LIVRO QUATRO
CAPÍTULO I
Dos dezenove aos vinte e oito anos
Durante esse período de nove anos – dos dezenove até os vinte e oito anos – fui seduzido e sedutor, enganado e enganador, conforme minhas muitas paixões; publicamente, com aquelas doutrinas que se chamam liberais; ocultamente, com o falso nome de religião, mostrando-me aqui soberbo, ali supersticioso, e em toda parte vaidoso. Ora perseguindo a aura da gloria popular até os aplausos do teatro, os certames poéticos, os torneios de coroas de feno, as bagatelas de espetáculos e a intemperança da luxúria; ora, desejando muito purificar-me dessas imundícies, levando alimento aos chamados “eleitos” e “santos”, para que na oficina de seu estômago fabricasse anjos e deuses que me libertassem. Tais coisas seguia eu e praticava com meus amigos, iludidos comigo e por mim.
Riam-se de mim os arrogantes, e os que ainda não foram prostrados e salutarmente esmagados por ti, meu Deus; mas eu, pelo contrário, hei de confessar diante de ti minhas torpezas para teu louvor. Permite-me, te suplico, e concede-me que me lembre fielmente dos desvios passados de meu erro, e que eu te sacrifique uma vítima de louvor.
De fato, sem ti, que sou eu para mim mesmo senão um guia que conduz ao abismo? Ou que sou eu, quando tudo me corre bem, senão uma criança que suga o leite, e que se alimenta de ti, alimento incorruptível? E que é o homem, seja ele quem for, se é homem?
Riam-se de nós os fortes e poderosos, que nós, débeis e pobres, confessaremos teu santo nome.
CAPÍTULO II
Professor de retórica
Naqueles anos eu ensinava retórica e, movido pela cobiça, vendia a arte de vencer pela loquacidade. Contudo, bem sabes, Senhor, que preferia ter bons discípulos, dos que se chamam “bons”, aos quais ensinava sem rodeios a arte de enganar, não para que usassem dela contra a vida de um inocente, mas para algum dia defender algum culpado. Mas, ó Deus, tu me viste de longe vacilar sobre um caminho escorregadio, viste brilhar, entre espesso fumo, os fulgores da boa fé que eu demonstrava ao ensinar àqueles amantes da vaidade, àqueles pesquisadores de mentiras, eu, seu irmão e semelhante.
Por essa mesma época tive em minha companhia uma mulher, não reconhecida pelo chamado matrimônio legítimo, mas procurada pelo inquieto ardor de minha paixão imprudente; mas era só uma, e eu lhe era fiel. E assim experimentei pessoalmente a distância que há entre o amor conjugal contraído com o fim de ter filhos, e o amor lascivo, no qual a prole também nasce, mas contra o desejo dos pais, embora, uma vez nascida, os obrigue a amá-la.
Lembro-me também de que, querendo participar de um certame de poesia, um arúspide mandou-me indagar que dádiva lhe daria para eu sair vencedor. Mas eu, que abominava aqueles nefandos sortilégios, respondi-lhe que não consentiria que se matasse uma mosca para obter a vitória, mesmo que o prêmio fosse uma coroa de ouro incorruptível; sabia eu que ele teria de matar animais em seus sacrifícios, julgando com tais honras assegurar para mim os votos do demônio.
Mas, confesso, Deus de meu coração, que se repudiei tal crime, não o fiz por amor da tua pureza. Pois ainda não sabia te amar, eu, que sabia conceder apenas esplendores corpóreos. Não é pois verdade que a alma que suspira por semelhantes fábulas não se aniquila longe de ti, e se apóia na falsidade, e se apascenta de vento? Mas eis que, não querendo que se oferecessem sacrifícios aos demônios, eu mesmo me sacrificava a eles com aquela superstição. Com efeito, que significa apascentar ventos, senão apascentar os espíritos diabólicos, isto é, tornarmo-nos, por nossos erros, objeto de seu riso e escárnio?
CAPÍTULO III
A atração da astrologia
Por isso, não cessava de consultar os impostores chamados matemáticos, já que estes não usavam em suas adivinhações de quase nenhum sacrifício, nem dirigiam preces a nenhum espírito o que, consequentemente, é condenado e repelido com razão pela piedade cristã e verdadeira. Porque o bom é confessar-te, Senhor, e dizer-te: Tem misericórdia de mim, e cura minha alma, porque pecou contra ti, e não abusar da tua indulgência para pecar mais livremente, mas ter sempre presente a sentença do Senhor: Eis-te curado: não peques mais, para que te não suceda algo pior – Estas palavras, cujo efeito salutar os astrólogos querem destruir, dizendo: “Oimpulso de pecar vem dos céus; foi Vênus, Saturno ou Marte que fizeram isto” – e tudo para que o homem, que é carne, e sangue, e soberba podridão, se sinta sem culpa, e atribua esta ao criador e ordenador do céu e das estrelas. E quem é este, senão tu, nosso Deus, suavidade e fonte de justiça, que dás a cada um de acordo com suas obras, e não desprezas ao coração contrito e humilhado?
