Romano Libero | Golias – tradução: Fratres in Unum.com: Deve-se crer em uma mudança de direção do atual pontificado? Um giro que corrigiria a orientação tradicionalista até então dominante ou ao menos emergente em proveito de um novo alinhamento que não se saberia ao certo qualificar de progressista, mas que nos afastaria, em todo caso, de uma restauração old style digna deste título. Muitos no seio da galáxia tradicionalista estão hoje convencidos disso. Estão desapontados por um Bento XVI hesitante em abraçar verdadeiramente a causa da tradição e multiplicando as iniciativas em sentido contrário, quer por concessão, quer — o que seria pior do ponto de vista tradi — por indecisão de fundamentos (ou flutuação de convicção). De qualquer forma, a beatificação de João Paulo II, a hipótese de um decreto de aplicação que limita o retorno à antiga liturgia, e, sobretudo, Assis III foram a gota d’agua. A confiança está doravante abalada.
Acrescenta-se a estes três pontos essenciais a suspeita quanto às verdadeiras intenções do Cardeal Antonio Canizarès, prefeito da Congregação para o Culto Divino, à qual se imputa a sombria intenção de conter o máximo possível o parêntese misericordioso (para retomar uma expressão do bispo francês Pierre Raffin [ndr – referência a esta frase: “A situação atual é um parêntese misericordioso para as pessoas que devem se apropriar progressivamente do Ordo Missae de Paulo VI, porque não se trata de fazer do rito tridentino (missa tradicional) um novo rito latino como ele existiu e ainda existe” (La Nef, nov. 1992)]). Dom Canizarès pertenceria à linha chamada de “conservadores de Paulo VI”: uma corrente fundamentalmente hostil aos “abusos” litúrgicos e adaptações excessivamente livres, mas que recusam também o retorno em larga escala da liturgia anterior ao Concílio. Esta corrente preconiza um respeito mais estrito à disciplina eclesial como existe atualmente, mas sem um voltar atrás.
Todos sabem que a Cúria Romana e o episcopado universal são basicamente divididos em três tendências, com, naturalmente, muitos matizes e vasos comunicantes. A primeira destas tendências, em nítido retrocesso, é a dita progressista, que vê na reforma litúrgica um ponto de partida a avançar. Certos bispos americanos ou franceses se mantêm ainda sobre esta linha. Com o apoio discreto de outrora de Dom Piero Marini, mestre das cerimônias pontifícias, removido por Bento XVI. A segunda, amplamente majoritária, agrupa todos os bispos ligados às mudanças do Concílio, mas que recusam outras inovações, sobretudo as lançadas às raízes. É necessário reconhecer que certos prelados desta tendência estão nela sobretudo… por defeito, por interesse pessoal muito limitado para com as questões litúrgicas, particularmente na Espanha ou Itália. Por último, uma terceira tendência ganhou espaço nestes últimos anos, sobretudo desde a eleição de Bento XVI. Sem colocar em questão — ao menos oficialmente — a nova liturgia, ela deseja um certo regresso às antigas e, num maior prazo, uma “reforma da reforma”, noutros termos, uma modificação da liturgia atual aproximando-a da antiga, daquilo que se chama às vezes de tradição. Levantam-se nesta tendência os Cardeais Raymond L. Burke (EUA, Cúria) e Malcolm Ranjith (Colombo).
João Paulo II, apóstolo da alma e sobretudo preocupado com a comunicação, não se incomodava muito com a liturgia e tinha confiança em Dom Marini. Alguns o situavam no encontro entre a primeira e a segunda tendências. Em contrapartida, Bento XVI é muito preocupado em trazer de volta toda sua sacralidade ao culto. Seria classificado de bom grado como um dos tidos por moderados da terceira tendência. E o motu proprio de 2007, que legitima amplamente o recurso à forma extraordinária da celebração da missa (S. Pio V) confirmaria esta orientação de fundo. Mesmo que o Papa tenha se comprometido neste sentido com grande prudência. Devido à oposição de muitíssimos bispos, incluindo, por outro lado, os moderados ou conservadores (como o francês Vingt-Trois ou o espanhol Rouco Varela). E de uma revolta silenciosa na Cúria insuflada, dizem, pelo Cardeal Giovanni Battista Re e Dom Fernando Filoni, Substituto (espécie de ministro do interior). A isso se acrescente a extrema reserva de prelados ratzingerianos, mas não sobre esta questão, como o Cardeal William Levada, prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé.
