domingo, 3 de abril de 2011

CONFISSÕES DE SANTO AGOSTINHO - Parte 16

CAPÍTULO VI
 O absurdo dos horóscopos 
 

  Também já havia rechaçado as enganosas predições e ímpios delírios dos astrólogos. 
  Ainda por isso, meu Deus, quero confessar-te tuas misericórdias desde o mais íntimo de minha alma! Foste tu, e só tu – pois, quem pode afastar-nos da morte do erro, senão a Vida que desconhece a morte, a Sabedoria que ilumina as pobres inteligências sem precisar de outra luz, e que governa o mundo até as folhas que tremulam  nas árvores? Foste tu que medicaste a obstinação com que me opunha ao sábio velho Vindiciano e ao magnânimo jovem Nebrídio, que diziam – o primeiro, com veemência, o segundo com alguma hesitação, mas frequentemente – não existir a tal arte de predizer as coisas futuras, e que as conjecturas dos homens muitas vezes têm concurso do acaso e que, de tanto repetir, acertavam em predizer algumas coisas, sem que os mesmos que as diziam o soubessem.

  Foste tu que me fizeste encontrar um amigo mui afeiçoado a consultar os astrólogos, não entendido nessa ciência, mas que consultava por curiosidade. Conhecia ele uma história, que ouvira do pai, segundo dizia. Ignorava ele até que ponto essa história era valiosa para destruir a autoridade daquela arte. 
  Esse homem, chamado Firmino, educado nas artes liberais e instruído na eloqüência, veio-me consultar, como amigo íntimo, sobre alguns assuntos nos quais alimentava esperanças mundanas, para ver qual seria meu vaticínio conforme suas constelações, como eles dizem. Eu, que já começara a me inclinar à opinião de Nebrídio, embora não me negasse a fazer-lhe o horóscopo e expor-lhe as suas conclusões, acrescentei, contudo, que estava quase persuadido de que tudo aquilo era ridícula quimera. 
  Então, ele me contou que seu pai tinha grande interesse na leitura de tais livros, e que tivera um amigo igualmente apaixonado. Conversando sobre a matéria, empolgaram-se cada vez mais no estudo daquelas tolices, e chegaram ao ponto de observar os momentos do nascimento até dos animais domésticos, notando a posição das estrelas a fim de coligir dados experimentais daquela pseudo-arte. 
  Firmino me relatava ter ouvido o pai contar que, estando sua mãe para o dar à luz, também estava grávida uma serva daquele amigo de seu pai, coisa que não poderia passar despercebida a seu senhor, que cuidava com extrema diligência e precisão de conhecer até o parto das cadelas.   
  E sucedeu que, contando com o maior esmero os dias, horas e suas menores parcelas, da esposa e da escrava, ambas as mulheres deram à luz no mesmo momento, o que os obrigou a fazer, até em seus menores detalhes os mesmos horóscopos para os nascidos, um para o filho e outro para o pequeno servo. 
  Tendo começado o trabalho de parto, informaram um ao outro o que se passava em suas casas, e enviaram mensageiros um ao outro, a fim de anunciar com igual rapidez o nascimento das crianças; e conseguiram-no fazer facilmente, como se o fato se passasse em suas próprias casas. E Firmino contava que os mensageiros que haviam sido enviados vieram a se encontrar à mesma distância de suas respectivas casas, de modo que não se podia notar a menor diferença na posição das estrelas, assim como nas demais frações de tempo. No entanto Firmino, como filho de grande família, corria pelos mais brilhantes caminhos do mundo, crescia em riquezas e era coberto de honras, ao passo que o escravo, sujeito ainda ao jugo da escravidão, tinha que
servir a seus senhores, segundo ele próprio contava, pois o conhecia. 
  Ouvindo essa história, na qual acreditei pelo crédito que merecia seu narrador – toda minha resistência se quebrou. Esforcei-me em seguida para afastar Firmino daquela vã curiosidade, dizendo-lhe que, pelo seu horóscopo e para ser verdadeiro, deveria certamente considerar a seus pais como os primeiros entre seus concidadãos; o renome da sua família, a mais nobre da cidade; seu nascimento ilustre, sua educação esmerada e seus conhecimentos nas artes liberais. E, pelo contrário, se aquele servo me consultasse sobre o tal horóscopo – que era o mesmo de Firmino – se também tivesse de lhe dizer a verdade – deveria ver nos mesmo signos sua família paupérrima, sua condição servil e tantas outras coisas, tão diferentes e opostas às
primeiras. 
  Portanto, para dizer a verdade, vendo os mesmos sinais celestes deveria tirar conclusões divergentes, porque fazer prognósticos semelhantes seria mentir. 
  De onde concluí, com toda certeza, que as predições verdadeiras não podem atribuir a uma arte, mas ao acaso, e que as falsas não se devem à ignorância dessa arte, mas à mentira do acaso. 
  Após esta abertura e nela baseado, ruminava dentro de mim tais coisas, para que nenhum daqueles loucos que buscam nisso o lucro, e a quem eu então desejava refutar e ridicularizar, não me objetasse que Firmino ou o pai podia ter contado mentiras. Voltei pois minha atenção ao caso dos gêmeos, muitos dos quais saem do seio materno com tão breve intervalo de tempo, que por mais que o pretendam importante, não pode ser apreciado pela observação humana, nem pode ser considerado nos signos que o astrólogo lançará mão para fazer uma previsão certa. Mas os vaticínios não serão verdadeiros pois, vendo os mesmos signos, deveria predizer a mesma sorte para Esaú e Jacó, sendo que os sucessos da vida de ambos foram muito diversos. 
  O astrólogo, portanto, deveria prognosticar coisas falsas, ou, no caso de falar coisas verdadeiras, estas forçosamente deveriam ser diferentes, a despeito da identidade das observações. Logo, se seus prognósticos fossem verdadeiros, não o seriam por efeito da arte, mas do acaso. Porque tu, Senhor, governador justíssimo do Universo, por inspiração secreta, desconhecida dos consulentes e astrólogos, fazes que cada um ouça a resposta que lhe convém, de acordo com os méritos das almas, do fundo do abismo de teu justo juízo. E que o homem não se atreva a dizer: Que é isto? Por que isto? Não o diga, não o diga, porque é um simples homem. 