Havia então um varão muito sábio, peritíssimo na arte médica, na qual era celebre; sendo procônsul, pôs com suas próprias mãos sobre minha cabeça insana a coroa da vitória do concurso; foi como procônsul, e não como médico, porque daquela minha enfermidade só tu me podias sarar, pois resistes aos soberbos e dás tua graça aos humildes.
Contudo, deixaste acaso de cuidar de mim também por meio daquele ancião? Ou talvez desistisse de curar minha alma? Tendo-me familiarizado muito com ele, passei a ser assistente assíduo e freqüente de suas conversas, que eram agradáveis e graves, não pela elegância da linguagem, mas pela vivacidade das sentenças. Assim que ficou sabendo, por conversa, que eu me dedicava à leitura dos livros dos astrólogos, admoestou-me benigna e paternalmente a que os deixasse, e a que não gastasse inutilmente nessas quimeras meus cuidados e trabalho, que melhor empregaria em coisas úteis. Acrescentou que também ele havia cultivado aquela arte, a ponto de querer adotá-la, em sua juventude, como profissão para ganhar a vida, pois, se havia entendido Hipócrates, podia também entender aqueles livros; por fim, deixara aqueles estudos pelos da medicina, por causa da sua falsidade, não querendo, como homem sério, ganhar o pão enganando os outros. “Mas tu, disse-me ele – que tens para manter entre os homens tuas aulas de retórica, segues essas mentiras não por necessidade, mas por mera curiosidade; mais um motivo para que acredites no que te digo, pois cuidei de aprendê-la tão perfeitamente que quis viver apenas de seu exercício”.
Indaguei-lhe então por que muitas das coisas prognosticadas pela tal ciência se revelavam verdadeiras, respondeu-me, como pôde, que a força do acaso está espalhada por toda a natureza. “Se alguém – dizia ele – consultando as vezes as páginas de um poeta qualquer, encontra um verso que, apesar do poeta pensar em coisas muito diversas quando o compôs, adapta-se admiravelmente ao assunto que o preocupa; assim pois nada tem de estranho que a alma humana, movida por instinto superior, inconsciente do que se passa no seu íntimo, diga, não por arte, mas por sorte, algo que corresponda aos atos e gestos do consulente”.
E isto, Senhor, me ensinou ele, ou melhor, me ensinaste por teu intermédio, e delineaste em minha memória o que eu mesmo mais tarde devia procurar. Mas então, nem ele, nem meu caríssimo Nebrídio, jovem muito bom e casto, que zombava de toda aquela arte divinatória, puderam me convencer a abandoná-la, porque ainda impressionava-me mais a autoridade daqueles autores. Não tinha eu encontrado ainda o argumento evidente que procurava, que me demonstrasse sem ambigüidade que os presságios acertados dos astrólogos são obra da sorte ou casualidade, e não da arte de observar os astros.
CAPÍTULO IV
A morte do amigo
Por aqueles anos, quando comecei a ensinar em minha cidade natal, conheci um amigo, a quem amei em demasia por ser meu companheiro de estudos, de minha idade, e por estarmos ambos na flor da juventude. Juntos fomos criados quando crianças, juntos íamos à escola, juntos havíamos brincado. Mas nessa época não era amigo tão íntimo como o foi depois, embora também não o fosse tanto quanto o exige a verdadeira amizade, uma vez que esta só existe entre os que unes por meio da caridade, derramada em nossos corações pelo Espírito Santo que nos foi dado.
Contudo, aquela amizade, aquecida ao calor de estudos semelhantes era-me sumamente grata. Consegui até afastá-lo da verdadeira fé, pouco profunda e arraigada em sua adolescência, arrastando-o para as fábulas supersticiosas e prejudiciais, razão das lágrimas de minha mãe.
Esse homem já errava em espírito comigo, e minha alma não podia viver sem ele.
