segunda-feira, 21 de março de 2011

Um pouco de história sobre a doutrina do cristianismo

O  enunciado  da  doutrina  cristã  sofreu  uma  grande  influência  da  meditação  grega, distinguindo-se  claramente  dos  textos  acrescentados  à  Bíblia. Os  documentos  iniciais,  que passaram  a  constituir  o  Novo  Testamento,  seguiram  a  linha  do  Velho  Testamento. 


São testemunhos da presença do Filho de Deus no mundo, acompanhados de relatos dedicados às primeiras comunidades. As Epístolas do grandes Apóstolos  incitam à conversão. Sobressai a mensagem  de  amor  ao  próximo  como  a  si  mesmo  e  a  afirmação  peremptória  de  que  a Mensagem não se dirige apenas ao povo eleito mas ao comum dos mortais.
Contudo,  na  medida  em  que  o  cristianismo  teve  que  enfrentar  doutrinas  que  se contrapunham  diretamente  aos  seus  ensinamentos  –  a  exemplo  do  maniqueísmo  que, objetivamente,  equiparava  o  Bem  ao  Mal  na  medida  em  que  seriam  ambos  princípios constitutivos –, a  forma de exposição  teve que assumir outra  feição. Nessa circunstância, os pensadores  cristãos,  a  exemplo de Santo Agostinho,  tiveram que  recorrer  ao método grego, que se destinava justamente a facultar a precisão conceitual. Surgiu assim uma disciplina que seria denominada de teologia  e que  acabou, durante  a  Idade Média,  tornando-se o  ápice do saber.
A teologia ocupou-se de temas desta índole: provas da existência de Deus; atributos da divindade e transformação dos mistérios da fé (os milagres; a eucaristia, etc.) em proposições racionais. Ao  arrepio  da  ética  aristotélica,  em  que  supostamente  se  baseava,  interessada  na felicidade  terrena, afirmou-se que a suprema felicidade do homem residiria na contemplação de Deus após a morte. A esse tipo de preocupação acresce a diversidade de interpretações do texto bíblico, com a emergência da Reforma Protestante.
A  situação  esquematicamente descrita  explica o  surgimento, no  século XVIII, de uma corrente de pensamento empenhada em constituir uma religião puramente racional, que veio a ser  denominada  de religião  natural.  Esse  movimento  mobilizou  figuras  que,  sem  favor, correspondem aos maiores pensadores do Ocidente, como David Hume ou Emmanuel Kant, e esvaziou  a  religião  de  seu  sentido  próprio,  reduzindo  sua  missão  ao  exclusivo  plano  da moralidade. Novo passo , empreendido no século seguinte (XIX), com intensa repercussão no século XX,  consistiu  em  difundir  a  idéia  de  que  a  religião  não  passaria  de  uma  invenção surgida  mais  das  vezes  com  objetivos  inconfessáveis.  Seria  o  caso  de  Carlos  Marx  ao classificá-la como ópio do povo a serviço de sua dominação.
Em meio  a  esse  quadro  iria  surgir  uma  proposta  inteiramente  renovadora,  baseada  na investigação  do  que  efetivamente  constituiria  a  experiência  religiosa.  Os  resultados  são deveras  espantosos  e  convincentes.  Em  síntese,  a  religião  é  uma  estrutura  constitutiva  da pessoa humana; diz muito sobre o homem ainda que nada esclareça quanto à divindade. Quem quer  que  se  disponha  a  ignorar  o  papel  que  o  culto  do  sagrado  representa,  na  formação  da personalidade, acabará por colocá-lo numa outra esfera da vida humana, mais das vezes com graves  consequências. A  postura  niilista  de  combatê-la  ou  negá-la,  como  vimos  no  próprio século XX  e  ainda no presente,  acarreta um vazio  cujo preenchimento quase  sempre  leva  à destrutividade gratuita.
Como em geral acontece na existência humana, a simples descoberta de que o homem não  deve  sufocar  a  livre  expressão  de  sua  religiosidade  não  fez  desaparecer  no Ocidente  o desinteresse pela religião. Mas serve para explicar, de um lado, que não se haja confirmado o prognóstico  de  seu  desaparecimento  e  tenhamos  em  nosso  tempo  presenciado  expressões
concretas da força e do prestígio da religião protestante nos Estados Unidos, como igualmente as espetaculares mobilizações populares obtidas por João Paulo II,  inclusive entre os  jovens.
