Vejamos, agora, brevemente, o que a Igreja, guiada pelo Espírito Santo do Senhor Jesus e refletindo sobre a Palavra de Deus, ensinou sobre os anjos. Muitos dos antigos Santos Padres falaram sobre eles. Mas o documento mais importante do magistério sobre o assunto é do IV Concílio do Latrão, em 1215: “(O Deus uno e trino é) único princípio do universo, criador de todas as coisas visíveis e invisíveis, espirituais e materiais, que com a sua força onipotente desde o princípio do tempo criou do nada uma e outra ordem de criaturas: as espirituais e as materiais, isto é, os anjos e o mundo terrestre, e depois o homem, como participante de um e de outro, composto de alma e corpo”. O Concílio Vaticano I reafirmou a doutrina do Concílio Lateranense, citando-o textualmente. Outro texto significativo é o Credo do Povo de Deus, professado pelo Papa Paulo VI em 1972, no encerramento do Ano da Fé: “Cremos em um só Deus, Pai, Filho e Espírito Santo, Criador das coisas visíveis, como este mundo, onde se desenrola a nossa vida passageira; Criador das coisas invisíveis, como os puros espíritos, que também denominamos Anjos...”
Depois de tudo quanto vimos até aqui, deve ficar claro que um católico não pode duvidar da existência de seres inteligentes e livres criados por Deus, além do homem. Isso seria uma temeridade, pois negaria a Escritura, a própria convicção do Senhor Jesus e a constante Tradição da Igreja. Deve-se estar atento que a existência dos anjos – ou a sua não-existência jamais poderia ser demonstrada cientificamente. Somente pela fé na Revelação sabemos que além de nós, humanos, o Senhor criou um mundo invisível, no qual também seres inteligentes e livres são chamados à comunhão de amor com Ele, o Deus Uno e Trino, e com toda a criação. Por outro lado, é também contrária ao sentir da Igreja e a uma fé madura, uma visão infantil dos anjos. A própria liturgia da Igreja nos dá a justa medida do lugar e do culto desses seres criados por Deus. Na liturgia há somente duas festas que os recordam: a solenidade dos arcanjos Miguel, Gabriel e Rafael e a memória dos anjos da guarda. Além do mais, de modo discreto, vários textos da Santa Missa citam os anjos, sobretudo os prefácios da Missa.
Para concluir, vejamos algumas afirmações da teologia, com o intuito de refletir de modo mais detalhado sobre os seres angélicos. Recordemos que são pontos da teologia, importantes, mas não necessariamente obrigatórios para o católico.
Quanto à essência angélica, a doutrina mais antiga afirmava que eles tinham um corpo sutil, diverso do nosso não somente no aspecto, como também no tipo, no modo de ser dessa matéria, de tal forma que não poderíamos imaginar como é um anjo. Hoje, a opinião mais comum entre os teólogos é a favor da pura espiritualidade angélica, apesar de haver teólogos que ainda sustentam a opinião em favor de uma corporeidade sutil. O magistério eclesial não tem nenhum pronunciamento dogmático sobre este tema particular, podendo os fiéis opinarem livremente sobre o tema.
Quanto à personalidade dos anjos, pelo que se pode compreender da revelação bíblica, eles possuem um “eu” pessoal, ou seja, têm uma vida consciente, autodomínio e são capazes de relacionar-se com Deus, com os outros anjos e com a humanidade. A tradição eclesial refuta reduzi-los a simples forças ou qualquer coisa do gênero: eles são “eus” reais. Como nome de anjos deve ser usados somente os três que ocorrem na Escritura: Miguel, Rafael e Gabriel. A Igreja também rejeita que os anjos tenham responsabilidade de dirigir os fenômenos da natureza, como os orixás dos cultos afros. Que todo homem tenha um anjo da guarda não é até agora definido pelo Magistério, mas esta é opinião comum da Igreja desde os tempos antigos. Portanto, é prudente afirmar a existência dos Anjos da Guarda. No que concerne à questão se os anjos estão agrupados em ordens distintas, não há nenhum pronunciamento normativo da Igreja sobre o tema e não se deveria especular sobre isso.
