quinta-feira, 7 de abril de 2011

CONFISSÕES DE SANTO AGOSTINHO - Parte 19

CAPÍTULO VI 
A narração de Ponticiano

  Agora contarei de que modo me arrancaste do vínculo do desejo carnal, que me prendia fortemente, e da servidão dos negócios do mundo, e confessarei teu nome, ó Senhor, meu auxílio e minha redenção. Levava minha vida habitual com angústia crescente; todos os dias suspirava por ti, freqüentava tua igreja, quando me deixavam livre os negócios, cujo peso me fazia sofrer.
  Comigo estava Alípio, desonerado do cargo de jurisconsulto, depois de ter sido assessor pela terceira vez. Ele aguardava a quem vender de novo seus conselhos, como eu vendia arte da eloqüência, se é que pelo ensino a podemos transmitir.
  Nebrídio, por sua vez, acendendo às nossas  solicitações amigas, auxiliava na escola a nossa amigo íntimo, Verecundo; este, gramático e cidadão milanês, desejava enormemente, e nos instava em nome da amizade, que um de nós lhe prestasse uma fiel colaboração, pois dela muito necessitava.
  Não foi, pois, o interesse que moveu a Nebrídio – que poderia auferir bem mais vantagens se ensinasse as letras – mas, como grande amigo que era, não quis recusar nosso pedido em obsequio à amizade. Agia, porém, com muita prudência, evitando fazer-se conhecido dos poderosos deste mundo, para evitar as inquietações do espírito que ele queria manter o mais possível livre e desocupado para investigar, ler ou ouvir algo sobre a sabedoria.
  Certo dia em que Nebrídio estava ausente, não sei por que motivo, Alípio e eu recebemos a visita de um tal Ponticiano, nosso compatriota da África, que servia em alto cargo do palácio.
Não sei mais o que queria de nós.
  Sentamo-nos para conversar, e, por acaso, deu com os olhos em um livro que estava sobre a mesa de jogo, à nossa frente. Pegou-o, abriu-o, viu que eram as epístolas de Paulo e ficou surpreso, pois pensava que se tratasse de algum dos livros cujo estudo me preocupava. Então sorriu para mim e, cumprimentando-me, manifestou-me sua admiração por ter encontrado aquele livro, e só aquele, ao alcance dos meus olhos. Ponticiano era um cristão fiel, e muitas vezes prostrava-se diante de ti, nosso Deus, na igreja, em freqüentes e prolongadas orações.   E quando lhe declarei que aquele livro ocupava o melhor de minha atenção, tomando a palavra, começou a falar-nos de Antão, monge do Egito, cujo nome era celebrado entre teus fiéis, mas que nós desconhecíamos até aquela hora. Informado disto, continuou a falar, revelando esse grande homem à nossa ignorância, que ele muito admirou.
  Ouvíamos, estupefatos, tuas autenticas maravilhas, realizadas na verdadeira fé, na Igreja Católica, tão recentes e quase contemporâneas. Todos nos admirávamos; nós, por serem coisas tão grandes; e ele, por ser-nos tão desconhecidas.
  Depois, passou a falar das multidões que vivem em mosteiros, e de seus costumes, que trazem teu doce perfume, e da fecunda solidão do ermo, coisas todas que desconhecíamos.  Até em Milão havia, fora dos muros, um mosteiro cheio de bons irmãos sob a direção de Ambrósio, que também desconhecíamos. 
  Ponticiano prosseguia, e falava sempre mais, e nós o ouvíamos atentos e calados. E assim veio a nos contar que um dia, não sei quando, estando em Tréveris, saiu em companhia de três companheiros, enquanto o imperador se concentrava nos jogos circenses da tarde, para dar um passeio pelos jardins que rodeavam os muros da cidade. Distraidamente passeando dois a dois, um com Ponticiano, e os outros dois juntos, separaram-se e tomaram caminhos diferentes. 
  Caminhando a esmo, estes últimos deram com uma cabana, habitada por alguns servos teus, pobres de espírito, a quem pertence o reino dos céus. Lá encontraram um exemplar manuscrito da Vida de Santo Antão. Um deles começou a lê-lo, e, admirado e arrebatado cogitou, enquanto lia, em abraçar aquele gênero de vida, abandonando o serviço do mundo, para servir unicamente a ti. 
  Estes dois eram os chamados agentes de negócios do imperador. De repente, tomado de amor santo e casto pudor, irado consigo mesmo, olha para o companheiro, e lhe diz: “Dize-me, te peço, onde pretendemos chegar com todos estes nossos trabalhos? Que buscamos? Qual a finalidade do nosso labor? Podemos aspirar mais no palácio do que ser amigos do imperador? E mesmo nisto, quanta incerteza, quantos perigos! E quantos perigos teremos de passar para chegar a um perigo ainda maior? E quando chegaremos a isso? Mas, se eu quiser ser amigo de Deus, posso sê-lo agora mesmo”. Disse essas palavras, e exaltado pela gestação da nova vida voltou os olhos para o livro; ao ler, transformava-se interiormente, o que só tu sabias, e seu espírito se despia do mundo, como logo se evidenciou.
  Enquanto lia, o coração se lhe tornou um mar  tempestuoso, sentiu um estremecimento e, intuindo o melhor caminho a tomar, resolveu abraçá-lo, dizendo ao amigo:  
  “Já rompi com nossos sonhos: decidi dedicar-me ao serviço de Deus, e isso quero começar aqui e agora. Se não me queres imitar, ao menos não me contraries”.
  O amigo respondeu que desejava ficar com ele, e ser companheiro de tão nobre mercê e de tão grande combate. Ambos já te pertenciam, e começavam a construir, com capital suficiente, uma torre de salvação, a tudo renunciando para te seguir.
  Então Ponticiano e seu companheiro, que passeavam em outro local do jardim, procurando-os, deram também com a mesma cabana, e os avisaram para que voltassem, pois já entardecia. Mas eles, relataram-lhes sua determinação e propósito, e o modo como nascera e se fixara neles tal desejo, pediram-lhes que, se não quisessem juntar-se a eles, que não os molestassem. Mas estes, sem se converterem, lamentaram a si mesmos, no dizer de Ponticiano, e felicitando-os piedosamente, recomendaram-se às suas orações; depois, arrastando o coração pela terra, voltaram ao palácio, enquanto que os convertidos, fixando seu coração no céu, ficaram na cabana.
  Ambos eram noivos; mas, quando suas noivas ouviram o sucedido, também te consagraram sua virgindade.