CAPÍTULO VII
Ainda a origem do mal


  Deste modo, ó meu auxílio, já me havias libertado daqueles grilhões. Contudo eu buscava ainda a origem do mal, e não encontrava solução. Mas não permitias que as vagas de meu pensamento me apartassem da fé. Fé na tua existência, na tua substância imutável, na tua providência para os homens, e na tua justiça que os julgará. Já acreditava que traçaste o caminho da salvação dos homens, rumo à vida que sobrevém depois da morte, em Cristo, teu Filho e Senhor nosso, e nas Sagradas Escrituras, recomendadas pela autoridade de tua Igreja Católica. 
  Salvas e fortemente arraigadas estas verdades em meu espírito, buscava eu ansiosamente a origem do mal. E que tormentos, como que de parto, eram aqueles de meu coração! Que gemidos, meu Deus! E ali estavam teus ouvidos atentos, e eu não o sabia. Quando, em silêncio, me esforçava em pacientes buscas, altos clamores se elevavam até tua misericórdia: eram as silenciosas angústias de minha alma. 
  Tu só sabes o que eu padecia, mas homem algum o sabia. De fato, quão pouco era o que minha palavra transmitia aos meus amigos mais íntimos! Chegava, porventura, a eles o tumulto de minha alma, que nem o tempo, nem as palavras bastavam para declarar? Contudo, chegavam a teus ouvidos as queixas que em meu coração rugiam, e meu desejo estava diante de ti, mas a luz de meus olhos não estava contigo, porque ela estava dentro, e eu olhava para fora. Ela não ocupava espaço algum, e eu só pensava nas coisas que ocupam lugar, e não achava nelas lugar de descanso, nem me acolhiam de modo que pudesse dizer: “Basta, Aqui estou bem!” – Nem me permitiam que eu fosse para onde me sentisse satisfeito. Eu era superior a estas coisas, mas sempre inferior a ti. Serias minha verdadeira alegria se eu te fosse submisso, pois sujeitasse a mim tudo o que criaste inferior a mim. Tal seria o justo equilíbrio e a região central de minha salvação: permanecer como imagem tua, e servindo-te, ser o senhor de meu corpo. Mas, como me levantei soberbamente contra ti, investindo contra meu Senhor coberto com o escudo de minha dura cerviz, até mesmo as criaturas inferiores se fizeram superiores a mim, e me oprimiam, e não me davam um momento de alívio e de descanso. 
  Quando as olhava, elas me vinham ao encontro atabalhoadamente de todos os lados; mas quando nelas me concentrava, tais imagens corporais me barravam para que me retirasse, como se me dissessem: “Para onde vais, indigno e impuro?” E estas recobravam forças com a minha chaga, porque humilhaste o soberbo como a um homem ferido. Minha presunção me separava de ti, e meu rosto de tão inchado, fechava meus olhos.