Mas eis que, seguindo de perto no encalço de teus servos fugitivos, ó Deus das vinganças, que és a um tempo fonte de misericórdia, e nos converte a ti por estranhos caminhos, eis que tu o arrebataste desta vida, quando eu apenas havia gozado um ano de sua amizade, mais doce para mim que todas as doçuras da minha vida.
Quem poderá enumerar teus louvores, mesmo limitando-se ao que experimentou em si mesmo? Que fizeste então, meu Deus! E quão impenetrável é o abismo de teus juízos! Lutando meu amigo contra a febre, ficou por muito tempo sem sentidos, banhado no suor da morte; e, como temessem por sua vida, batizaram-no sem que ele o soubesse, com o que não me importei, convencido que estava de que seu espírito reteria melhor aquilo que eu lhe havia inculcado do que o sinal que recebera sobre o corpo inconsciente.
A realidade, contudo, foi muito outra. Melhorando, e estando fora de perigo, logo que lhe pude falar – e o fiz logo que ele o pôde, e como dependíamos mutuamente um do outro eu não me afastava do seu lado – tentei rir-me em sua presença do batismo, julgando que também ele zombaria comigo de um batismo recebido sem conhecimento nem sentidos, mas ele já sabia que o havia recebido. Olhando-me então com horror, como a um inimigo, admoestou-me com admirável e repentina franqueza, dizendo-me que se queria continuar a ser seu amigo deixasse de tais palavras. Admirado e perturbado, reprimi toda minha emoção, esperando que convalescesse primeiro, para, recobradas as forças, estar disposto a discutir comigo o que quisesse. Mas tu, Senhor, livraste-o de minha louca amizade, guardando-o em ti para o meu consolo, pois, poucos dias depois, na minha ausência, voltaram-lhe as febres e morreu.
Que dor fez anoitecer o meu coração! Tudo o que via era morte para mim. a pátria me era um suplício, e a casa paterna tormento insuportável, e tudo o que o lembrava transformava-se para mim em crudelíssimo martírio. Buscavam-no por toda parte meus olhos, e o mundo não mo devolvia. Cheguei a odiar todas as coisas, porque nada o continha, e ninguém mais me podia
dizer como antes, quando chegava depois de alguma ausência: “Ali vem ele”. Transformara-memesmo num grande problema. Perguntava à minha alma porque andava triste, e se perturbava tanto, e ela não sabia o que responder-me. E se eu lhe dizia: “Espera em Deus” – minha alma não me obedecia, e com razão, porque para mim, era mais real e melhor o amigo querido que perdera, que o fantasma em que mandava tivesse esperança. Só o pranto me era doce. Ocupava o lugar de meu amigo nas delicias de meu coração.
CAPÍTULO V
O conforto das lágrimas
E agora, Senhor, que essas coisas já passaram, agora que o tempo sarou minha ferida, poderei ouvir de ti, que és a própria verdade, aproximando o ouvido de meu coração de tua boca, o motivo por que o pranto é doce aos desgraçados? Acaso, mesmo presente em toda parte, repeliste para longe de ti nossa miséria, permanecendo imutável em ti, enquanto deixas que nos envolvamos em nossas provações? E, contudo, se nossos lamentos não chegarem a teus ouvidos, não haverá para nós esperança alguma.
Mas, por que motivo dos gemidos, do choro, dos suspiros e das queixas colhe-se como fruto doce do amargor da vida? Esperamos que nos ouça? Virá daí a doçura? Isso acontece na oração que leva em si o desejo de chegar a ti; porém, poder-se-á dizer o mesmo da dor da perda ou do pranto que então me avassalavam?
Eu não esperava ressuscitar meu amigo com minhas lágrimas, mas limitava-me a me condoer e a chorar minha miséria, pois eu havia perdido minha alegria.
Ou será que o pranto, que é amargo em si mesmo, se torna um deleite quando, pelo fastio, aborrecemos os prazeres que antes nos eram gratos?
CAPÍTULO VI
Inconsolável
Mas para que falar dessas coisas, se agora não é tempo de investigar, mas de me confessar a ti? Eu era miserável, como o é toda alma prisioneira do amor pelas coisas temporais; se sente despedaçar quando as perde, sentindo então sua miséria, que a torna miserável antes mesmo de as perder. Assim é como eu era então e, chorando muito amargamente, descansava na amargura. E como era miserável! Contudo, mais que o amigo caríssimo, eu amava minha vida miserável, porque embora desejasse mudá-la, não queria perdê-la como ao amigo, não sei se gostaria de perdê-la por ele, como se conta de Orestes e Pílades – se não é ficção – que queriam morrer um pelo outro, porque para eles viver separados era pior que a morte. Mas não sei que novo sentimento nascera em mim, muito contrário a este: sentia pesado tédio de viver, e ao mesmo tempo tinha medo de morrer. Creio que quanto mais amava o amigo tanto mais odiava e temia a morte, como inimigo feroz que mo havia arrebatado; pensava que ela acabaria de repente com todos os homens, como o fizera com ele. Este era meu estado de espírito, pelo que me lembro.