E, mais espantoso que tudo, ainda que não se refira ao Ocidente, é a transformação da Igreja Ortodoxa Russa na  instituição com maior prestígio na sociedade, depois de setenta anos não só  de  sistemática  difusão  do  ateísmo mas  sobretudo  de  perseguição  implacável  a  todas  as formas de manifestação religiosa.
Por  tudo  isto,  o  estudo  da  religião  é  parte  relevante  da  formação  humanista,  o  que esperamos evidenciar nesta parte do Curso de Humanidades, ao tema dedicado.
Nessa  análise  cumpre  distinguir,  do  aspecto  antes  destacado  –  isto  é,  a  religião  como objeto  de  estudo  –  o  que  seriam  tanto  a  própria  vivência  religiosa  (individual)  dos ensinamentos  proporcionados  pelos  grandes  mestres  do  cristianismo.  Quanto  ao  último aspecto,  vamos  considerar  aqui,  além  das  imprescindíveis  indicações  de  caráter  histórico,  o que poderia ser definido como doutrina da espiritualidade cristã.
O  caráter  distintivo  da  espiritualidade  cristã  acha-se  expresso  nos  Evangelhos  e  nas Epístolas dos Apóstolos, e, em geral, no que contém o Novo Testamento, com maior destaque para  São  Paulo,  considerado  o  primeiro  formatador  da  doutrina  cristã.  Santo  Agostinho seguiu-lhe  rigorosamente  os  passos,  razão  pela  qual  tornar-se-ia  o  grande  mestre  de espiritualidade. A Reforma não afetou nem poderia afetar esse patrimônio.
A  par  da  doutrina  da  espiritualidade,  o  cristianismo  produziu  uma  teologia  e  uma filosofia. Aqui situam-se as divergências. Para os católicos, o grande teólogo é São Tomás de Aquino, enquanto os protestantes preferem os próprios mestres como Lutero ou Calvino. No que se refere á filosofia, os protestantes nunca se preocuparam em elaborar doutrina própria.
Os católicos, por sua vez, tornaram o tomismo doutrina oficial no Concílio Vaticano Primeiro e,  sobretudo  em  grande  parte  do  século  XX,  desenvolveram  nesse  particular  uma  grande atividade. Presentemente, Roma não mais aposta numa filosofia oficial.
Os dois últimos  aspectos –  teologia  e  filosofia – não  se  inserem na pauta  selecionada para estudo nesta oportunidade.
I.  REVALORIZAÇÃO DA RELIGIÃO COMO
ESTRUTURA CONSTITUTIVA DO HOMEM
Resumo

Nas  Épocas  Moderna  e  Contemporânea  a  religião  foi  submetida  à  análise  do racionalismo. O impulso para fazê-lo tinha motivação moral, devido ao fato de ter a Reforma Protestante evidenciado que a Igreja Católica ignorara um dos mandamentos da Lei de Deus; tornados conhecidos através de Moisés, aquele que proibia a adoração de imagens. Temia-se que a circunstância pudesse abalar o consagrado código moral do Ocidente.
Concebeu-se então uma  religião  racional – batizada de natural – que seria o substrato último das religiões católica e protestante. Tal emprenho racionalizador terminou por reduzir a Igreja a uma instituição devotada à moral.
Seguiu-se, no século XIX, a pura e simples negação da religião. Seria o ópio do povo, para  Carlos Marx;  a  imagem mitológica  das  estruturas  sociais,  para  a  nascente  sociologia (Durkheim)  ou  que  Deus  não  passaria  de  versão  ampliada  da  imagem  do  pai,  produzida inconscientemente, num desejo infantil de proteção (Freud).
A  reação ocorreria no  século XX, ainda que  tenha  sido  justamente nesse  século que a negação  frontal  da  religião  encontraria  maior  número  de  adeptos,  inclusive  ensejando  o surgimento de um império, o soviético, devotado ao culto do ateísmo.
