui-la até encontrar algo melhor, professando-a já com mais liberdade e frouxidão.
Nesse tempo, veio-me à mente a idéia de que os filósofos chamados acadêmicos haviam sido mais prudentes que os outros, por sustentarem que se deve duvidar de tudo, e que nenhuma verdade pode ser compreendida pelo homem. Julguei então que era esse o seu pensamento, como geralmente se crê, não tendo ainda compreendido suas verdadeiras intenções.
Quanto a meu hospede, não me furtei de admoestar sua excessiva credulidade com que aceitava as fábulas de que estavam cheios os livros dos maniqueus. Todavia, tinha mais amizade com tais homens do que com os estranhos à sua heresia. É verdade que já não a defendia com a antiga animosidade; mas sua familiaridade – em Roma havia muitos deles ocultos – tornava-me bastante negligente para procurar outra coisa. Desesperava eu principalmente de poder achar a verdade em tua Igreja, ó Senhor dos céus e da terra, Criador de todas as coisas visíveis e invisíveis, verdade da qual eles me afastavam. Parecia-me mui torpe acreditar que tinhas figura de carne humana, e que estavas limitado pelos contornos de um corpo como o nosso. E quando queria pensar em meu Deus, não o sabia imaginar senão com massa corpórea – pois não me parecia que pudesse existir algo diferente – esta era a causa principal e quase única de meu erro
inevitável.
Daqui se gerou também minha crença de que o mal tivesse substância, também corpórea, massa negra e disforme, ora espessa – a que chamavam terra – ora tênue e sutil, como o ar, a qual julgava ser um espírito maligno que investia sobre a terra. E visto que minha piedade, por pouca que fosse me obrigava a pensar que um Deus bom não podia criar nenhuma natureza má, eu imaginava duas substâncias antagônicas, ambas infinitas, a do mal um pouco menor, a do bem um pouco maior; e deste princípio pestilencial originavam-se as demais blasfêmias. Com efeito, quando meu espírito se esforçava por voltar à fé católica, era rechaçado porque minha idéia de fé católica não era correta. E me parecia ser mais piedoso, ó Deus, a quem louvam em mim tuas misericórdias, julgar-te infinito por todas as partes, com exceção de um aspecto, a substância do
mal, onde era forçoso reconhecer teus limites, do que julgar-te limitado por todas as partes pelas formas do corpo humano.
Também tinha como melhor admitir que não havias criado nenhum mal – o qual aparecia à minha ignorância não só como substância, mas como substância corpórea, por eu não poder conceber o espírito senão como corpo sutil difundido pelos espaços – do que crer que a natureza do mal, tal como a imaginava, procedesse de ti.
Também supunha que nosso Salvador, teu Filho Unigênito, houvesse surgido, para nos salvar, dessa substância luzidíssima de teu corpo. A seu respeito, nada aceitava senão o que me sugeria minha louca imaginação. E por isso julgava que tal natureza não podia nascer da Virgem Maria sem se ajuntar com a carne, mas não via como poderia juntar-se à carne sem se corromper; por isso tinha medo de acreditar em sua encarnação, para não me ver obrigado a julgá-lo corrompido pela carne.
Sem dúvida agora teus fiéis irão sorrir, branda e amorosamente, se lerem estas minhas confissões; mas eu, realmente, era assim.
CAPÍTULO XI
Desculpas dos maniqueus
Além de tudo, eu já não estava convencido que se pudessem defender os pontos que os maniqueus criticavam em tuas Escrituras. Todavia, desejava por vezes discutir com sinceridade cada um desses pontos com algum varão, grande conhecedor de seus livros, para lhe indagar a opinião. Quando ainda em Cartago, já me despertara o interesse o discurso de um tal Elpídio, que falava e discutia publicamente contra os maniqueus, alegando citações da Sagrada Escritura que não me era fácil refutar.
Por sua vez, as respostas dos maniqueus me pareciam fracas; e mesmo assim não as expunham em público, mas somente entre nós, e muito em segredo, alegando que as Escrituras do Novo Testamento haviam sido falsificadas por não sei quem, com o intuito de mesclar a lei dos judeus com a fé cristã; por isso eles próprios não podiam mostrar nenhum exemplar sem ser apócrifo.
Mas o que principalmente me mantinha cativo, e como que sufocado, eram as tais “substâncias”, que pareciam oprimir-me, e debaixo de cujo peso, arquejante, me era impossível respirar a atmosfera pura e simples de tua verdade.
CAPÍTULO XII
Os estudantes de Roma
Com toda diligência comecei a pôr em prática a tarefa que me levara a Roma, ensinar a arte retórica, e comecei por reunir alguns estudantes em casa, para me tornar conhecido deles, e, por seu intermédio, dos demais.
Mas logo vim a saber, com surpresa, que os estudantes de Roma praticavam outras artimanhas, que eu não havia experimentado na África. Se bem era verdade, como me haviam assegurado, que em Roma não ocorriam as mesmas violências dos jovens corrompidos de Cartago, também me afirmavam que aqui os estudantes, aos grupelhos, deixavam de repente de assistir às aulas, passando para outro professor, com o fim de não pagar o devido salário, faltando assim aos compromissos e desprezando a justiça por amor ao dinheiro.
