sexta-feira, 1 de abril de 2011

Anjos, diabo, demônios: o que a fé católica ensina sobre eles? (Parte 1)


Vivemos num mundo bastante contraditório, cheio de paradoxos: de um lado, a tecnologia tão espetacularmente desenvolvida, lavando boa parte da humanidade à miopia do materialismo e ao ateísmo. Há tantos e tantos, coitados, que pensam que a ciência é tudo e que nada mais existe fora da matéria e deste mundo físico: vale e é real somente aquilo que é palpável, mensurável, compreensível! Mas (êta mundo doido!), de outro lado, constatamos o renascimento de um certo misticismo, de um gosto pelo religioso, o misterioso e sobrenatural, só que de um modo mítico, mágico, ingênuo. Isso mesmo: uma religiosidade muito parecida com aquela das religiões pré-cristãs, cheia de anjos, demônios, duendes, espíritos e toda esta parafernália mítica e mágica! E, infelizmente, tanto um erro (o materialismo e o ateísmo) quanto o outro (a religiosidade mágica e simplória, quase pagã) tentam os cristãos. Temos hoje discípulos de Cristo extremamente racionalistas e outros, extremamente crédulos, com uma visão ingênua e tola de Deus e de tudo aquilo que diz respeito à fé.
            É neste contexto que decidi, por sugestão de um padre amigo, dedicar alguns artigos àquilo que a fé católica, à luz da Palavra de Deus e da Tradição, afirma sobre os anjos e os demônios. Não é um tema fácil de ser abordado. Vamos seguir o Catecismo e o Magistério eclesial e aprofundá-los com aquilo que a teologia tem de mais recente na sua reflexão sobre este tema.
            A primeira coisa que deve ficar bem clara é que a doutrina sobre os anjos e demônios não faz parte da essência, do núcleo do cristianismo. O centro da nossa fé não é o Diabo ou os anjos, mas Jesus morto e ressuscitado. Se tivéssemos de dizer que os anjos e os demônios não existem, em nada a fé cristã seria afetada! No cristianismo a importância das várias afirmações de fé depende do grau de ligação que tenham com o mistério do Senhor Jesus morto e ressuscitado. Então, não se deve supervalorizar a doutrina sobre os anjos e os demônios! Cada coisa no seu lugar e com a sua devida importância. São Paulo já prevenia os Colossenses neste sentido: “Ninguém vos prive do prêmio, com engodo de humildade, de culto dos anjos, indagando de coisas que viu... ignorando a Cabeça, Cristo... (Cl 2,18s).
            Ainda mais, há alguns pontos que devemos deixar logo assentados, para começar o nosso tema: (1) Deve-se evitar todo antropomorfismo a respeito dos anjos, com base na nossa realidade espácio-temporal. Em outras palavras: não se deve nem se pode imaginar os anjos como os seres humanos. Eles não são humanos, não têm aparência humana nem estão sujeitos ao tempo e ao espaço do modo que nós estamos. Seu modo de existir é diverso do nosso! Quando a própria iconografia mostra os anjos com asas, é para nos recordar isso: eles são de outra natureza, diversa da nossa: não são humanos! (2) Também é indispensável recordar que quando as Escrituras falam nos anjos ou nos demônios, é necessário levar em conta os gêneros literários e o rico simbolismo que envolve tantas vezes a figura destes seres. Então, cuidado para não se tomar tudo simplesmente ao pé da letra! As conclusões seriam ridículas! Querem exemplos? Aquele demônio, apaixonado por Sara e que foge com o cheiro da fumaça do fígado e do coração do peixe (cf. Tb 2,8; 6,14-18); outro exemplo: os querubins com espadas de fogo, que Deus coloca à porta do paraíso (cf. Gn 3,24). Nestes dois casos – e em vários outros – trata-se de símbolos. Demônio não se apaixona nem tem medo de fumaça e querubim não tem espada, nem o paraíso tem porta. A Escritura usa, aqui, uma belíssima linguagem poética e simbólica. (3) Os anjos devem ser considerados sempre como espíritos criados, finitos, limitados, pessoais e autoconscientes, pertencentes a este mundo criado por Deus, dele fazendo parte e sendo parte dele. Os anjos não são divinos, não são pequenos deuses! São criaturas e pertencem a este mundo criado por Deus. (4) Os anjos não são autônomos, não podem ser pensados por si mesmos; segundo a Escritura, eles somente podem ser compreendidos em relação com Deus: estão sempre a seu serviço e só aparecem na Escritura em função do plano de salvação de Deus para a humanidade e para toda a criação. Somente nos interessa a respeito dos anjos aquilo que tem a ver com o plano de salvação de Deus. Saber mais que isso seria vã curiosidade e fazer teologia da besteira! (5) Como criaturas, os anjos existem através de Cristo e para Cristo e somente nele encontram o sentido de sua existência e de sua missão. Também os anjos foram salvos por Cristo, pois somente através de Cristo podem ter acesso à vida de Deus Pai na potência do Espírito Santo. Cristo é Cabeça dos anjos e a graça na qual os anjos foram criados é graça de Cristo, através de quem e para quem tudo foi criado no céu e na terra (cf. Jo 1,3; Cl 1,15ss). Por extensão, é necessário também afirmar que eles são e vivem somente no Espírito do Cristo ressuscitado e somente nele podem encontrar sua plenitude como criaturas, que consiste na comunhão com Deus e com toda a criação! (6) Assim sendo, o modo correto de pensar sobre os anjos e demônios é ligando-os a este mundo criado, já que por sua essência os anjos pertencem ao cosmo e compartilham com o homem a única e mesma história da salvação em Cristo Jesus. A angelologia mostra que o homem se encontra numa comunidade de salvação e de perdição mais ampla que a própria humanidade; desta mesma criação a ser salva em Jesus Cristo, os anjos fazem parte. Se o homem é o cume do mundo visível, nem por isso pode pensar que é o centro da criação ou seu ponto mais alto.