CAPÍTULO VIII
A piedade de Deus


  Mas tu, Senhor, permaneces eternamente, e não te iras eternamente contra nós, porque te compadeceste da terra e do pó, e foi de teu agrado corrigir minhas deformidades. Tu me aguilhoavas com estímulos interiores para que estivesse impaciente, até que por uma visão interior, te tornasses para mim uma certeza. O inchaço de meu orgulho baixava graças à mão secreta de tua medicina; a vista de minha alma, perturbada e obscurecida, ia sarando dia a dia graças ao colírio das dores salutares. 

CAPÍTULO IX
Agostinho e o neoplatonismo


  Primeiramente, querendo tu mostrar-me como resistes aos soberbos e dás tua graça aos humildes, e com quanta misericórdia ensinaste aos homens o caminho da humildade, por se ter feito carne teu Verbo, e ter habitado entre os homens, me fizeste chegar às mãos por meio de um homem inchado de monstruoso orgulho, alguns livros dos platônicos, traduzidos do grego para o latim. 
  Neles eu li – não com estas palavras, mas substancialmente o mesmo e expresso com muitos e diversos argumentos – que “no princípio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus. Este estava desde o princípio em Deus. Todas as coisas foram feitas por ele, e sem ele nada foi feito do que foi feito. O que foi feito é vida nele, e a vida era a luz dos homens. E a luz brilha nas trevas, mas as trevas não a compreenderam. Diziam também que a alma do homem, embora dê testemunho da luz, não é a luz, mas o Verbo, Deus, é a verdadeira luz, que ilumina a todo homem que vem a este mundo. E que neste mundo estava, e que o mundo é criatura sua, e que o mundo não o conheceu. 
  E que ele veio para sua morada, e que os seus não o receberam, e que a quantos o receberam deu o poder de se fazerem filhos de Deus, desde que acreditem em seu nome, isto não o li nesses livros. 
  Também neles li que o Verbo, Deus, não nasceu da carne nem do sangue, nem da vontade do varão, mas de Deus. Mas que o Verbo se fez carne, e habitou entre nós, isso não o li naqueles livros. 
  Igualmente achei nesses livros, dito de diversos e múltiplos modos, que o Filho, consubstancial ao Pai, não considerou usurpação ser igual a Deus, porque o é por natureza. Não dizem porém que se aniquilou a si mesmo, tomando a forma de escravo, que se fez semelhante aos homens, sendo julgado homem por seu exterior; e que se humilhou, fazendo-se obediente até a morte, e morte de cruz, pelo que Deus o ressuscitou entre os mortos, e lhe deu um nome acima de todo nome, para que ao nome de Jesus se dobrem todos os joelhos no céu, na terra e no inferno, e toda língua confesse que o Senhor Jesus está na glória de Deus Pai.   Neles se diz também que antes e sobre todos os tempos, teu Filho único permanece imutável, eterno consigo, e que de sua plenitude recebem as almas para sua bem-aventurança e que, para serem sábias, são renovadas participando da sabedoria que permanece em si mesma. Mas não se encontra escrito ali que morreu, no tempo marcado, pelos ímpios, e que não perdoaste a teu Filho único, mas que o entregaste por todos nós. Porque escondeste estas coisas aos sábios e as revelastes aos humildes, a fim de que os atribulados e sobrecarregados viessem a ele, para que os reconfortasse, porque ele é manso e humilde de coração. Dirige os pequenos na justiça e ensina aos mansos seu caminho, vendo nossa humildade e nosso trabalho, e
perdoando todos os nossos pecados. 
  Mas aqueles que, erguendo-se sobre uma doutrina, digamos, mais sublime, não ouvem ao que lhes diz: Aprendei de mim que sou manso e humilde de coração, e encontrareis descanso para vossas almas. E ainda que conheçam a Deus, não o glorificam como Deus, nem lhe dão graças, mas se desvanecem em seus pensamentos, e seu coração insensato se obscurece; e dizendo que são sábios, se tornam estultos.
  E por isso lia também nesses livros que a glória de tua natureza incorruptível havia sido transformada em ídolos e simulacros de todo tipo, à semelhança da imagem do homem corruptível, das aves, dos quadrúpedes e serpentes. Isto é, naquele alimento do Egito pelo qual Esaú perdeu sua primogenitura. Israel, teu povo primogênito, voltando o coração para o Egito, honrou em teu lugar a cabeça de um quadrúpede, curvando tua imagem, isto é, a própria alma, diante da imagem de um bezerro comendo feno. 
  É o que encontrei nesses livros, mas delas não me alimentei, porque agradou-te, Senhor, tirar de Jacó o opróbrio de sua inferioridade, para que o maior servisse ao menor, chamando os gentios para tua herança.
  Também eu vinha dentre os gentios para ti, e interessei-me pelo ouro que, por tua vontade,
teu povo trouxera do Egito, pois era teu onde quer que estivesse. E disseste aos atenienses, por boca de teu Apóstolo, que em ti vivemos, nos movemos e temos nosso ser, como alguns deles o disseram, e é deles que vinham os livros que me ocupavam. Mas não me fixei nos ídolos dos egípcios, aos quais sacrificavam, com teu ouro, os que mudaram a verdade de Deus em mentira, adorando e servindo ante à criatura do que ao Criador. 

