Summorum Pontificum Observatus | Tradução: Fratres in Unum.com – Publicamos abaixo alguns extratos de uma carta enviada em 7 de setembro de 2003 pelo Cônego André Rose (1920-2003) à sua Eminência o Cardeal Joseph Ratzinger, então prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé. Publicamo-a com um duplo título. Primeiro, porque se trata de um documento histórico, a se debruçar sobre a questão da crise litúrgica e das tentativas de sair dela. Depois, porque as observações do Cônego André Rose iluminam de maneira singular a situação atual no momento em que tanto se fala de uma restrição na aplicação do motu proprio Summorum Pontificum.
Mas uma terceira razão explica também o nosso procedimento: a personalidade do autor desta carta. O Cônego André Rose foi consultor do Consilium de Mons. Bugnini, responsável pela revisão dos livros litúrgicos. Foi membro de quatro sub-grupos de trabalho do Consilium. Seu testemunho é, portanto, de primeira mão. Nesta carta, o Cônego Rose critica a nova liturgia em seus fundamentos, não somente em sua aplicação. Ele pede o reconhecimento do usus antiquior como um direito geral da Igreja latina, não como uma concessão. Por último, vincula a “reforma da reforma” à liberalização total (reconhecimento do direito geral) do usus antiquior. Ora, são estes últimos pontos que estão precisamente em questão na guerra atual contra o motu proprio. Não se trata hoje de impedir a celebração do usus antiquior, mas de impedir seu efeito enquanto exemplo, em vista de uma restauração da liturgia. No fundo, a guerra ainda é movida contra aquele que em 1985, em sua Entrevista sobre a fé, ousou falar de “restauração”.
Eminência,
Permiti a um antigo consultor do Consilium dar à Vossa Eminência o seu parecer sobre a situação litúrgica da Igreja latina? Participei das jornadas de Fontgombault e conheço o Vosso empenho em prol do motu proprio Ecclesia Dei adflicta. A experiência mostra que este indulto não deu os frutos esperados e cada vez mais numerosos são os que o percebem. Posto que a ‘intenção do Santo Padre era dar uma liberdade real aos que permanecem ligados a essas formas litúrgicas, não se deveria tomar outras medidas para tornar efetiva esta vontade papal?(…)Não voltarei às censuras que foram feitas, sobre muitos pontos, aos novos ritos. Gostaria apenas de sublinhar que críticas profundas foram emitidas ou aprovadas (em prefácios de obras) por vários bispos e cardeais, entre os quais Vós mesmo. É possível, portanto, formular verdadeiras críticas de fundo sobre os novos livros litúrgicos sem ferir a eclesialidade nem romper com o magistério ordinário universal. Assim sendo, o fato do Cardeal Secretário de Estado finalmente ter se unido publicamente ao vosso pedido de uma reforma da reforma é bem-vindo. Todavia, é necessário ver se se tratará de uma reforma “cosmética” ou de um reexame aprofundado. Como antigo peritus, posso testemunhar que certas cabeças dirigentes do Consilium preferiam esconder suas obras e que certas decisões que nos levaram a tomar à época procediam de intenções não confessadas. Agora que quase mais ninguém ousa negar o caráter problemático dessas normas, não é necessário ter a coragem de reexaminá-las até os seus princípios subjacentes?Esperando que tal revisão sem complacência seja efetivamente empreendida, penso que o senso comum demande que seja reconhecido a qualquer padre de rito romano a faculdade de usar os livros de 1962. Tal medida seria não somente uma questão de bom senso (o princípio de prudência pede, na incerteza, que se continue a utilizar o que já é experimentado) mas também de estrita justiça. Em 1986, uma comissão cardinalícia reconheceu que o missal de 1962 não tinha sido abolido. Questões de oportunidade podem justificar a postergação um ato de justiça? (…)Como antigo consultor do Consilium, posso afirmar que fomos impulsionados por Mons. Bugnini numa reforma inconsiderada, precipitada e negligente sobre muitos pontos. E aqueles que promovem essa desordem e crêem poder questionar tudo ficam indignados que ‘se ouse debater livremente sobre a pertinência dos princípios doutrinais que guiaram a sua obra de abalo da lex orandi? Alguns entre nós, periti, não vimos onde se desejava conduzir. Penso que certas mudanças eram necessárias: distribuir melhor o saltério do breviário, enriquecer o lecionário da missa em certos dias, etc. Pensei que tinha participado de uma reforma. Fui obrigado a constatar uma revolta.A instrução que está sendo preparada na S. Congregação do Culto Divino [o autor provavelmente se referia à instrução Redemptionis Sacramentum, publicada em 2004] não oferece a ocasião, ao mesmo tempo de expôr francamente os problemas novo rito e de afirmar o direito acerca do missal tradicional? Remeto tudo isso às mãos do Santo Padre por Vosso intermédio. Não vejo porque se fazer da “liberalização” do rito tradicional um caso de concessão. Um direito existente não deve antes ser reconhecido em vez de concedido? Os padres que desejam continuar a utilizar o novo missal reintegrando ao mesmo tempo as suas celebrações à tradição litúrgica seriam, sem dúvida, reforçados em suas aspirações por tal reconhecimento oficial do estado do direito. Parece-me que é a Igreja quem se beneficiaria.
Vemos que o Cônego Rose pedia simplesmente o que o motu proprio Summorum Pontificum ratificou. O Santo Padre reconheceu publicamente que o rito romano tradicional não tinha sido abrogado e que, consequentemente, não estabelecia sua celebração como uma concessão. As disposições que organizam sua celebração pública são da competência do governo da Igreja, da virtude da prudência para que uma reparação em justiça não termine em um caos ainda maior. No entanto, a missa romana tradicional não aparece no domínio da concessão, mas do direito geral da Igreja.
Em relação a esta carta do Cônego Rose, permanece a pesada tarefa de reexaminar a fundo os novos livros litúrgicos na perspectiva da reforma da reforma, necessariamente ligada a uma livre celebração do usus antiquior. É esta perspectiva que até elementos conservadores querem hoje impedir.