            Vamos adiante! Deixemos logo claro que “a existência de seres espirituais, que a Sagrada Escritura chama habitualmente de anjos é uma verdade de fé” (Catecismo da Igreja Católica, 328). Então, a Igreja crê firmemente que, além dos seres humanos, Deus criou outros seres inteligentes e livres, invisíveis ao nosso mundo, mas também chamados a amar e servir a Deus. Um católico não deve negar a existência dos anjos! Mas, o que a Sagrada Escritura ensina sobre eles?
            Apesar dos textos bíblicos não afirmarem explicitamente a criação dos anjos, estes aparecem simplesmente na história da salvação como criaturas de Deus, de modo particular como seus mensageiros (= malak, em hebraico e angelos, em grego) e realizadores de sua vontade. Então, a palavra “anjo” não indica uma natureza, não quer dizer o que estes seres são em si, mas sim a função que eles têm em relação à humanidade: “são espíritos destinados a servi , enviados em missão para o bem daqueles que devem herdar a salvação” (Hb 1,14). Para a Bíblia, os anjos somente têm interesse enquanto estão a serviço da nossa salvação. Aqui já fica de fora toda aquela especulação boba que a Nova Era faz sobre os anjos! Tudo isso não passa de paganismo barato! Não confundamos os anjos como os cristãos entendem com os espíritos das outras religiões ou os orixás dos cultos afros! Nada a ver! Para nós, os anjos não têm uma ação independente, não fazem simplesmente o que querem, mas estão debaixo das ordens de Deus e como todas as criaturas eles foram criados para Cristo, de modo que ele é seu Cabeça e Senhor (cf. Cl 1,16): Cristo está acima de todos os anjos (cf. Hb 1,5).
            No Antigo Testamento, o Senhor Deus é apresentado muitas vezes como se fosse um soberano oriental com sua corte. É um modo simbólico de representar Deus naquele tempo. Neste contexto, os anjos aparecem como servos (cf. Jó 4,18), santos (cf. Jó 5,1; 15,15; Sl 89,6; Dn 4,10) ou filhos de Deus (cf. Sl 29,1; 89,7). São chamados, por sua missão, “mensageiros” (cf. Gn 19,1; 28,12; 32,2; Sl 103, 20), por sua figura ou aparência, “homens” (cf. Gn 18,2.16; 19,12.16), por sua relação com o Senhor Deus, “príncipes dos exércitos celestiais” (cf. Js 5,14) ou “senhores do céu” (cf. 1Rs 22,19). São todos títulos simbólicos, que devemos usar com cuidado e não ao pé da letra! Há também referências aos querubins (cf. Sl 80,2; 99,1; Ez 10,1s; Sl 18,11; Gn 3,24) e aos serafins – cujo nome significa “ardentes” – que cantam a glória do Senhor (cf. Is 6,7). Os querubins e serafins não são anjos no sentido originário da palavra; por isso no início não recebiam o nome de “anjos”. Somente aos poucos, no judaísmo tardio, foram incluídos no grupo de seres designados por anjos. Ao lado desses enigmáticos mensageiros, os relatos bíblicos mais antigos falam no “Anjo do Senhor” (cf. Gn 16,7; 22,11; Ex 3,2; Jz 2,1) que não é diverso do próprio Senhor Deus, manifestado na terra de modo visível (cf. Gn 16,13; Ex 3,2). Parece que esse “Anjo do Senhor” é um modo respeitoso que a Bíblia tem de falar do próprio Deus, sobretudo nos textos mais antigos. À medida, porém, que a revelação bíblica foi progredindo, o papel desse “Anjo do