Nos Estados Unidos, o aprofundamento do conceito de experiência, posto em circulação pelo  empirismo  inglês,  levou  ao  estudo  sem  preconceitos  da  experiência  mística.  Nessa investigação, William James descobriu critério para aferir, sem contestação, se se  tratava de simples mistificação.
Outro  passo  importante  no  sentido  da  adequada  compreensão  do  fenômeno  religioso seria dado pelo neokantiano alemão Rudolf Otto. Em continuação, no segundo pós-guerra, as contribuições de Mircea Eliade.
Agora estamos em condições de compreender que o culto do sagrado é uma dimensão constitutiva  do  homem.  Ignora-lo  é  correr  o  risco  de  deslocar  aquele  culto  para  uma  outra esfera  da  vida  humana,  mais  das  vezes  com  conseqüências  não  só  imprevisíveis  como indesejadas ou indesejáveis.
II. O FENÔMENO PROFÉTICO NA PERSPECTIVA WEBERIANA
Resumo

Segundo  o  relato  bíblico,  Deus  fez  uma  Aliança  com  o  povo  judeu,  retirando-o  do cativeiro do Egito e dispondo-o no local onde se implantou o Estado Judaico. Ocorre grande florescimento  dessa  comunidade,  simbolizado  na  construção  do  Templo  em  Jerusalém,  no reinado  de  Salomão  (974-93'7  a.C.).  Paralelamente  forma-se  em  seu  derredor  um  grande império  (Assírio),  ameaçador  de  sua  independência. A  ameaça  consumar-se-ia  dois  séculos mais tarde.
Para aquelas populações  formadas em  torno da divindade, o mais plausível era aceitar que o Deus dos assírios (ou dos  impérios que  lhe sucederam) era mais poderoso que o Deus dos judeus, na medida em que os primeiros os derrotaram militarmente.
Numa circunstância destas é que apareceram os Profetas.
Como  indicaria  Max  Weber:  instaura-se  um  grande  paradoxo.  Os  profetas  não  só justificam  que Deus  haja  deixado  de  proteger  aos  judeus  como  avançam  o  prognóstico  de calamidades ainda maiores, inclusive a escravidão.
Em  conformidade  com  sua  pregação,  tudo  se  deve  a  que  os  judeus  esqueceram  a Aliança, entregaram-se à corrupção e ao culto de outras divindades. O  judaísmo passa desde então  a  achar-se  associado  á  idéia  de  que  o  homem  é  livre.  Pode  escolher  esse  ou  aquele caminho. E arcar com as conseqüências.
Os Profetas  atuaram  a partir dos meados do  século VIII  antes de Cristo. As profecias preservadas na Bíblia não correspondem a textos escritos por seus autores mas a uma tradição oral que se preservou. Até hoje  têm uma  força notável, sendo  fácil compreender o poder de convicção de que se revestiram em seu tempo.
Os Profetas situam a pregação em sua época e é justamente a partir da situação existente que fixam o enunciado que irão expressar. Sua mensagem é clara e incisiva: ao manifestar-se sobre  a  política  externa,  o  primeiro  grande  profeta,  Isaias,  nega  a  eficácia  de  aliança  com
algum vizinho para enfrentar a ameaça da Assíria. Ao invés disto, incumbe restaurar a fé em Javé,  o  único  salvador. Sob  ocupação  da Babilônia  (início  do  século VI) Ezequiel  trata  de dissuadir os judeus de que o castigo seria passageiro.
O  tema  central  da  profecia  é  a  afirmação  de  que  as  calamidades  em  curso  ou  que  se avizinham procedem diretamente de Javé.
De  onde  provém  a  ira  divina? Para  responder  a  essa  pergunta  os  judeus  devem  olhar para  si  mesmos.  Que  fizeram  da  Aliança  entre  Javé  e  o  povo  de  Israel,  em  presença  de Moisés? Que fizeram do compromisso de adorar um único Deus?
A crítica é dura e implacável.
Por fim a Profecia insere a preservação da esperança na redenção. Reintroduzindo-se em sua  fé,  Israel  experimentará.  um  novo  ciclo  de  florescimento.  Os  Profetas  mais  tardios anunciam a vinda de um Salvador, que será o verdadeiro Messias.
