quarta-feira, 16 de março de 2011

CONFISSÕES DE SANTO AGOSTINHO - Parte 3

CAPÍTULO XIII
 
Gosto pelo latim

 
  Porque odiava eu as letras gregas, que me ensinavam quando eu era criança? Não o sei, e nem agora o posso explicar. Em compensação, as letras latinas me apaixonavam, não as ensinadas pelos professores primários, mas  a que é explicada pelos chamados gramáticos, porque aquelas primeiras, com as quais se aprende a ler, a escrever e a contar, não me foram menos pesadas e insuportáveis que as gregas. Mas donde podia proceder essa aversão, senão do pecado e da vaidade da vida, porque eu era carne e vento que caminha e não volta?

  Aquelas primeiras letras, pelas quais podia, como ainda faço, chegar e ler tudo o que há escrito e a escrever tudo o que quero, eram melhores e mais úteis que aquelas outras nas quais me obrigavam a decorar os erros de um tal Enéias, esquecido dos meus, e a chorar a morte de Dido, que se suicidou por amor, enquanto isso, eu,miserabilíssimo, suportava a minha própria morte com olhos enxutos, morrendo para ti, ó meu Deus, minha vida!
  Na verdade, que  pode haver de mais miserável do que um infeliz que não se compadece de si mesmo e que, chorando a morte de Dido por amor de Enéias, não chora sua própria morte por falta de amor a ti, ó Deus, luz de meu coração, pão interior de minha alma, virtude fecundante de meu pensamento? Não te amava; prevaricava longe de ti, e ouvia de todas as partes: “Muito
bem! Muito bem!” – porque a amizade deste mundo é adultério contra ti; e se aclamam a alguém dizendo: “Muito bem! Muito bem!” – é para que este não se envergonhe de ser assim. Eu não chorava estas faltas, chorava a morte de Dido “que se suicidou com a espada”, eu procurava as últimas de tuas criaturas, abandonando-te a ti, como terra que eu era, atraída pela terra. Se então me proibissem a leitura de tais coisas, me afligiriam por não ler aquilo que me comovia até a dor.
Não obstante, semelhante loucura é considerada como coisa mais nobre e proveitosa que as letras pelas quais aprendemos a ler e a escrever.
  Mas agora, meu Deus, grite em minha alma tua verdade, e diga: Não é assim, não é assim, antes, aquela primeira instrução é absolutamente superior; pois eu preferiria esquecer todas as aventuras de Enéias, e outras histórias semelhantes, do que o saber ler e escrever. Sei que nas escolas dos gramáticos pendem cortinas às portas; porém, servem menos para velar o
segredo que para encobrir o erro. 
  Não gritem contra mim aqueles mestres a quem já não temo, enquanto confesso a ti os desejos de minha alma, e aborreço dos meus maus caminhos, a fim de amar os teus. Não gritem contra mim os comerciantes da gramática, pois, se eu os interrogar sobre se é verdade que Enéias veio uma vez a Cartago, como afirma o poeta, os néscios responderão que não sabem, e os sábios negarão o fato. Porém, se lhes perguntar como se escreve o nome de Enéias, todos os que estudaram me responderão a mesma coisa, de acordo com a convenção com que os homens fixaram o valor das letras do alfabeto. 
  Do mesmo modo, se lhes perguntar o que seria mais prejudicial para a vida humana: esquecer o ler e o escrever, ou todas as ficções dos poetas, quem não vê o que logo responderia aquele que não estivesse de tudo esquecido de ti? Pequei, pois, em minha infância, ao preferir vãos aos proveitosos, ou para dizer melhor, ao amar àqueles e ao odiar a estes; era para mim uma cantiga odiosa aquele “um e um, dois; dois e dois, quatro; enquanto considerava espetáculo encantador a história do cavalo de madeira cheio de guerreiros e o incêndio de Tróia, “e até a sombra de Creuza”. 
 