Senhor” vai sendo sempre mais atribuído aos anjos, mensageiros de Deus. Os anjos são descritos de modo geral pela Escritura Sagrada, como seres incorpóreos (cf. Tb 12,19; Gn 18,9; Sl 78,25; Sb 16,20), por isso não poderiam ser percebidos pelos seres humanos. Além de mensageiros de Deus junto aos homens (cf. 1Cr 21,18; Jó 33,23; Tb 3,17; Dn 14,33) e seu protetores (cf. Dn 3,49; 6,23), acreditava-se que os anjos falassem a Deus em favor dos homens (cf. Jó 33,23s; Tb 12,15). Em resumo, o Antigo Testamento afirma claramente a existência dos anjos, mas não apresenta nenhuma reflexão teórica sobre eles. Seu número é muito grande e eles constituem uma espécie de séquito de Deus, sujeitos ao seu domínio universal. Executam os serviços que Deus lhes confia tanto em cada homem quanto na totalidade do povo (cf. 1Cr 21,18; Tb 3,17; Dn 14,22). Mencionam-se somente os nomes de Miguel, Gabriel e Rafael. Qualquer outro nome de anjo é fora da revelação bíblica!
No Novo Testamento também se fala dos anjos como mensageiros celestes, a serviço da obra de Cristo: toda a obra dos anjos aparece, então, relacionada ao Senhor Jesus e à realização da salvação por ele trazida. Eles transmitem aos homens as incumbências divinas; quando aparecem, apresentam-se normalmente como jovens com brilhantes vestes brancas (cf. Mc 16,5; Mt 28,3; Lc 24,4; Jo 20,12; At 1,10). Grande é seu número (cf. Mt 28,53; Hb 12,22; At 5,11; Mt 22,30; 26,53; Lc 12,8s; 1Tm 5,21; Hb 12,22; 1Pd 3,22; Hb 12,22ss). Acompanham especialmente os acontecimentos da vida de Cristo desde o seu início até sua consumação: o Anjo do Senhor, que em Lucas se chama Gabriel, predisse o nascimento e a missão de João Batista (cf. Lc 1,11-12); o mesmo anjo transmite a Maria a mensagem de que há de ser Mãe de Deus (cf. Lc 1,26ss); o Anjo do Senhor tranqüiliza José a respeito do que o Espírito Santo produziu em Maria (cf. Mt 1,20-25); também foi um anjo quem anunciou aos pastores o nascimento de Jesus e uma multidão de anjos louva a Deus por sua benevolência, às portas de Belém (cf. Lc 2,9-15). É ainda o Anjo do Senhor quem aconselha a José a fuga para o Egito com Maria e o menino e, passado o perigo, transmite-lhe a nova ordem de voltar (cf. Mt 2,13.19s). Anjos servem a Jesus quando este, levado pelo Espírito ao deserto, permanece ali quarenta dias em jejum (cf. Mc 1,13; Mt 4,11). O Pai podia enviar a Cristo mais de doze legiões de anjos, se o Filho lhe pedisse, para livrá-lo do sofrimento que sobre ele caiu no Jardim das Oliveiras. Mas como se cumpriria então a Escritura? (cf. Mt 26,53). Um anjo aparece a Cristo em sua angústia mortal e o conforta (cf. Lc 22,43). Quando as mulheres, na manhã da Páscoa, encontram o sepulcro vazio e ficam confusas, homens com vestes brilhantes aparecem diante delas e lhes anunciam a ressurreição do Senhor (cf. Mc 14,5s; Lc 24,1-7). A estes Mateus e João dão o nome de anjos (cf. Mt 28,2; Jo 20,12). Todos os anjos acompanharão o Senhor quando vier para o julgamento do mundo (cf. Mc 8,38; Mt 25,31; 26,27). O Filho do Homem enviará seus anjos com estrépito de trombetas, e eles ajuntarão os eleitos dos quatro ventos, de extremo a extremo do céu (cf. Mt 13,31.39ss.49; 24,31; Mc 13,27).