Meu Deus, eis aqui meu coração, ei seu conteúdo! Olha para o meu passado, porque sei, esperança minha, que me purificas da impureza desses afetos, atraindo para ti meus olhos, e libertando meus pés dos laços que me aprisionavam. Maravilhava-me de que sobrevivessem os outros mortais a seus amados se nunca houvessem de morrer; e mais me maravilhava ainda de que, morto ele, eu continuasse a viver, porque eu era outro ele. Bem disse um poeta quando chamou ao amigo “metade da sua alma”. E eu senti que minha alma e a sua não eram mais que uma em dois corpos, e por isso causava-me horror a vida, porque não queria viver pela metade; e ao mesmo tempo tinha muito medo de morrer, para que não morresse de todo aquele a quem eu tanto amara.
CAPÍTULO VII
De Tagaste para Cartago
Ó loucura, que não sabe amar os homens humanamente! Ó homem insensato, que sofre desmedidamente os reveses humanos! Assim era eu então, e assim agitava-me, suspirava, chorava, perturbava-me, e não encontrava descanso nem conselho. Trazia a alma em farrapos e ensangüentada, indócil ao meu governo, e eu não encontrava lugar onde a pudesse depor. Nem os bosques amenos, nem os jogos e cantos, nem os lugares suavemente perfumados, nem os banquetes suntuosos, nem os prazeres da alcova e do leito, nem, finalmente, os livros e os versos podiam dar-lhe descanso. Tudo me causava horror, até a própria luz. Tudo o que não era o que ele era, era-me insuportável e odioso, exceto gemer e chorar, pois, somente nisto achava algum repouso. E se minha alma deixava de chorar, logo pesava sobre mim o grande fardo da desgraça.
A ti, Senhor, deveria ser elevada, para ter cura. Eu o sabia, mas não o queria nem podia. Tanto mais que, ao pensar em ti, não tinha em mente algo sólido e firme, mas um fantasma, o meu erro. Se nele tentava descansar minha alma, logo deslizava como quem pisa em falso, e caía de novo sobre mim. Eu era para mim mesmo uma infeliz morada, na qual era ruim e da qual não podia sair. E para onde iria meu coração, fugindo de si mesmo? Para onde fugir de mim mesmo?
Para onde não me seguiria?
Por isso fugi de minha pátria, porque meus olhos buscariam menos meu amigo onde não estavam acostumados a vê-lo. E assim me fui de Tagaste para Cartago.
CAPÍTULO VIII
O consolo do tempo e da amizade
O tempo não corre debalde, nem passa inutilmente sobre nossos sentidos; antes, causa na alma efeitos maravilhosos. Assim vinha e passava, dias após dias, e passando deixava em mim novas esperanças e novas recordações; pouco a pouco restituía-me a meus prazeres de outrora, a que ia cedendo minha dor. Substituíam-na não novas dores, mas sementes de novas dores.
Mas, por que me penetrara aquela dor tão profundamente, até o mais íntimo de meu ser, senão porque derramei minha alma sobre a areia, amando a um mortal como se não o fora? O que mais me confortava e alegrava eram sobretudo as consolações de outros amigos, com os quais partilhava o amor para o que amava tem teu lugar, isto é, uma fábula enorme, uma longa mentira, cujo contato impuro corrompia nossa mente, arrastada pelo prurido de ouvir aquilo que a agradava; fábula esta que não morria para mim, ainda que morresse algum de meus amigos.
Outros prazeres havia neles que cativavam mais fortemente minha alma, como conversar, rir, agradar-nos mutuamente com amabilidade, ler juntos livros bem escritos, gracejar uns com os outros e divertir-nos juntos; às vezes discutir, mas sem ódio, como quando discordamos de nós mesmos para, com tais discórdias muito raras, temperar as muitas conformidades; ensinar ou aprender reciprocamente muitas coisas, suspirar impacientes pelos ausentes e receber alegres os recém-chegados. Estes sinais, e outros semelhantes, que procedem de corações que se amam, e que se manifestam no rosto, na fala, nos olhos, e em mil outros gestos graciosos, inflamavam nossas almas, como em uma centelha, fazendo de muitas uma só.