Quanto à questão do conhecimento angélico, sem querer entrar em especulação, podemos, seguindo a Escritura, afirmar um modo de conhecimento superior ao nosso por parte dos anjos. A Escritura exprime tal convicção ao descrevê-los cobertos de inumeráveis olhos, como que afirmando que toda a sua essência é ver. Entretanto, os anjos são limitados e, como tais, não penetram nem as profundezas de Deus (cf. 1Cor 2,10) nem as profundezas do homem: este tem uma esfera íntima escondida aos próprios anjos. Sendo finitos, podemos pensar que os anjos podem crescer na sua ciência em relação à historiada salvação. Os anjos não sabem tudo nem podem tudo!
Ligada a este saber superior está também sua vontade: por ser muito mais penetrante que a nossa e por sua força de conhecimento, eles tomam suas decisões de modo simples e total, tendo consciência de todas as conseqüências de seus atos, de modo que suas escolhas são irrevogáveis nas suas opções: um anjo não pode se arrepender em suas decisões.
Finalmente, quanto à oração aos anjos, os cristãos e toda a Igreja os invocam, já que eles, como os santos, fazem parte da única comunidade de salvação, reunida e vivificada no Espírito Santo do Cristo morto e ressuscitado. Os anjos rezam por nós e nós podemos rezar para eles, como fazemos para os santos de Cristo.
Concluindo, não poderíamos deixar de salientar mais uma vez que as afirmações dos cristãos sobre os anjos haverão de ser sempre fundamentadas e limitadas pela Escritura Sagrada, sem se perder em especulações que a fariam descambar para o mito, a crendice e o esoterismo. É necessária também certa reserva em relação a algumas opiniões excessivas dos antigos Padres da Igreja e de alguns teólogos, inclusive atuais. Ao se falar dos anjos é necessária modéstia: somente podemos afirmar aquilo que a Escritura e a Tradição da Igreja autorizam! Um cristão que deseje ter uma fé madura não mais pode atribuir aos anjos fenômenos que são deste mundo e podem, com tranqüilidade, ter uma explicação natural, o que não significa negar-lhes a ação neste mundo. Como quer que seja, as ciências nunca poderão provar a existência dos anjos e nós sabemos da sua existência somente pela fé.
Se é verdade que a doutrina sobre os anjos não faz parte das doutrinas centrais da fé e não deve ser demasiadamente enfatizada na pregação, é também verdade que tem seu sentido próprio, pois ilustra a vontade de Deus de se comunicar aos homens em Jesus Cristo já a partir da criação. A fé na existência e ação dos anjos leva-nos também a confessar o quanto é limitada a realidade vista por nós e que o Reino de Deus é mais amplo que a realidade que conhecemos. Seria triste se reduzíssemos a realidade e a criação àquilo que nós vemos e tocamos.
Uma coisa é certa: tudo foi criado através de Cristo e para Cristo e, como nós, somente nele tudo encontra o sentido e a realização: “Jesus Cristo é a Imagem do Deus invisível, o Primogênito de toda criatura, porque nele foram criadas todas as coisas, nos céus e na terra, as visíveis e invisíveis: Tronos, Soberanias, Principados, Autoridades, tudo foi criado por ele e para ele. Ele é antes de tudo e tudo nele subsiste” (Cl 1,15-17).