CAPÍTULO XIV
 
Aversão ao grego

 
  Por que então aborrecia eu a literatura grega na qual se cantam tais coisas? Porque também Homero é mui habilidoso em tecer essas historietas, dulcíssimo na sua frivolidade, embora para mim, menino, fosse bem amargo. Creio que o mesmo ocorra com Virgilio para os meninos gregos obrigados a estudá-lo, como a mim com relação a Homero. Era a dificuldade de ter de aprender totalmente uma língua estranha que, como fel, aspergia de amargura todas as doçuras das fábulas gregas. 
  Eu ainda não conhecia nenhuma palavra daquela língua, e já me obrigavam com veemência, com crueldades e terríveis castigos, a aprendê-la. Na verdade, eu, ainda criança, também não conhecia nenhuma palavra de latim; contudo, com um pouco de atenção, o aprendi entre o carinho das amas, os gracejos dos que se riam e as alegrias dos que brincavam, sem medo algum nem tormento. Eu o aprendi, sem a pressão dos castigos, impelido unicamente por meu coração desejoso de dar à luz seus sentimentos, e o único caminho para isso era aprender algumas palavras, não dos que as ensinavam, mas do que falavam, em cujos ouvidos ia eu depositando quanto sentia. 
  Por aqui se evidencia claramente que, para instruir, tem mais eficácia e curiosidade livre do que a necessidade inspirada pelo medo. Contudo, os excessos da curiosidade encontram nessa violência um freio segundo tuas leis, ó Deus; que desde as palmatórias dos mestres até os tormentos dos mártires sabem dosar suas salutares amarguras, que nos reconduzem a ti do seio
do pernicioso deleite que de ti nos apartara. 
 
CAPÍTULO XV
 
Oração 

 
  Ouvi, Senhor, minha oração, para que não desfaleça minha alma sob a tua lei, nem me canse em confessar tuas misericórdias, com  as quais me arrancaste de meus perversos caminhos; que tua doçura sobrepuje todas as doçuras que segui, e assim te ame fortissimamente, e abrace tua mão com toda minha alma, e me livres de toda a tentação até o fim dos meus dias.
Pois é, Senhor, meu rei e meu Deus, e a ti consagro quanto falo, escrevo, leio e conto, pois quando aprendia aquelas futilidades, tu eras o que me davas a verdadeira disciplina, e já me perdoaste os pecados de deleite cometidos naquelas vaidades. Muitas palavras úteis aprendi nelas, é verdade; porém, estas também se podem aprender em estudos sérios, e este é o caminho seguro pelo qual deveriam encaminhar as crianças. 
 