(Continua...)
CAPÍTULO I
Dos dezenove aos vinte e oito anos
Durante esse período de nove anos – dos dezenove até os vinte e oito anos – fui seduzido e sedutor, enganado e enganador, conforme minhas muitas paixões; publicamente, com aquelas doutrinas que se chamam liberais; ocultamente, com o falso nome de religião, mostrando-me aqui soberbo, ali supersticioso, e em toda parte vaidoso. Ora perseguindo a aura da gloria popular até os aplausos do teatro, os certames poéticos, os torneios de coroas de feno, as bagatelas de espetáculos e a intemperança da luxúria; ora, desejando muito purificar-me dessas imundícies, levando alimento aos chamados “eleitos” e “santos”, para que na oficina de seu estômago fabricasse anjos e deuses que me libertassem. Tais coisas seguia eu e praticava com meus amigos, iludidos comigo e por mim.
Riam-se de mim os arrogantes, e os que ainda não foram prostrados e salutarmente esmagados por ti, meu Deus; mas eu, pelo contrário, hei de confessar diante de ti minhas torpezas para teu louvor. Permite-me, te suplico, e concede-me que me lembre fielmente dos desvios passados de meu erro, e que eu te sacrifique uma vítima de louvor.
De fato, sem ti, que sou eu para mim mesmo senão um guia que conduz ao abismo? Ou que sou eu, quando tudo me corre bem, senão uma criança que suga o leite, e que se alimenta de ti, alimento incorruptível? E que é o homem, seja ele quem for, se é homem?
Riam-se de nós os fortes e poderosos, que nós, débeis e pobres, confessaremos teu santo nome.
CAPÍTULO II
Professor de retórica
Naqueles anos eu ensinava retórica e, movido pela cobiça, vendia a arte de vencer pela loquacidade. Contudo, bem sabes, Senhor, que preferia ter bons discípulos, dos que se chamam “bons”, aos quais ensinava sem rodeios a arte de enganar, não para que usassem dela contra a vida de um inocente, mas para algum dia defender algum culpado. Mas, ó Deus, tu me viste de longe vacilar sobre um caminho escorregadio, viste brilhar, entre espesso fumo, os fulgores da boa fé que eu demonstrava ao ensinar àqueles amantes da vaidade, àqueles pesquisadores de mentiras, eu, seu irmão e semelhante.
Por essa mesma época tive em minha companhia uma mulher, não reconhecida pelo chamado matrimônio legítimo, mas procurada pelo inquieto ardor de minha paixão imprudente; mas era só uma, e eu lhe era fiel. E assim experimentei pessoalmente a distância que há entre o amor conjugal contraído com o fim de ter filhos, e o amor lascivo, no qual a prole também nasce, mas contra o desejo dos pais, embora, uma vez nascida, os obrigue a amá-la.
Lembro-me também de que, querendo participar de um certame de poesia, um arúspide mandou-me indagar que dádiva lhe daria para eu sair vencedor. Mas eu, que abominava aqueles nefandos sortilégios, respondi-lhe que não consentiria que se matasse uma mosca para obter a vitória, mesmo que o prêmio fosse uma coroa de ouro incorruptível; sabia eu que ele teria de matar animais em seus sacrifícios, julgando com tais honras assegurar para mim os votos do demônio.
Mas, confesso, Deus de meu coração, que se repudiei tal crime, não o fiz por amor da tua pureza. Pois ainda não sabia te amar, eu, que sabia conceder apenas esplendores corpóreos. Não é pois verdade que a alma que suspira por semelhantes fábulas não se aniquila longe de ti, e se apóia na falsidade, e se apascenta de vento? Mas eis que, não querendo que se oferecessem sacrifícios aos demônios, eu mesmo me sacrificava a eles com aquela superstição. Com efeito, que significa apascentar ventos, senão apascentar os espíritos diabólicos, isto é, tornarmo-nos, por nossos erros, objeto de seu riso e escárnio?
CAPÍTULO III
A atração da astrologia
Por isso, não cessava de consultar os impostores chamados matemáticos, já que estes não usavam em suas adivinhações de quase nenhum sacrifício, nem dirigiam preces a nenhum espírito o que, consequentemente, é condenado e repelido com razão pela piedade cristã e verdadeira. Porque o bom é confessar-te, Senhor, e dizer-te: Tem misericórdia de mim, e cura minha alma, porque pecou contra ti, e não abusar da tua indulgência para pecar mais livremente, mas ter sempre presente a sentença do Senhor: Eis-te curado: não peques mais, para que te não suceda algo pior – Estas palavras, cujo efeito salutar os astrólogos querem destruir, dizendo: “Oimpulso de pecar vem dos céus; foi Vênus, Saturno ou Marte que fizeram isto” – e tudo para que o homem, que é carne, e sangue, e soberba podridão, se sinta sem culpa, e atribua esta ao criador e ordenador do céu e das estrelas. E quem é este, senão tu, nosso Deus, suavidade e fonte de justiça, que dás a cada um de acordo com suas obras, e não desprezas ao coração contrito e humilhado?