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Depois de ter apresentado a fé da Igreja sobre os anjos, vamos fazer o mesmo para os demônios. Se não é fácil falar equilibradamente sobre os anjos, bem mais difícil é apresentar nos dias atuais, de modo sério e teologicamente consistente, o que a consciência da Igreja afirma sobre o Diabo e os demônios. É importante, desde já, observar que, se a fé cristã crê na existência dos anjos como criaturas livres, é plenamente compreensível a afirmação da Igreja que alguns desses anjos tenham dito “não” ao chamado amoroso de Deus à comunhão com ele. Mas, atenção: nós não devemos especular sobre o que teria sido este “não” a Deus. A Igreja não faz nunca tal especulação! Uma coisa é certa: se tudo foi criado através de Cristo e para Cristo (cf. Cl 1,16) e se Cristo é Cabeça dos anjos e dos homens, então a comunhão dos anjos com Deus ou a perda de comunhão com ele somente pode acontecer através de Cristo e em Cristo. O “sim” ou “não” dos anjos a Deus somente pode se dar em Cristo! Como foi este “sim” e este “não”, não sabemos. A Escritura não é um conjunto de livros para matar nossa curiosidade, mas a revelação de Deus para a nossa salvação; nela é revelado somente aquilo que é importante para o nosso “sim” a Deus. Uma coisa é certa: não se deve pensar no Diabo e nos demônios como seres iguais a Deus em poder ou como seus concorrentes poderosos. O Diabo somente existe porque Deus o criou e permite que ele continue existindo. Os seres diabólicos são seres criados bons e que usaram mal a sua liberdade; eles somente continuam existindo porque Deus continua a amá-los, já que o Senhor é fiel ao seu amor e, uma vez tendo amado, não deixa nunca de amar: o seu nome é Fidelidade, o seu nome é Amor! Então, quando a fé e a teologia cristãs falam sobre o Diabo e seus anjos não é para amedrontar ou fazer especulações fantasiosas mas, ao contrário, para desmascarar o medo e a importância que o mal possa dar ao mal (cf. Jo 12,31). Um cristão maduro e consciente não fica fascinado pelo diabólico, amedrontado, vendo o Diabo em tudo, falando do Diabo o tempo todo, fazendo exorcismo a cada momento! Isso seria superstição e desconhecimento do sentido do Cristo e de seu senhorio! Em Cristo, o mal é desmascarado, perde seu segredo e sua aura apavorante: Cristo é a luz que desmoraliza e desmascara o aparente poderio do mal: “Morte, onde está a tua vitória? Morte, onde está o teu aguilhão?” (1Cor 15,55). A Morte aqui é o Inferno, o Maligno, o Pecado! Somente Cristo é Vencedor e Senhor! Mais uma vez: é proibido ao cristão pensar o demoníaco como um poder contrário a Deus, do mesmo nível que ele e com faculdades de entrar em luta ou em diálogo com ele. O Diabo não tem diálogo nem comunhão com o Senhor Deus: somente a criatura que vive na graça tem tal possibilidade de relação com Deus! Supervalorizar o Diabo é desconhecer o senhorio de Cristo Jesus: ele não é um adversário do Diabo; ele, o Senhor, é o Vencedor!
No Antigo Testamento os termos hebraicos “Satã” ou “Satanás” ou o grego “Diabo” (= aquele que confunde, perturba, desconcerta, desorienta) indicam um ser espiritual malvado, muitas vezes rodeado por muitos demônios que dele dependem e agem sob seu comando. As idéias a respeito do Diabo e seus demônios foi evoluindo aos poucos nas Escrituras Sagradas. Por exemplo, completamente subalterno a Deus, Satã já é apresentado no livro de Jó como uma vontade hostil não ao próprio Deus, mas ao homem: ele não acredita no amor desinteressado (cf. Jó 1-3). Em Zc 3,1-5 ele já é apresentado como verdadeiro adversário dos desígnios do amor de Deus para com Israel. Em 2Cr 21,1, a peste, que na concepção mais antiga era tida como obra do Senhor, é atribuída a esse instrumento da catástrofe e da destruição que já possui um nome próprio - Satã. Em Sb 2,24 é dito claramente que a entrada da morte no mundo deveu-se à inveja do Diabo! Mais tarde, nos escritos do povo judeu e nos ensinamentos dos rabinos um pouco antes do nascimento de Jesus, no período chamado judaísmo tardio, Satã era apresentado como inimigo e sedutor do homem e se esperava a sua derrota no final dos tempos. Satã era visto como alguém que age mal e tem ódio pelos homens; era considerado o príncipe dos espíritos maus (os demônios), de modo que o homem deveria saber distinguir entre os anjos do Senhor e os de Satã. No escrito apócrifo sobre a vida de Adão e Eva, Satã aparece como o tentador que fala através da serpente do Paraíso. Quando Adão pergunta o motivo de seu ódio pelos homens, ele responde que Miguel o expulsou do céu porque se recusara a adorar o homem, imagem de Deus.