CAPÍTULO XVI 
 
O mal da mitologia
 

  Ai de ti, torrente dos hábitos humanos! Quem há que te resista? Quando te secarás? Até quando irás arrastar os filhos de Eva a esse mar imenso e tenebroso, que apenas logram passar os que embarcam sobre o lenho da cruz? Acaso não foi em ti que li a fábula de Júpiter que troveja e adultera? É verdade que não podia fazer tais coisas ao mesmo tempo, mas assim se representou para autorizar a imitação de um verdadeiro adultério com o encantamento de um falso trovão. Contudo, qual é o professor de pênula capaz de ouvir com paciência a um homem nascido do mesmo pó que clama e diz: “Homero imaginava essas ficções e atribuía aos deuses os vícios humanos; porém, eu preferiria que atribuísse a nós as qualidades divinas”. Com mais verdade se diria que Homero imaginou tudo isso, atribuindo qualidades divinas a homens corrompidos, para que os vícios não fossem considerados como tais, e para que todo aquele que os cometesse parecesse que imitava a deuses celestes, e não a homens corrompidos. 
  E contudo, ó torrente infernal, em ti se precipitam os filhos dos homens, com o dinheiro gasto para aprender tais coisas. E consideram acontecimento importante representá-lo, publicamente no Foro, à vista das leis que concedem aos mestres um prêmio, além de seus salários particulares. 
  E ferindo os rochedos de tuas margens, gritas dizendo: “Aqui se aprendem as palavras; aqui se adquire a eloqüência, tao necessária para persuadir e explicar os pensamentos; não poderíamos pois aprender as palavras:  chuva de ouro, regaço, templo celeste, logro e outras mais, escritas em determinada passagem, se Terêncio não nos apresentasse um jovem perdido que se propõe a imitar a luxúria de Júpiter? Contemplava ele uma pintura mural “na qual se
representava o mesmo Júpiter no momento em que, segundo dizem, descia como chuva de ouro sobre o regaço de Dânae, para lograr assim à pobre mulher”.
  E vede como se excitava à luxúria a vista de tão celestial mestre: 
  - Mas que deus fez isto? – diz.
  - Nada menos que aquele que faz retumbar a abóbada do céu com enorme trovão! 
  - E eu, homenzinho, não haveria de fazer o mesmo?
  - Fi-lo, sim, e com muito gosto.
  De modo algum se aprendem com semelhante torpeza aquelas palavras; antes, essas palavras levam mais atrevidamente a cometer a mesma devassidão. Não incrimino as palavras, que são como vasos seletos preciosos, mas condeno o vinho do erro que mestres ébrios nos davam a beber nelas e, se não o bebêssemos, éramos açoitados, sem que pudéssemos apelar para juiz mais sóbrio. 
  E, não obstante, meu Deus, cuja presença me protege desta lembrança, confesso que aprendi estas coisas com gosto e que, miserável, nelas me comprazi, sendo por isso chamado menino de grandes esperanças. 
 
CAPÍTULO XVII
 
Êxitos escolares

 
   Permite-me, Senhor, que diga também algo de meu talento, dádiva tua, e dos desatinos em que o empregava. Propunha-se-me como desafio – coisa mui preocupante para minha alma, tanto pelo louvor ou descrédito, como por medo dos açoites – que repetisse as palavras de Juno, irada e ressentida por não podem “afastar da Itália ao rei dos troianos”, embora jamais tenha sabido que tivessem sido pronunciadas por Juno. Mas obrigavam-nos a errar seguindo os passos das ficções poéticas, e a repetir em prosa o que o poeta havia dito em verso. Era mais elogiado aquele que, conforme a dignidade da pessoa representada, soubesse pintar com mais vivacidade e semelhança, e revestir com palavras mais apropriadas seus afetos de ira ou de dor.
  Mas qual o proveito disso – ó vida verdadeira, meu Deus – de que me servia ser aplaudido por minha declamação mais que todos os meus coetâneos e condiscípulos? Não era tudo aquilo fumo e vento? Acaso não havia outra coisa em que exercitar meu talento e minha língua? Teus louvores, Senhor, teus louvores, consignados nas Escrituras, poderiam soerguer a frágil planta de meu coração, e eu não teria sido arrebatado pela vaidade de vãs quimeras, presa imunda das aves. Com efeito, há diversas maneiras de oferecer sacrifício aos anjos rebeldes. 
 