CAPÍTULO X
A descoberta de Deus 


  Estimulado por estas leituras a voltar a mim mesmo, entrei, guiado por ti, no profundo de meu coração, e o pude fazer porque te fizeste minha ajuda. Entrei, e vi com os olhos da alma, acima desses mesmos olhos, acima de minha inteligência, a luz imutável; não esta vulgar e visível a todos os olhos de carne, nem outra do mesmo gênero, embora maior. Era muito mais clara e enchendo com sua força todo o espaço. Não, não era esta luz, mas uma luz diferente de todas estas. 
  Ela não estava sobre meu espírito como o azeite sobre a água, como o céu sobre a terra, mas estava acima de mim porque me criou; eu lhe era inferior por ter sido criado por ela. Quem conhece a verdade conhece a luz, e quem a conhece, conhece a eternidade. O amor a conhece!
  Ó eterna verdade, amor verdadeiro, amada eternidade! Tu és meu Deus. Por ti suspiro dia e noite. Quando te conheci pela primeira vez, ergueste-me para me fazer ver que havia algo para ser visto, mas que eu ainda era incapaz de ver. E deslumbraste a fraqueza de minha vista com o fulgor do teu brilho, e eu estremeci de amor e temor. Pareceu-me estar longe de ti numa região desconhecida, como se ouvira tua voz do alto: “Sou o pão dos fortes; cresce, e comer-me-ás. Não me transformarás em ti, como fazes com o alimento da tua carne, mas tu serás mudado em mim”.
  E conheci então que “castigaste o homem por causa de sua iniqüidade”, e “que secaste minha alma como uma teia de aranha”, e eu disse:  Porventura não existe a verdade, por não ser difusa pelos espaços finitos e infinitos? E tu me gritaste de longe: Na verdade, Eu sou o que sou. E eu ouvi como se ouve no coração, sem deixar motivo para dúvidas; antes, mais facilmente duvidaria de minha vida que da existência da verdade, que se manifesta à inteligência pelas coisas da criação. 

 CAPÍTULO XI
Deus e as criaturas


  E contemplei as outras coisas que estão abaixo de ti, e vi que nem existem absolutamente, e nem absolutamente deixam de existir. Certamente existem, porque procedem de ti; mas não existem, pois, não são o que tu és,, porque só existe verdadeiramente o que permanece imutável. Com isso, para mim é bom apegar-me a Deus, porque, se não permanecer nele, tampouco poderei permanecer em mim. ele, porém, permanecendo em si, renova todas as coisas, e tu és o meu Senhor, porque não necessitas de meus bens. 