De acordo com certos rumores recentes, o Papa finalmente teria consentido a uma espécie de recuo estratégico sobre a posição de fundo da segunda [tendência], ainda que seja sob a forma mais tradicional possível. O indício mais conclusivo seria a sua renúncia à ideia de celebrar publicamente a missa segundo a forma extraordinária. E o Cardeal Canizarès, até então discreto sobre as suas próprias convicções, faria atualmente de tudo para um esclarecimento do Vaticano a respeito da liturgia antiga no sentido da restrição: basicamente, tratar-se-ia de um regresso à situação anterior a 2007. A forma extraordinária seria justamente tolerada, mas o ideal seria a aplicação estrita da liturgia oficialmente em vigor, tal como codificada nos livros, e expurgada de certas adaptações, e mais ainda das improvisações consideradas inaceitáveis. Em linhas gerais, trata-se de uma posição “conservadora” mas que recusa o regresso a São Pio V e mesmo a idéia de uma nova reforma da reforma, desta vez num sentido mais tradicional. Posição defendida, por exemplo, em Bolonha durante longos anos de um ratzingeriano de ferro, o Cardeal Giacomo Biffi.
Canizarès desejaria, em certa medida, reestabelecer a ordem na liturgia. Punindo os desvios de esquerda, mas limitando também o máximo possível as concessões aos tradis. Seu aliado neste combate seria o prelado maltês da Secretaria de Estado, Mons. Charles Scicluna. O mesmo Scicluna que goza de toda a confiança de Bento XVI por sua recusa a qualquer concessão no dossiê ultra-explosivo dos costumes do fundador dos Legionários de Cristo, Padre Maciel. Scicluna se tornaria o novo secretário da Congregação para o Culto Divino, substituindo o arcebispo americano Joseph Augustine Di Noia, um dominicano, que se tornaria o novo Penitenciário Apostólico, esperando ser criado cardeal por ocasião do próximo consistório. Mons. Scicluna, jovem (52 anos) e intrépido, seria o artesão de uma espécie de aperto de parafusos sem precedentes… mas igualmente em detrimento dos que mantêm a liturgia antiga. Seria “toda a reforma litúrgica e nada além da reforma litúrgica”. Daí preocupar aqueles que permanecem unidos à missa Pia [ndr: referência a São Pio V]! Certamente, um recuo de Bento XVI em relação a tudo que ele escreveu sobre o assunto há mais de um quarto de século. Canizarès e Scicluna estão decididos a impôr de todo maneira aos padres e comunidades que continuam unidos à antiga liturgia a celebração igualmente da nova. Começando por concelebrar com o bispo local.
Um indício acaba de ser dado da forte plausibilidade de tal guinada — que não exclui uma posterior mudança em sentido oposto do mesmo Bento XVI – pela recusa do Cardeal de Madri, Dom Antonio Maria Rouco Varela, em autorizar uma missa na forma extraordinária prevista para o próximo dia 10 de março, na igreja de San Manual e San Benito, em Madri. Esta missa finalmente não ocorrerá, embora os organizadores tenham recebido a garantia da parte do pároco, Pe. José Ignacio Alonso Martínez. Com efeito, o arcebispo de Madri considerava que a missa tradicional só podia ser celebrada exclusivamente em um só lugar, um mosteiro, e não em outro.
Muitos tradicionalistas, e naturalmente os integristas da Fraternidade São Pio X, se dizem inquietos por este momento decisivo de um pontificado que se anunciava mais favorável. Dom Bernard Fellay, bispo outrora sagrado por Dom Lefebvre e Superior desta Fraternidade, parte em cruzada contra Assis III. Segundo com ele, a “verdadeira doutrina católica” não permitiria uma tal impostura. De acordo com Fellay, que está aflito, Bento XVI “entende o ecumenismo da mesma maneira” que Karol Wojtyla, o que em sua boca não tem nada de elogio. Dom Fellay explica esta guinada pelas pressões que o Papa teria sofrido. Segundo as nossas fontes, trata-se antes de um certo destempero moral do Pontífice (casos de pedofilia, perseguições contra os cristãos…) que o faria ao mesmo tempo se concentrar sobre o essencial do anúncio cristão (de onde o bemol sobre a liturgia) e aproximar-se das escolhas de Karol Wojtyla.
Diante destas nuvens que ainda não são negras, mas que se aproximam, o superior do Instituto do Bom Pastor (IBP), o Padre Philippe Laguérie, publica em seu blog um longo texto, bem ao seu estilo, sobre três assuntos importantes: a beatificação de João Paulo II, o decreto de aplicação do Motu Proprio e Assis III. Em vez de reconhecer diretamente certa guinada pontifical que se anuncia, Laguérie, contrariamente que ao que havia insinuado ao qualificar Bento XVI de “Papa tradicionalista”, sugere que o Pontificado atual, com efeito, nunca teria sido o de um grande retorno à tradição:
“Quero sim tratar de todas as guinadas que querem, contanto que me conveçam que efetivamente haja uma guinada. Isso supõe que estejamos em plena linha reta, não é? Concluiria antes que não há nada de novo debaixo do Sol, exceto se, desde o pontificado de Bento XVI, tudo estivesse o melhor dos mundos. Ah, como dizem, se assim fosse…”
Com efeito, o Padre Laguérie nos faz uma bela pirueta. Permitamo-nos interpretar paradoxalmente como um reconhecimento que não ousa falar da decepção cada vez mais maciça do campo traditionalista. E da sua apreensão crescente enquanto se prepara Assis III.