O Novo Testamento serve-se freqüentemente das idéias do judaísmo, muitas vezes numa linguagem simbólica, para chamar atenção sobre a urgência de abrir-se para o Reino de Deus trazido por Jesus, expulsando de nossa vida e da vida do mundo o Reino de Satanás: ódio, morte, violência, prepotência e todo o poder do mal moral no mundo.É muito importante compreender que a essência dos textos do Novo Testamento é o anúncio da salvação; os textos que falam de Satanás, são uma advertência para a necessidade e a urgência de decidir-se pelo Reino de Deus! Então, os textos que falam sobre Satã e os demônios jamais podem ser considerados como tendo a mesma importância dos textos que anunciam a salvação: eles são simplesmente o contraponto que alerta para a responsabilidade humana e a possibilidade concreta que temos de dizer um “não” a Deus! Nos evangelhos sinóticos (Mateus, Marcos e Lucas), o diabo é chamado “o Inimigo” (cf. Mt 13,36; Lc 10,19) e “o Maligno” (cf. Mt 6,13; 13,19.38) e, nos escritos joaninos, ainda mais intensamente, o Diabo é denominado “o Príncipe deste mundo” (cf. Jo 12,31; 14,30; 16,11; 17,15; 1Jo 2,13s; 5,18) e, portanto, o Adversário da obra da redenção do Filho encarnado (cf. 1Jo 3,8; 3,10). A própria vida e missão de Jesus são apresentadas como uma luta contra Satanás e seu reino: o objetivo de Jesus é a vitória do homem sobre o Diabo, reduzindo-o à impotência.
A Escritura fala em Diabo, Satanás, por um lado, e sempre no singular e, por outro, refere-se aos demônios, também no plural. Que pensar desses demônios? Quem são? Separemos o teológico do mitológico, próprio das culturas antigas!
Era comum a crença em demônios nas culturas do antigo Oriente. Culturas pré-científicas, davam uma feição pessoal a inúmeras forças obscuras que se pensava presentes por trás dos males que assaltam o homem: as várias doenças, sobretudo aquelas mentais, as forças da natureza, tudo isso era personificado, sendo atribuído aos demônios. Praticavam-se, então, ritos mágicos, como parte da medicina, para livrar as pessoas e controlar tais demônios: toda doença era atribuída a um tipo de demônio.
No Antigo Testamento fala-se em demônio do deserto (cf. Lv 16,8-26), da noite (cf. Is 34,14),do meio-dia (cf. Sl 91,6) e outros tantos demônios nocivos (cf. 2Cr 11,15; Is 2,6; Sl 106,6), exprimindo-se, assim, uma clara relação com a natureza. Observe-se que aqui a Escritura não deseja ensinar uma doutrina sobre os demônios, mas simplesmente exprime as crenças populares daquela época. É importante notar que a severa proibição da magia na Lei de Moisés tendia a excluir a doutrina e a prática demonológicas em Israel. A crença nos demônios, portanto, não se refletia de modo importante no Antigo Testamento, salvo em algumas alusões presentes na linguagem popular e em algumas referências à superstição entre os hebreus (cf. Dt 32,17; Sl 106,37; Is 13,21; 34,14). Os profetas protestaram energicamente contra uma visão pagã de tais demônios, na qual eles eram tidos até mesmo como deuses. Além de não falar quase nada sobre demônios, quando fala neles o Antigo Testamento afirma sempre que são subordinados ao Senhor Deus. Nesta linha o judaísmo os vê como espíritos maus, identificados com os ídolos estrangeiros, capazes de seduzir o homem. A literatura dos judeus extra-bíblica demonstra uma crença forte nos demônios e os via como anjos decaídos. Em muitos aspectos tais crenças eram influenciadas pelos mitos da Mesopotâmia e da Grécia. Os demônios eram também identificados com os filhos de Deus que casaram com as filhas dos homens (cf. Gn 6,1-4), de cuja união teriam nascido os gigantes folclóricos da mitologia. Acreditava-se que tais demônios são responsáveis pelas doenças e pelas desgraças. Eles estariam organizados em um reino, sob um chefe chamado Mastema, Belial ou Satanás! Note-se bem que tais crenças eram convicções populares e não doutrina teológica da Escritura! O Novo Testamento adotou a linguagem do judaísmo da sua época, mas purificou-a, adaptando-a à sua missão: os demônios são espíritos impuros que se opõem ao advento do Reino