Segundo o testemunho de Cristo, as crianças têm os seus anjos no céu (cf. Mt 18,10). O próprio Cristo, como Filho de Deus, está acima de todos os seres angélicos, tanto antes da encarnação como depois de sua exaltação à direita de Deus (cf. Mc 13,27; Ef 1,20s; CI 1,16; 12.10; Hb 1,5-14; 2,1-9; 1Pd 3,22). Segundo o desígnio divino, a Igreja criada por Cristo notificará aos anjos a salvação dos homens (cf. Ef 3,10; 1Tm 3,16). Os anjos alegram-se de que os homens se convertam a Deus (cf. 1Pd 1,12). O Apocalipse de João expõe o grande papel que os anjos desempenham na história da salvação.
            Já vimos o que o Antigo e o Novo Testamento dizem sobre os anjos. É certo que o Novo Testamento acolheu do Antigo a convicção da existência dos anjos e, ao que parece, o próprio Jesus compartilhou de tal convicção, que aliás, não era unânime na sua época (cf. At 23,8). Isto é importante: os saduceus, por exemplo, não aceitavam a existência deles; Jesus, no entanto, como os fariseus, aceitava e ensinava sobre os seres angélicos. Não é possível, então, dizer que Jesus estava simplesmente adaptando-se à mentalidade do seu tempo: nem todos acreditavam em anjos... e, no entanto, Jesus afirmou a existência deles!
            São Paulo, nos seus escritos, segue a convicção do Senhor, e cita também outros grupos de seres celestes: virtudes (cf. Rm 8,38; 1Cor 15,24; Ef 1,21), potestades (cf. 1Cor 15,24; Ef 1,21, Cl 1,16), principados (cf. Rm 8,38; 1Cor 15,24; Ef 1,21; Cl 1,16), dominações (cf. Ef 1,21; Cl 1,16) e tronos (cf. Cl 1,16). Não se estabelece a diferença entre eles; parece que Paulo simplesmente aceita a crença corrente no mundo helênico e julga tais seres a partir de Cristo: se existem, foram criados através de Cristo e para Cristo; se são adorados e cultuados pelos pagãos, Paulo os trata como demônios e os reduz a nada (cf. 1Cor 15,24; Ef 6,12; Cl 2,15). O importante é a primazia absoluta de Cristo. Por isso mesmo, neste contexto, o culto dos anjos é reprovado (cf. Cl 2,18).
            Concluindo o que diz respeito aos dados bíblicos, poderíamos afirmar o seguinte:
(1) A Escritura afirma a existência dos anjos. A revelação bíblica sobre eles tem sempre uma preocupação com o homem: a Bíblia fala de Deus não primeiramente para revelar quem ele é, mas o que faz em nosso favor: o quanto ele é para nós. Ora, o envio dos anjos é apenas um momento deste voltar-se de Deus para o homem e o nosso mundo: eles estão a serviço da salvação (cf. Hb 1,14). É unicamente deste ponto de vista que a Escritura trata dos anjos: enquanto eles servem ao plano de Deus para a nossa salvação. É totalmente ausente da Revelação qualquer tipo de especulação sobre os seres celestes. Seria, então, ímpio e descabido, além de pura perda de tempo, as especulações, como a de muitas seitas ou de correntes de Nova Era.
(2) Servindo ao plano de Deus, a Escritura mostra-nos sempre os anjos em relação à glória da Deus: o Anjo de IHWH evoca a presença amável do Deus de Israel na história, despertando adoração, louvor, ação de graças. Os querubins exprimem a grandeza e onipresença de IHWH; os anjos na liturgia celeste são constante convite ao louvor e à adoração. Assim a angelologia está em função da teologia: só a Deus o louvor e a glória! É preciso, então, que a atenção aos anjos nem de longe concorra com a centralidade de Cristo, o Filho de Deus, nosso único Senhor.
(3) Os nomes dos anjos, mais que exprimirem uma individualidade deles próprios, comunicam uma qualidade de Deus: sua força (Gabriel = força de Deus), sua unicidade (Miguel = quem como Deus?) e seu cuidado compassivo (Rafael = cura de Deus). O vulto dos anjos é análogo ao vulto dos mártires da Igreja: resplandecem da glória que contemplam... que não é outra que a glória de Cristo, Senhor e Salvador de tudo quanto foi criado, inclusive dos anjos!
(4) Todos os textos do Novo Testamento sobre os anjos devem ser vistos num estreito vínculo com o evento Cristo, em relação à sua encarnação, sua presença operante na Igreja e sua vinda na glória: somente como servos de Cristo e de seus discípulos é que os anjos aparece no Novo Testamento.
(5) O serviço dos anjos a Cristo continua no serviço à Igreja e na Igreja (cf. At 5,20; 12,11; 8,26-29; 10,3; 1Cor 4,9). A sua colaboração no caminho histórico da humanidade continuará até que venha a Parusia do Senhor. 

(Continua...)

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