III.   ELABORAÇÃO DOUTRINÁRIA NOS PRIMEIROS
SÉCULOS DO CRISTIANISMO
Resumo
A estruturação do que se denominou de comunidade cristã primitiva prolongou-se por todo  o  primeiro  século.  O  Apóstolo  Pedro  assume  a  tarefa  de  organizar  uma  Igreja responsável  pela  propagação  da mensagem  de Cristo. Outro  grande  pregador  que  seguiu  o mesmo  caminho  seria  Saulo  de  Tarso,  após  converter-se  e  abandonar  a  condição  de perseguidor dos cristãos, adotando o nome de Paulo. Presos, ambos são  torturados e mortos, em Roma, por volta dos anos 66-67. A multiplicação dos mártires produzia efeito contrário ao buscado pelas autoridades porquanto o cristianismo encontrava crescentes adesões,  inclusive
no seio da elite.
Atuando  em  circunstâncias  tão  desfavoráveis,  os  cristãos  trataram  de  salvaguardar  a pureza dos ensinamentos de Cristo, num meio em que campeava o paganismo, bafejado pelo Estado  e  correspondendo  a  uma  longa  tradição.  Nesse  quadro,  desempenhou  um  papel essencial  o  Evangelho  segundo  São  João,  denominado  de Quarto  Evangelho  por  se  haver seguido  aos  que  o  antecederam.(1) Dentre  os Apóstolos,  João  é  o  último  sobrevivente. O papel  desempenhado  consistiu  em  permitir  a  formação  dos  denominados Padres  da  Igreja, isto  é,  aquele  conjunto  de  líderes  religiosos  que  preservaram  a  doutrina  e  asseguraram  a sobrevivência  do  cristianismo.  Sobressaíram,  no  século  II,  Inácio,  bispo  de  Antioquia,  no Oriente Médio;  Justino, que  fundou uma  escola  em Roma  e  Irineu de Leon  (Lion, no  atual território da França). Atuaram portanto em diversos pontos do Império Romano. No século III, Clemente e Orígenes, ambos com atuação no Egito e Cipriano e Tertuliano (Roma).
A persistência dos pregadores não só garantiu a permanência do cristianismo como, na medida em que era bem  sucedida, obrigava as autoridades a  rever  sua posição. Porquanto a repressão revelava-se inócua, o Império termina por aceitar a situação de fato. Contando dela tirar proveito,  transforma o cristianismo em religião oficial. A mudança exigiu dos Padres a adoção de uma nova estratégia. Agora tratava-se de assegurar a independência da instituição.
Os grandes temas da elaboração doutrinária nos primeiros séculos do cristianismo são os seguintes:
- esclarecer o sentido do Logos, da palavra, porquanto esta era a forma de manifestação de Deus. Assim,  ao  invés  de  contrapor  o Deus  único  dos  cristãos  às múltiplas  divindades, deu-se  prevalência  á  difusão  do  entendimento  de  que  o  Deus  cristão  manifestava-se  pela palavra;
-  estabelecida  a  compreensão  da  força  da  palavra  divina,  do  Logos,  era  necessário empreender  o  passo  seguinte  que  consistia  em  sua  encarnação  na  pessoa  de  Jesus.  No judaísmo, de onde provém o cristianismo, a palavra divina consiste numa Promessa. Com a encarnação em Cristo, torna-se Realização da Promessa;
-  uma  outra  questão  importante  corresponde  ao  pleno  esclarecimento  da  relação  entre João Batista –  incumbido por Deus de anunciar a presença do  filho de Deus no mundo – e Jesus Cristo.
Finalmente, a adesão á Igreja deve manifestar-se na eucaristia.
IV. AMADURECIMENTO DA DOUTRINA CRISTÃ NA IDADE MÉDIA
Resumo

Como  vimos  ao  caracterizarmos  a  cultura  ocidental,  na medida  em  que  as  chamadas hordas  bárbaras,  invasoras  da  Europa,  acomodam-se  e  cessam  os  conflitos  –  notadamente após  o  término  do  último  ciclo  de  invasões,  na  altura  dos  meados  do  século  X  –,  o cristianismo torna-se o elemento central do processo civilizatório. A Igreja é a referência e o lugar onde  se  encontram  as pessoas  cultas,  já que  a  elite  feudal  é  constituída de guerreiros, devotados  á  segurança, desinteressados do  saber. Tal  é, por  assim dizer, o  aspecto  exterior.