Havia então um varão muito sábio, peritíssimo na arte médica, na qual era celebre; sendo procônsul, pôs com suas próprias mãos sobre minha cabeça insana a coroa da vitória do concurso; foi como procônsul, e não como médico, porque daquela minha enfermidade só tu me podias sarar, pois resistes aos soberbos e dás tua graça aos humildes.
Contudo, deixaste acaso de cuidar de mim também por meio daquele ancião? Ou talvez desistisse de curar minha alma? Tendo-me familiarizado muito com ele, passei a ser assistente assíduo e freqüente de suas conversas, que eram agradáveis e graves, não pela elegância da linguagem, mas pela vivacidade das sentenças. Assim que ficou sabendo, por conversa, que eu me dedicava à leitura dos livros dos astrólogos, admoestou-me benigna e paternalmente a que os deixasse, e a que não gastasse inutilmente nessas quimeras meus cuidados e trabalho, que melhor empregaria em coisas úteis. Acrescentou que também ele havia cultivado aquela arte, a ponto de querer adotá-la, em sua juventude, como profissão para ganhar a vida, pois, se havia entendido Hipócrates, podia também entender aqueles livros; por fim, deixara aqueles estudos pelos da medicina, por causa da sua falsidade, não querendo, como homem sério, ganhar o pão enganando os outros. “Mas tu, disse-me ele – que tens para manter entre os homens tuas aulas de retórica, segues essas mentiras não por necessidade, mas por mera curiosidade; mais um motivo para que acredites no que te digo, pois cuidei de aprendê-la tão perfeitamente que quis viver apenas de seu exercício”.
Indaguei-lhe então por que muitas das coisas prognosticadas pela tal ciência se revelavam verdadeiras, respondeu-me, como pôde, que a força do acaso está espalhada por toda a natureza. “Se alguém – dizia ele – consultando as vezes as páginas de um poeta qualquer, encontra um verso que, apesar do poeta pensar em coisas muito diversas quando o compôs, adapta-se admiravelmente ao assunto que o preocupa; assim pois nada tem de estranho que a alma humana, movida por instinto superior, inconsciente do que se passa no seu íntimo, diga, não por arte, mas por sorte, algo que corresponda aos atos e gestos do consulente”.
E isto, Senhor, me ensinou ele, ou melhor, me ensinaste por teu intermédio, e delineaste em minha memória o que eu mesmo mais tarde devia procurar. Mas então, nem ele, nem meu caríssimo Nebrídio, jovem muito bom e casto, que zombava de toda aquela arte divinatória, puderam me convencer a abandoná-la, porque ainda impressionava-me mais a autoridade daqueles autores. Não tinha eu encontrado ainda o argumento evidente que procurava, que me demonstrasse sem ambigüidade que os presságios acertados dos astrólogos são obra da sorte ou casualidade, e não da arte de observar os astros.
CAPÍTULO IV
A morte do amigo
Por aqueles anos, quando comecei a ensinar em minha cidade natal, conheci um amigo, a quem amei em demasia por ser meu companheiro de estudos, de minha idade, e por estarmos ambos na flor da juventude. Juntos fomos criados quando crianças, juntos íamos à escola, juntos havíamos brincado. Mas nessa época não era amigo tão íntimo como o foi depois, embora também não o fosse tanto quanto o exige a verdadeira amizade, uma vez que esta só existe entre os que unes por meio da caridade, derramada em nossos corações pelo Espírito Santo que nos foi dado.
Contudo, aquela amizade, aquecida ao calor de estudos semelhantes era-me sumamente grata. Consegui até afastá-lo da verdadeira fé, pouco profunda e arraigada em sua adolescência, arrastando-o para as fábulas supersticiosas e prejudiciais, razão das lágrimas de minha mãe.
Esse homem já errava em espírito comigo, e minha alma não podia viver sem ele.
Mas eis que, seguindo de perto no encalço de teus servos fugitivos, ó Deus das vinganças, que és a um tempo fonte de misericórdia, e nos converte a ti por estranhos caminhos, eis que tu o arrebataste desta vida, quando eu apenas havia gozado um ano de sua amizade, mais doce para mim que todas as doçuras da minha vida.