de Deus instaurado por Jesus (cf. Mc 3,22-30); por isso ele os expulsa como sinal do Reino que começa a se fazer presente (cf. Lc 11,20). O ensinamento teológico é importante: onde entra o Reino de Deus que Jesus veio trazer, o reino de Satanás e tudo aquilo que demoniza a vida do homem é expulso! A Páscoa de Jesus é vitória que destruiu tais potências demoníacas (cf. 1Cor 15,23-28; Cl 2,15). Em outros textos neotestamentários, as vítimas dos sacrifícios pagãos são imoladas aos demônios (cf. 1Cor 10,20s) e os demônios são apresentados como espíritos sedutores, responsáveis por falsas doutrinas (cf. 1Tm 4,1); eles chegam mesmo a fazer maravilhas (cf. Ap 16,14), são chamados “anjos de Satanás” (cf. Mt 25,41) e lhes está reservado o fogo eterno. Quanto aos principados, tronos, autoridades, soberanias, dominações e autoridades (cf. Rm 8,38; 1Cor 15,24; Ef 1,21; 3,10; 6,12; 1,16; Cl 2,10) são de difícil compreensão. O importante é que o Novo Testamento afirma diante deles o absoluto primado de Cristo: se são perversos, foram subjugados por Cristo; se são bons, têm a Cristo como cabeça e estão a seu serviço! Um cristão jamais valoriza os demônios ou se fixa neles, jamais vive falando neles ou os teme: Cristo é o Senhor, Cristo é o centro de tudo e tudo que existe é a ele submetido!
Aqui é necessário perguntar: até que ponto o Novo Testamento, ao falar em Satanás e em demônios, utiliza uma linguagem simbólica da mitologia para personificar o mal? Satanás e seus demônios são seres reais ou somente símbolos do mal e dos males presentes no mundo? Vamos responder a isto mais adiante!
Antes, vejamos o que ensinaram os Padres da Igreja, aqueles santos doutores da Igreja Antiga. O Diabo é chamado sobretudo Satanás, o Maligno, Lúcifer (o portador da luz; isto com base numa exegese inexata de Is 14,12 e Jó 41,10). Metódio chama-o “faraó”, Basílio o denomina “misantropo” (inimigo dos homens, ser anti-social) e muitos outros o identificam com a serpente de Gn 3 e 2Cor 11,3. No que diz respeito aos demônios, os Padres os consideram anjos decaídos, vítimas do desejo de possuir as filhas dos homens. Quanto ao Magistério da Igreja, impelido pelos erros dualistas dos hereges priscilianos, o Papa Leão I, ensinou em 447, que o diabo não é uma substância originária saída de modo autônomo do caos: ele é criatura de Deus, essencialmente boa, que fez mau uso de sua liberdade. Em outras palavras: o Diabo é criatura de Deus, essencialmente bom, mas que se perverteu pelo mau uso de sua liberdade. Assim, ensinava Inocêncio III, o seu pecado é estruturalmente igual ao dos homens: um ato de livre vontade: “Nós cremos que o Diabo tornou-se mau não por predisposição, mas por livre escolha”. O Sínodo de Braga, em 561 já ensinava igual doutrina e rejeitou a opinião segundo a qual o Diabo seria o responsável pelos trovões, raios e temporais ou, ainda, pela formação do corpo humano no seio materno! Declaração infalível da Igreja sobre o assunto é a do IV Concílio Lateranense em 1215: “O Diabo e os outros demônios foram criados por Deus naturalmente bons e tornaram-se maus por sua própria culpa. E o homem pecou por sugestão do Diabo”. A intenção do Concílio era condenar a heresia dualista dos cátaros e albigenses: estes afirmavam que a matéria não é obra de Deus e que o Diabo e os demônios também não são criaturas de Deus: eram perversos e incriados ou chamados à existência por um princípio do mal anti-divino, independente de Deus. O ensinamento primário do concílio é muito sóbrio: ele ensina que há um só princípio, um só criador de tudo quanto existe: Deus, criador de todo o bem. O mal não vem de Deus, mas do mau uso da liberdade por parte da criatura. Assim, afirma-se a qualidade positiva da criação: tudo que existe vem de Deus e é radicalmente bom!. O concílio não diz nada sobre o número dos demônios, sobre sua culpa ou a extensão de seu poder. Em outras ocasiões o Magistério pronunciou-se sobre o Diabo, mas somente de passagem: ele é o soberano do império da morte e de todo o mal moral presente no mundo; ele é sujeito a uma condenação perpétua.