Agora nos incumbe conhecer a espiritualidade cristã que irá sedimentar-se na Igreja medieval. Na Idade Média, a espiritualidade cristã expressou-se na forma de ascetismo – entendido como  distanciamento  do mundo  e  cultivo  da  vida  interior  –  como  o  seu  caráter  distintivo, ainda que nunca tivesse alcançado uma posição de exclusividade. Esse tipo de espiritualidade
seria desenvolvido basicamente nos mosteiros. Ainda que introduzido nos primeiros tempos, o florescimento do monaquismo dar-se-ia na Idade Média.
No  plano  da  literatura  espiritual,  isto  é,  de  uma  forma  de  divulgação  amplamente acessível, a figura central é S. Bernardo (século XII). Fixou para a vida espiritual um quadro completo. Esse  itinerário  parte  do  conhecimento  de  si mesmo  em  busca  da  posse  de Deus.
Sintetizando, teríamos da humildade ao êxtase; do pecado á gloria; o encontro da miséria do homem com a misericórdia de Deus no Verbo encarnado; a  restauração na alma da  imagem divina,  através  do  gradativo  crescimento  do  amor  que,  no  plano  existencial,  encontra  sua expressão máxima na união nupcial da alma com Deus.
No mesmo século de S. Bernardo (XII) nascem as Ordens mendicantes – Franciscana e Dominicana  –,  pondo  fim  ao  predomínio  beneditino,  que  durou  600  anos.  Entre  os dominicanos irá sobressair S. Tomás de Aquino (século XIII).
Fruto  da  ênfase  no  ascetismo  e  no  distanciamento  do mundo  seria  a mística  alemã.
Interessa-lhe  penetrar  no  fundo  da  alma,  onde  se  encontraria  o  seu centro,  em  que  se  dá  o encontro de Deus. A grande figura da mística alemã seria Mestre Eckhart (século XIV).
Os  franciscanos  irão  servir-se  de  dois  instrumentos  para  despertar  e  desenvolver  a espiritualidade:  a  pobreza  e  o  amor. O  doutor máximo  da  espiritualidade  franciscana  é São Boaventura (século XIII).
Seria  na Espanha  onde  o  choque  provocado  pelo Renascimento  e  pela  emergência  da Reforma  protestante  iria  suscitar  uma  nova  forma  de  expressão  da  espiritualidade  cristã  (o ativismo), sem renegar ao misticismo. Expressam com propriedade essa circunstância Teresa de Ávila  e  Inácio  de Loyola. Tereza  proporcionou  imorredouras  descrições  psicológicas  da experiência mística. Inácio de Loyola criou a Ordem dos Jesuítas para atuar no mundo.
Santo Agostinho trespassa toda essa trajetória e exprime em sua inteireza a feição que a espiritualidade cristã assume definitivamente.
São João, como  indicamos,  iniciou o  tipo de enunciado que veio a ser denominado de Teologia,  isto  é  ciência  ou  conhecimento  de  Deus.  Santo  Agostinho  dar-lhe-á  feição definitiva, fundindo-a com a filosofia grega. Esta, que iniciou a busca da precisão conceitual, elevou ao máximo o agrupamento desses conceitos de  forma a alcançar graus sucessivos de generalização.  Por  esse  processo,  chegou-se  à  noção  de ser,  que  pretendia  alcançar  tudo
quanto existia (ou de que se tinha conhecimento). Santo Agostinho iria identificar essa noção com  Deus.  Para  ele,  Deus  é  o  arquétipo  do  ser  e  identifica-se  plenamente  com  o  ser  do homem.  Na  busca  pelo  que  tem  de  mais  íntimo,  encontrará  Deus.  Todas  as  questões subseqüentes subordinam-se a essa noção. O mal corresponde à privação do ser; na busca do próprio ser o homem esbarrará com a sua miséria mas  também com a misericórdia divina e assim por diante.