Também a estes odiava meu coração, porém, não com rancor perfeito, porque na realidade, mas os aborrecia pelo prejuízo que me podiam causar do que pela simples injustiça de seu comportamento. Sem dúvida são infames os que assim agem, e se maculam longe de ti, amando passatempos efêmero e a recompensa de lodo, que imundece as mãos ao ser colhida, agarrando-se a um mundo fugaz, e desprezando a ti, que permaneces eternamente, a ti que chamas e perdoas à alma humana adúltera quando se volta para ti. Ainda agora aborrece-me gente tão depravada e sem modos, embora agora deseje que se corrijam, para que prefiram ao dinheiro a ciência que aprendem, e à essa ciência prefiram a ti, Deus, verdade e abundância de verdadeiro bem e paz castíssima. Mas naquele tempo – confesso – preferia que não fossem maus para meu interesse do que bons por teu amor.
CAPÍTULO XIII
Viagem a Milão, Santo Ambrósio
Por isso, quando da cidade de Milão escreveram ao prefeito de Roma pedindo para lá um professor de retórica, com viagem paga pelo Estado, eu mesmo solicitei esse emprego por intermédio dos mesmos amigos, ébrios com as vaidades dos maniqueus, dos quais ia-me separar. Tanto eles como eu, porém, o ignorávamos. Símaco, então prefeito da cidade, propôs-me o tema de um discurso, e sendo eu aprovado, mandou-me para Milão.
Chegado a Milão, visitei o bispo Ambrosio, famoso na terra por suas qualidades, piedoso servo teu, cuja eloqüência distribuía zelosamente entre teu povo a flor de teu trigo, a alegria do azeite e a sóbria embriaguez de teu vinho. A ele era eu conduzido por ti sem o saber, a fim de que ele me conduzisse a ti conscientemente.
Esse homem de Deus recebeu-me paternalmente, e se interessou muito por minha viagem, como bispo. Comecei a amá-lo; a princípio, não como mestre da verdade, que eu desesperava de achar em tua Igreja, mas pela sua amabilidade para comigo. Ouvia-o atentamente quando pregava ao povo, não com espírito adequado, mas como se quisesse sondar sua eloqüência, para ver se correspondia à sua fama, ou se era maior ou menor que a que se dizia; ficava suspenso das suas palavras, mas indiferente ao conteúdo, coisa que eu até desprezava. Deleitava-me com a suavidade dos sermões, os quais, embora mais eruditos que os de Fausto, eram contudo, menos alegres e envolventes no estilo. Quanto à substância de tais sermões não havia comparação, pois Fausto se perdia por entre as fábulas dos maniqueus, e Ambrosio ensinava claramente a mais sã doutrina da salvação. Mas a salvação anda longe dos pecadores, tal como eu era então. Todavia, insensivelmente e sem o saber, ia-me aproximando dela.
CAPÍTULO XIV
Catecúmeno
Não cuidava eu de aprender o que dizia, interessado apenas em como o dizia – era este gosto frívolo o único que ainda permanecia em mim, perdidas já as esperanças de que se abrisse para o homem o caminho para ti. Todavia, infiltravam-se em meu espírito, juntamente com as palavras que me agradavam, as coisas que desprezava. Já não me era possível discernir umas das outras, e assim, ao abrir meu coração à sua eloqüência, nele entrava ao mesmo tempo e aos poucos, a verdade.
Parece-me, de bom início, que seus ensinamentos podiam ser defendidos e que as afirmações de fé católica – que eu julgava impotente contra os ataques dos maniqueus – não eram absolutamente temerárias, principalmente depois de me serem explicados uma, duas ou mais vezes, as passagens obscuras do Velho Testamento que, interpretadas no sentido literal, me davam a morte. Assim, interpretados no sentido espiritual muitos dos textos daqueles livros, comecei a repreender aquele meu desespero, que me levava a crer na impossibilidade de resistir aos que aborreciam e zombavam da lei e dos profetas.
Contudo, não me julgava na obrigação de segui o caminho dos católicos, só porque também esta fé podia ter defensores doutos, capazes de refutar objeções com eloqüência e lógica. Nem por isso me parecia que devia condenar a fé que antes abraçara, pois as armas de defesa eram iguais. Assim, de um lado a fé católica não me parecia vencida, contudo ainda não me parecia vencedora.
Apliquei então todas as forças de meu espírito para ver se podia de algum modo, com
argumentos decisivos, convencer de falsidade os maniqueus. A verdade é que se eu então tivesse
podido conceber uma substância espiritual, imediatamente todas as invenções daqueles se
esvaeceriam e seriam arrancadas de minha alma. Mas não podia.
Contudo, refletindo e comparando sempre mais o que os filósofos haviam teorizado acerca do mundo material e de toda a natureza sensível, cada vez mais me capacitava de que eram muito mais prováveis as doutrinas destes que as dos maniqueus. Por isso, duvidando de tudo e flutuando por entre as doutrinas, à maneira dos acadêmicos, como os julga a opinião geral, resolvi abandonar os maniqueus, julgando que enquanto tivesse em dúvida não devia permanecer em uma seita à qual eu já antepunha alguns filósofos. Recusava-me, contudo, terminantemente, a confiar-lhes a cura das enfermidades de minha alma, por ser-lhes desconhecido o nome salutar de Cristo.
Por isso tudo, resolvi tornar-me catecúmeno na Igreja Católica, que me havia sido recomendada por meus pais, até que alguma claridade certa viesse dirigir meus passos.
(Continua...)
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