Quem poderá enumerar teus louvores, mesmo limitando-se ao que experimentou em si mesmo? Que fizeste então, meu Deus! E quão impenetrável é o abismo de teus juízos! Lutando meu amigo contra a febre, ficou por muito tempo sem sentidos, banhado no suor da morte; e, como temessem por sua vida, batizaram-no sem que ele o soubesse, com o que não me importei, convencido que estava de que seu espírito reteria melhor aquilo que eu lhe havia inculcado do que o sinal que recebera sobre o corpo inconsciente.
A realidade, contudo, foi muito outra. Melhorando, e estando fora de perigo, logo que lhe pude falar – e o fiz logo que ele o pôde, e como dependíamos mutuamente um do outro eu não me afastava do seu lado – tentei rir-me em sua presença do batismo, julgando que também ele zombaria comigo de um batismo recebido sem conhecimento nem sentidos, mas ele já sabia que o havia recebido. Olhando-me então com horror, como a um inimigo, admoestou-me com admirável e repentina franqueza, dizendo-me que se queria continuar a ser seu amigo deixasse de tais palavras. Admirado e perturbado, reprimi toda minha emoção, esperando que convalescesse primeiro, para, recobradas as forças, estar disposto a discutir comigo o que quisesse. Mas tu, Senhor, livraste-o de minha louca amizade, guardando-o em ti para o meu consolo, pois, poucos dias depois, na minha ausência, voltaram-lhe as febres e morreu.
Que dor fez anoitecer o meu coração! Tudo o que via era morte para mim. a pátria me era um suplício, e a casa paterna tormento insuportável, e tudo o que o lembrava transformava-se para mim em crudelíssimo martírio. Buscavam-no por toda parte meus olhos, e o mundo não mo devolvia. Cheguei a odiar todas as coisas, porque nada o continha, e ninguém mais me podia
dizer como antes, quando chegava depois de alguma ausência: “Ali vem ele”. Transformara-memesmo num grande problema. Perguntava à minha alma porque andava triste, e se perturbava tanto, e ela não sabia o que responder-me. E se eu lhe dizia: “Espera em Deus” – minha alma não me obedecia, e com razão, porque para mim, era mais real e melhor o amigo querido que perdera, que o fantasma em que mandava tivesse esperança. Só o pranto me era doce. Ocupava o lugar de meu amigo nas delicias de meu coração.
CAPÍTULO V
O conforto das lágrimas
E agora, Senhor, que essas coisas já passaram, agora que o tempo sarou minha ferida, poderei ouvir de ti, que és a própria verdade, aproximando o ouvido de meu coração de tua boca, o motivo por que o pranto é doce aos desgraçados? Acaso, mesmo presente em toda parte, repeliste para longe de ti nossa miséria, permanecendo imutável em ti, enquanto deixas que nos envolvamos em nossas provações? E, contudo, se nossos lamentos não chegarem a teus ouvidos, não haverá para nós esperança alguma.
Mas, por que motivo dos gemidos, do choro, dos suspiros e das queixas colhe-se como fruto doce do amargor da vida? Esperamos que nos ouça? Virá daí a doçura? Isso acontece na oração que leva em si o desejo de chegar a ti; porém, poder-se-á dizer o mesmo da dor da perda ou do pranto que então me avassalavam?
Eu não esperava ressuscitar meu amigo com minhas lágrimas, mas limitava-me a me condoer e a chorar minha miséria, pois eu havia perdido minha alegria.
Ou será que o pranto, que é amargo em si mesmo, se torna um deleite quando, pelo fastio, aborrecemos os prazeres que antes nos eram gratos?
CAPÍTULO VI
Inconsolável
Mas para que falar dessas coisas, se agora não é tempo de investigar, mas de me confessar a ti? Eu era miserável, como o é toda alma prisioneira do amor pelas coisas temporais; se sente despedaçar quando as perde, sentindo então sua miséria, que a torna miserável antes mesmo de as perder. Assim é como eu era então e, chorando muito amargamente, descansava na amargura. E como era miserável! Contudo, mais que o amigo caríssimo, eu amava minha vida miserável, porque embora desejasse mudá-la, não queria perdê-la como ao amigo, não sei se gostaria de perdê-la por ele, como se conta de Orestes e Pílades – se não é ficção – que queriam morrer um pelo outro, porque para eles viver separados era pior que a morte. Mas não sei que novo sentimento nascera em mim, muito contrário a este: sentia pesado tédio de viver, e ao mesmo tempo tinha medo de morrer. Creio que quanto mais amava o amigo tanto mais odiava e temia a morte, como inimigo feroz que mo havia arrebatado; pensava que ela acabaria de repente com todos os homens, como o fizera com ele. Este era meu estado de espírito, pelo que me lembro.