A  obra  de  Santo  Agostinho  teve  duplo  desenvolvimento.  Tendo  se  dedicado  a empreender balanço da própria vida depois de se haver convertido, achando-se na condição de bispo,  estabeleceu  uma  espécie  de  padrão  rigoroso  na  consideração  dos  próprios  atos  e vivências, tornando-se modelo de espiritualidade que viria a ser abraçado tanto pelos católicos como  pelos  protestantes,  associando-o  diretamente  a  São  Paulo.  Passou  a  constituir, juntamente com o Novo Testamento, expressão máxima e definitiva da espiritualidade cristã.
A  segunda  linha  ateve-se  ao  plano  teológico.  São  Tomás  partiria  de  seu  legada  para fazer  da  teologia  o  ápice  do  saber,  ao  qual  se  subordinariam  todas  as  outras  formas  de conhecimento. Essa dimensão atribuída à teologia vigorou apenas durante a Idade Média não obstante  o  que,  para  os  católicos,  São  Tomás  permaneça  como  o  grande  mestre  dessa disciplina.
V. A REFORMA PROTESTANTE
Resumo

As  divergências  que  levaram  à  ruptura  com  o Papado,  em Roma,  e  à  organização  de igrejas independentes – movimento que passou à história com o nome de Reforma Protestante – dizia respeito à prática do cristianismo, efetivada pela Igreja Católica. A hierarquia da Igreja estava  absorvida  por  questões  tais  como  a  suntuosidade  dos  palácios  do Vaticano  ou  com
alianças políticas que assegurassem a sua sobrevivência como Estado. Pareceu a um sacerdote alemão  que  a  vida  interior  dos  cristãos  estava  relegada  ao  abandono. E,  para  expressar  seu descontentamento,  rebelou-se  contra  a  venda  de  indulgências,  efetivada  por  Roma  para atender a seus gastos, que levava a supor que aos contribuintes estava assegurada a felicidade
na vida eterna. Chamava-se Martim Lutero  (1483/1546). Roma  reagiu de  forma violenta. A iniciativa de Lutero aglutinou o descontentamento de grande número de principados alemães, que  formaram  uma  coalizão militar  em  seu  apoio. A  disputa  degenerou  em  conflito  bélico, depois da morte de Lutero, que terminou pelo reconhecimento da liberdade religiosa (Paz de
Augsburg, 1555). Os súditos eram entretanto obrigados a seguir a Igreja que o príncipe tivesse escolhido, podendo emigrar os que a isto não desejassem submeter-se.
Os  seguidores  de  Lutero  fundaram  a  Igreja  Luterana.  Ainda  durante  a  vida  desse primeiro monge  rebelde  surge  outro  grande  reformador  (Jean Calvino,  1503/1564),  que  dá origem  à  Igreja  Presbiteriana.  Na  Inglaterra,  a  igreja  tornada  independente  de  Roma, denominado-se  Anglicana,  aderiu  ao  calvinismo.  Na  própria  Inglaterra,  contudo,  surgem
outras confissões. Assim, a Reforma Protestante não deu origem a uma Igreja única.
A  questão  central  que  estava  em  jogo  era  o  denominado  tema  da  predestinação.  A escolha para a salvação seria um desígnio insondável da Providência. Na terra, os homens têm o dever de cumprir a lei moral e de erigir uma obra digna da glória de Deus. Lutero defende tal princípio  em uma de  suas obras  capitais  (De Servo Arbítrio). Calvino o desenvolveu na Instituição da Religião Cristã.
O  princípio  em  causa  levou  à  procura  da  identificação  daquilo  que  poderia  significar indício  de  salvação. O  grande  e  bem  sucedido  pregador  inglês Richard Baxter  (1615/1691) indicou  que  o  sucesso  na  obra,  o  enriquecimento,  constituiria  indicação  do  beneficiado encontrar-se entre os eleitos, desde que a  riqueza não o  levasse ao  relaxamento e ao ócio, o maior de todos os pecados. A pregação de Baxter está examinada por Max Weber no livro A ética protestante e o espírito do capitalismo.
A  mudança  radical  que  a  Reforma  introduziu  na  vivência  religiosa  dos  que  a  ela aderiram encontra-se no fato de que colocam em primeiro plano a responsabilidade individual.