Quanto ao modo de ação do Diabo e seus anjos no mundo, a teologia clássica e o Magistério ordinário afirmam três modos diversos: (1) a tentação, que se faz à maneira de sugestão, que desperta normalmente uma inclinação para o mal. Mas só há pecado quando a pessoa consente na tentação; (2) a obsessão, ação diabólica apenas exterior, na qual a vítima é atormentada fisicamente, sem que perca o domínio sobre os atos do seu corpo: um tipo de doença, de dor, de mal-estar, que não apresenta causa natural, e (3) a possessão, na qual o demônio se serve do corpo da pessoa, como esta mesma o faria: move-o, fala, atua, sem que o possesso consiga resistir a isso, embora sua vontade permaneça inatingida. Convém ressaltar que não há nenhuma declaração solene da Igreja sobre temas como a possessão e a obsessão.
Diante de tudo quanto já vimos nas Escrituras, nos Santos Padres e no Magistério da Igreja, podemos perguntar: hoje em dia, com o desenvolvimento das ciências psíquicas, com o desenvolvimento científico e tecnológico, tem sentido ainda pensar que o Diabo e seus demônios sejam seres pessoais?
Alguns teólogos e estudiosos da Bíblia mostram-se hoje propensos a negar a existência individual do Diabo: ele seria apenas uma manifestação concreta e simbólica do mal moral no mundo, expressa numa cultura e numa linguagem pré-científicas pelos escritos do Novo Testamento; seria apenas um modo mitológico para representar o mal presente no mundo, mal tão forte e atuante , que ultrapassa a simples soma dos males individuais. Segundo esses estudiosos, na atual sociedade científica pensar num ser não humano que é pervertido, perverso e perversor, seria uma concepção ingênua, insustentável e desnecessária! Há outros teólogos mais moderados que afirmam que ainda que o Diabo não exista como indivíduo, é absolutamente necessário continuar falando nele, como símbolo do mal que ultrapassa a mera soma das opções negativas das liberdades individuais e das maldades dos homens: o mal desencadeado pelo mau uso da liberdade humana teria uma tal força e dinamismo que já não está mais sob o controle do homem, mas se constitui uma realidade como que autônoma, independente de nossa vontade. Por isso seria importante dar a este mal incontrolável, que ultrapassa as forças do homem, uma cara e um nome: Diabo! Mas, que pensar de tais tentativas de compreender a questão do Diabo? São de acordo com a Escritura e com o Magistério da Igreja?
Já vimos que, segundo a maioria dos teólogos, a existência dos anjos é verdade de fé definida pela Igreja. Então, torna-se muito difícil negar a existência individual de Satã e seus anjos sem ferir a fé eclesial! Como já foi dito anteriormente, se existem liberdades criadas além da humanidade e se estas liberdades, apesar de superiores às do homem, são também limitadas, finitas, então é necessário afirmar que tais liberdades são capazes de um “não” a Deus e é plenamente lícito supor que algumas de tais liberdades tenham, efetivamente, respondido de modo negativo a Deus, afastando-se dele de modo definitivo! É isto que de modo constante a Escritura Sagrada e a Tradição da Igreja ensinam! O próprio Catecismo da Igreja reflete tal convicção: ”Por trás da desobediência de nossos pais, há uma voz sedutora que se opõe a Deus. A Escritura e a Tradição da Igreja vêem neste ser um anjo caído chamado Satanás ou Diabo... O Diabo e os outros demônios foram criados naturalmente bons por Deus, mas por si mesmos se tornaram malvados” (Catecismo, 391 – aí o texto cita o Concílio Lateranense IV). Assim, deve-se manter firmemente como sendo parte da fé católica a afirmação da existência do Diabo e seus demônios. No entanto, é necessária a moderação e um mais cuidadoso senso crítico nas afirmações que muitas vezes são feitas sobre o Diabo e os demônios. Há grupos de cristãos que fazem tanta propagando do Diabo, falam tanto em possessão e coisas do gênero, têm uma visão tão infantil e tola sobre estes temas, que chegam perto da heresia! A fé não nos deve fazer tolos e infantis!
(Continua...)
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