CAPÍTULO XVIII
 
Leis gramaticais, lei de Deus 

 
  Mas, por que admirar-se que eu me deixasse arrastar pelas vaidades e me afastar de ti, meu Deus, se me propunham como exemplos para imitar a uns homens que se, ao contar alguma boa ação, deslizassem nalgum barbarismo ou solecismo cobriam-me de críticas e, pelo contrário, que eram elogiados por narrar suas torpezas com palavras castiças e apropriadas, de modo eloqüente e elegante, e que os inchavam de vaidade?    Tu vês, Senhor, estas coisas, e te calas compassivo, paciente, cheio de misericórdia  e verdade. Mas te calarás para sempre? Arranca, pois, agora deste espantoso abismo a alma que te busca sedenta de teus deleites, e que te diz de coração: Busquei, Senhor, teu rosto; teu rosto, Senhor, buscarei ainda. Longe está de teu rosto quem anda ocupado com afetos tenebrosos, porque não é com os pés carnais, nem cobrindo distâncias que nos aproximamos ou nos afastamos de ti. Porventura aquele teu filho menor procurou cavalos, ou carros, ou naves, ou voou com asas invisíveis, ou viajou a pé para alcançar aquela região longínqua onde dissipou o que lhes havia dado, ó Pai, meigo ao lhe entregar a substância, e mais carinhoso ainda ao recebê-lo andrajoso? Assim, pois, viver nas paixões da luxúria, é o mesmo que viver em paixões tenebrosas, é viver longe de teu rosto. 
  Olha, meu Senhor e meu Deus, é vê paciente, como costumas ver, de que modo diligente os filhos dos homens observam as regras de ortografia recebidas dos primeiros mestres, e desprezam as leis eternas de salvação perpétua recebidas de ti; de tal modo que, se alguns dos que sabem ou ensinam as regras antigas dos sons pronunciasse a palavra homo, sem aspirar a primeira letra, desagradaria mais aos homens do que se, contra teus preceitos, odiasse a outro homem, sendo este homem. 
  Como se o homem pudesse ter inimigo mais pernicioso que o ódio com que se irrita contra
si mesmo, ou como se pudesse causar a outrem maior dano, perseguindo-o, do que causa a seu próprio coração odiando! Com certeza, não nos é mais íntima a ciência das letras do que a consciência, que manda não fazer a outrem o que não queremos que não nos façam. 
  Oh! Como és misericordioso, tu, que habitando silencioso nos céus, Deus grande e único, espalhas com lei infatigável cegueiras vingadoras sobre as paixões ilícitas! Quando o homem, aspirando à fama de eloqüente, ataca a seu inimigo com ódio feroz diante do juiz, rodeado de grande multidão de homens, toma todo o cuidado para que, por um  lapsus linguae, não se lhe escape um  inter ominibus, sem aspirar o h, sem cuidar que com o furor de seu ódio se tire um homem de entre os homens. 
 
CAPÍTULO XIX
 
Mau perdedor

 
  À beira de tal lodaçal jazia eu, pobre criança, sendo esta a arena em que me exercitava, temendo mais cometer um barbarismo de linguagem do que cuidando de não invejar, se o cometia, aqueles que o tinham evitado.
  Digo e confesso diante de ti, meu Deus, essas misérias, que me angariavam o louvor daqueles cuja simpatia equivalia para mim a uma vida honesta, pois não via o abismo pois não via o abismo de torpeza em que tudo isso me lançara, longe dos teus olhos. A teus olhos quem era mais repelente do que eu? E eu até desagradava tais homens, enganando com infinidade de mentiras a meus criados, mestres e pais por amor dos jogos, por gosto de ver
espetáculos frívolos e o desejo inquieto de os imitar. 
  Também cometia furtos na despensa e na mesa de meus pais, ora impelido pela gula, ora para ter de dar aos meninos para brincar com eles, folguedos que os deleitavam tanto quanto a mim, e que eles me faziam pagar. No jogo, frequentemente, conseguia vitórias fraudulentas, vencido pelo desejo de me sobressair. Contudo, nada havia que eu quisesse mais evitar e que eu repreendesse mais atrozmente se o descobrisse em outros, que o mesmo eu fazia aos demais.
Se acaso eu era o prejudicado, e o acusado ficava furioso, eu não cedia. Será esta a inocência infantil? Não, Senhor, não o é, eu to confesso, meu Deus. Porque essas mesmas coisas que se fazem com os criados e mestres por causa de nozes, bolas e passarinhos, se avultam na maioridade com os magistrados e reis por causa de dinheiro, palácios e servos, do mesmo modo que à palmatória sucedem-se maiores castigos. 
  Assim, quando tu, nosso rei, disseste: Delas é o reino do céus – quiseste sem dúvida louvar na pequenez de sua estatura um símbolo de humildade.

(Continua...)

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