CAPÍTULO XII
O mal e o bem da criação 


  Também pode entender que são boas as coisas que se corrompem. Se fossem sumamente boas, não poderiam se corromper, como tampouco o poderiam se não fossem boas de algum modo. Com efeito, se fossem sumamente boas, seriam incorruptíveis; e se não tivessem nenhuma bondade, nada haveria nelas que se pudesse corromper. Porque a corrupção é um mal, e não poderia ser nociva se não diminuísse o bem real. Logo, ou a corrupção é inofensiva, o que é impossível, ou, o que é certo, tudo o que se corrompe é privado de algum bem. E assim, se algo for privado de todo o bem, deixará totalmente de existir. E se algo subsistisse sem já poder ser corrompido, seria ainda melhor, porque permaneceria incorruptível. E haverá maior absurdo do que afirmar que uma coisa se torna melhor pela perda de todo o bem? Logo, ser privado de todo o bem é o nada absoluto. De onde se segue que, enquanto as coisas existem, elas são boas. Portanto, tudo o que existe é bom; e o mal, cuja origem eu procurava, não é uma substância, porque se o fosse seria um bem. De fato, ou ele  seria substância incorruptível, e portanto um grande bem; ou seria uma substância corruptível, que se não se poderia corromper se não fosse boa. 
  Vi pois, e foi para mim evidente, que tu eras o autor de todos os bens, e que não há em absoluto substância alguma que não tenha sido criada por ti. E como não as fizeste todas iguais, toas as coisas existem, porque cada uma por si é boa, e todas juntas muito boas, porque nosso Deus fez todas as coisas muito boas.

CAPÍTULO XIII
Os louvores da criação 


  E para ti, Senhor, não existe absolutamente o mal; e nem para universalidade da tua criação; porque nada existe fora dela, capaz de romper ou de corromper a ordem que tu lhe impuseste. Todavia, em algumas de suas partes, determinados elementos não se harmonizam com outros, e estes são considerados maus. Mas, como esses mesmos elementos combinam com outros, são da mesma forma bons, e bons em si mesmos. E mesmo esses elementos que não concordam entre si se harmonizam com a parte inferior das criaturas que chamamos terra, com seu céu cheio de nuvens e de ventos, como lhe é conveniente. 
  Longe de mim dizer: Oxalá não existissem estas coisas! – Embora, considerando-as
separadamente, eu as desejasse melhores, somente o fato de existirem deveria bastar para eu te
louvar porque o proclamam os dragões da terra e todos os abismos; o fogo, o granizo, a neve, o
vento da tempestade, que executam tuas ordens;  os montes e todas as colinas; as árvores
frutíferas e todos os cedros; as feras e todos os gados; os répteis e todas as aves; os reis da terra
e todos os povos; os príncipes e todos os juízes da terra, os jovens e as virgens, os anciões e as
crianças; todos louvam teu nome. 
  Mas como também do alto dos céus é louvado, que seja louvado o nosso Deus, lá no alto por todos os teus anjos, todas as potestades, o sol e a lua, todas as estrelas e a luz, os céus dos céus, e a águas que estão sobre os céus glorificam teu nome, eu já não desejava nada melhor,porque, considerando o todo, os elementos superiores me pareciam sem dúvida melhores que os inferiores; mas um julgamento mais sadio me fazia considerar o todo melhor que os elementos superiores tomados à parte. 

CAPÍTULO XIV
Recapitulação
 

  Não têm juízo sadio, nos que se desagradam com alguma parte de tua criação, como acontecia comigo, quando me desagradavam tantas de tuas obras. Mas, como minha alma não se atrevia a desgostar do meu Deus, não queria considerar como obra tua o que lhe desagradava. 
  Por isso fora atrás da teoria das duas substâncias, na qual não achava descanso, e repetia coisas alheias. Desembaraçando-me desses erros, imaginara para si um Deus que se difundia pelos espaços infinitos e, julgando que eras tu, colocou-o em seu coração, e de novo se tornou o templo de seu ídolo, coisa abominável a teus olhos. 
  Mas, depois que afagaste minha cabeça, sem que eu o percebesse, e fechaste meus olhos para não vissem a vaidade, desprendi-me um pouco de mim mesmo, e minha loucura adormeceu profundamente; quando despertei em teus braços, vi que eras infinito não daquele modo, e esta visão não procedia da carne. 

(Continua...)

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