Agora os crentes não têm a quem recorrer para obter perdão pelos seus pecados. Incumbe-lhes avaliar a própria conduta ascultando a consciência.
Para  tornar  real essa possibilidade, os convertidos devem ser  instruídos pois  terão que escolher pessoalmente os ensinamentos da fé. Tais ensinamentos encontram-se diretamente na Bíblia.
VI. O FUNDO MÍSTICO DO ATEÍSMO CONTEMPORÂNEO
Resumo

A  fonte  da  irreligiosidade  dos  últimos  dois  séculos  é  a  tradição  messiânica  que encontrou sua expressão na tese do frade calabrês Joaquim de Fiori, segundo a qual, a história do mundo subdividia-se em três épocas distintas, respectivamente as Idades do Pai, do Filho e do  Espírito.  Na  Idade  do  Espírito  todos  os  homens  serão  seres  morais  e  haverá  paz  e
abundância. Essa crença alastrou-se e acabou por penetrar fundo em doutrinas aparentemente sofisticadas, fenômeno amplamente documentado na obra clássica A posteridade espiritual de Joaquim  de Fiori,  de  Henri  de  Lubac.  Essa  posteridade  inclui  nomes  como  Hegel, Saint-Simon, Comte e Marx.
Esse caminho trilhado pela crença no paraíso terrestre, desde suas origens mais remotas, acha-se  reconstituído no  texto de Walter Rehfeld,  tomando como exemplo, de  seu desfecho contemporâneo, a obra de Marx. Aqui vamos nos limitar ao texto de Joseph Hoffner, na época cardeal de Colônia  (Alemanha),  intitulado  "A  religião do materialismo dialético". O cardeal
Hoffner sintetiza as seis afirmações (ou teses) básicas daquela doutrina e as refuta. Segundo  o  materialismo  dialético,  a  religião  seria  proveniente  das  condições econômicas existentes na sociedade; da  impotência do homem frente às forças da natureza e de achar-se subjugado aos exploradores; não passaria de uma invenção fantasiosa tomando a si  mesmo  como  reflexo;  desaparecerá  na  sociedade  comunista;  a  era  da  religião  será substituída pelo perfeito naturalismo e humanismo e, finalmente, na fase de  transição para o comunismo  (vivida  pela  União  Soviética)  sobreviverão  resquícios  de  religiosidade, considerados transitórios.
A  característica  comum  a  essas  teses  reside  no  fato  de  que  não  há  em Marx, Engels, Lenine ou Stalin nenhum empenho de prova-las. As religiões são consideradas em bloco; em vão procurar-se-á na obra dos marxistas qualquer análise histórica concreta dessa ou daquela religião.  Não  lhes  ocorre  que  nem  todas  as  religiões  acham-se  associadas  à  magia  e  ao
fetichismo.
A  tese de que a  religião  judaica  reflete a contradição entre o bem estar dos patriarcas bíblicos  e  a  ausência  de  direitos  políticos  para  a massa  popular,  de  proveniência marxista, atesta  bem  a  pobreza  de  suas  teses.  Será  que  somente  entre  os  judeus  verificou-se  a mencionada "contradição"? Sendo, ao contrário, situação existente em  toda parte, porque ali surgiu religião da grandeza do Velho Testamento?
A verdade é que nenhuma ideologia conseguiu preencher o vazio deixado pela perda de sentido da existência. A frustração existencial estava presente nos países comunistas.
A  experiência histórica mostra que o paraíso  terrestre  é uma utopia. O marxismo não passa de uma pseudo religião secularizada. Ao mesmo tempo, a esperança num futuro Reino de Deus não impede o cristão de aspirar por um futuro terrestre mais justo.
Acrescente-se,  ao  que  indicou  o  Cardeal  Hoffner,  que  os  setenta  anos  de  União Soviética  demonstraram  cabalmente  que  a  religião  não  depende  das  condições  sociais.  Seu preconizado  desaparecimento  não  se  deu,  nem  mesmo  com  a  pressão  da  propaganda materialista. Esta, se dissesse de fato algo à pessoa humana, teria levado as novas gerações de soviéticos à definitiva adesão ao ateísmo, o que não ocorreu.

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