Meu Deus, eis aqui meu coração, ei seu conteúdo! Olha para o meu passado, porque sei, esperança minha, que me purificas da impureza desses afetos, atraindo para ti meus olhos, e libertando meus pés dos laços que me aprisionavam. Maravilhava-me de que sobrevivessem os outros mortais a seus amados se nunca houvessem de morrer; e mais me maravilhava ainda de que, morto ele, eu continuasse a viver, porque eu era outro ele. Bem disse um poeta quando chamou ao amigo “metade da sua alma”. E eu senti que minha alma e a sua não eram mais que uma em dois corpos, e por isso causava-me horror a vida, porque não queria viver pela metade; e ao mesmo tempo tinha muito medo de morrer, para que não morresse de todo aquele a quem eu tanto amara.
CAPÍTULO VII
De Tagaste para Cartago
Ó loucura, que não sabe amar os homens humanamente! Ó homem insensato, que sofre desmedidamente os reveses humanos! Assim era eu então, e assim agitava-me, suspirava, chorava, perturbava-me, e não encontrava descanso nem conselho. Trazia a alma em farrapos e ensangüentada, indócil ao meu governo, e eu não encontrava lugar onde a pudesse depor. Nem os bosques amenos, nem os jogos e cantos, nem os lugares suavemente perfumados, nem os banquetes suntuosos, nem os prazeres da alcova e do leito, nem, finalmente, os livros e os versos podiam dar-lhe descanso. Tudo me causava horror, até a própria luz. Tudo o que não era o que ele era, era-me insuportável e odioso, exceto gemer e chorar, pois, somente nisto achava algum repouso. E se minha alma deixava de chorar, logo pesava sobre mim o grande fardo da desgraça.
A ti, Senhor, deveria ser elevada, para ter cura. Eu o sabia, mas não o queria nem podia. Tanto mais que, ao pensar em ti, não tinha em mente algo sólido e firme, mas um fantasma, o meu erro. Se nele tentava descansar minha alma, logo deslizava como quem pisa em falso, e caía de novo sobre mim. Eu era para mim mesmo uma infeliz morada, na qual era ruim e da qual não podia sair. E para onde iria meu coração, fugindo de si mesmo? Para onde fugir de mim mesmo?
Para onde não me seguiria?
Por isso fugi de minha pátria, porque meus olhos buscariam menos meu amigo onde não estavam acostumados a vê-lo. E assim me fui de Tagaste para Cartago.
CAPÍTULO VIII
O consolo do tempo e da amizade
O tempo não corre debalde, nem passa inutilmente sobre nossos sentidos; antes, causa na alma efeitos maravilhosos. Assim vinha e passava, dias após dias, e passando deixava em mim novas esperanças e novas recordações; pouco a pouco restituía-me a meus prazeres de outrora, a que ia cedendo minha dor. Substituíam-na não novas dores, mas sementes de novas dores.
Mas, por que me penetrara aquela dor tão profundamente, até o mais íntimo de meu ser, senão porque derramei minha alma sobre a areia, amando a um mortal como se não o fora? O que mais me confortava e alegrava eram sobretudo as consolações de outros amigos, com os quais partilhava o amor para o que amava tem teu lugar, isto é, uma fábula enorme, uma longa mentira, cujo contato impuro corrompia nossa mente, arrastada pelo prurido de ouvir aquilo que a agradava; fábula esta que não morria para mim, ainda que morresse algum de meus amigos.
Outros prazeres havia neles que cativavam mais fortemente minha alma, como conversar, rir, agradar-nos mutuamente com amabilidade, ler juntos livros bem escritos, gracejar uns com os outros e divertir-nos juntos; às vezes discutir, mas sem ódio, como quando discordamos de nós mesmos para, com tais discórdias muito raras, temperar as muitas conformidades; ensinar ou aprender reciprocamente muitas coisas, suspirar impacientes pelos ausentes e receber alegres os recém-chegados. Estes sinais, e outros semelhantes, que procedem de corações que se amam, e que se manifestam no rosto, na fala, nos olhos, e em mil outros gestos graciosos, inflamavam nossas almas, como em uma centelha, fazendo de muitas uma só.
(Continua...)
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