CAPÍTULO VII
A reação de Agostinho

  Eis o que Ponticiano nos relatou. E tu, Senhor, enquanto ele falava, me fazias refletir, tirando-me da posição de costas, em que me colocara para não me ver a mim mesmo. Tu me colocavas diante de meu próprio rosto para que visse como estava indigno, disforme, sórdido, manchado e ulceroso.    Eu me via, e enchia-me de horror, mas não tinha para onde fugir de mim mesmo. Se tentava afastar o olhar de mim mesmo, Ponticiano prosseguia com a narração, e de novo me punhas diante de mim, e me empurravas diante de meus olhos, para que eu descobrisse minha iniqüidade e a odiasse. Eu bem a conhecia, mas a dissimulava, fingia não ver, esquecia.
  E quanto mais ardentemente amava aqueles jovens, cuja salutar decisão ouvia relatar, por se terem entregue completamente a ti para que os curasses, tanto mais acerbamente me odiava ao me comparar com eles. Com efeito, já tinham decorrido muitos anos – talvez uns doze – desde que, ao dezenove anos, lendo o Hortênsio de Cícero, sentira-me atraído para o estudo da sabedoria. Ia adiando a hora de abandonar a felicidade meramente terrena, quando não somente a sua descoberta, mas a sua própria busca, deveria ser preferida aos maiores tesouros do mundo e aos maiores prazeres corporais, que a um aceno, afluíam a meu redor.
  Mas eu, jovem miserável, sim, miserável desde o despertar da juventude, já te havia pedido a castidade, dizendo: “Dá-me castidade e continência, mas não agora” – pois temia que me atendesse muito depressa, e que me curasses logo da doença de minha concupiscência, que eu mais queria saciar do que extinguir. E caminhei pelas sendas ruins de uma superstição sacrílega, não porque estivesse certo dela, mas porque a preferia às demais doutrinas, que eu não estudava piedosamente, mas que hostilmente combatia. 
  Acreditava que o motivo por que adiava dia a dia o desprezo das promessas seculares, para seguir apenas a ti, era o não ter descoberto uma claridade capaz de dirigir meus passos. Veio, então, o dia em que me vi nu, a ouvir as repreensões de minha consciência: “Onde está a tua palavra? Não dizias que tua indecisão para lançar longe o fardo de tua vaidade se devia à incerteza? Agora tens a certeza, e não obstante, ainda te oprime esse fardo; outros, no entanto, que não se consumiram tanto em procurá-la, nem meditaram dez anos ou mais sobre tais problemas, vêem nascer asas em seus ombros mais livres”. 
  Assim me roia interiormente, devorado por enorme e terrível vergonha, enquanto Ponticiano contava aquilo tudo. Finda a conversa, e resolvida a questão a que viera, Ponticiano voltou para sua casa, e eu para dentro de mim. Que coisas não disse contra mim? Com que açoite de palavras não flagelei minha alma, para obrigá-la a me seguir em meus esforços para te alcançar! Ela resistia, recusava-se, sem se desculpar. Todos os argumentos já estavam esgotados e refutados. Nada lhe restava, senão uma angústia muda: tinha medo, como da morte, de ser tolhida à corrente do vício, onde se corrompia mortalmente. 

CAPÍTULO VIII
Luta espiritual

  Então, em meio àquela luta interior que eu travava violentamente contra mim mesmo no recesso do meu coração, perturbado no rosto e no espírito, volto-me para Alípio exclamando: “Que tanto nos aflige? O que significa isto que ouviste? Levantam-se os ignorantes e arrebatam o céu, e nós, com todo nosso saber insensato, nos revolvemos na carne e no sangue! Acaso temos vergonha de segui-los porque se nos adiantaram, e não temos vergonha de não os seguir?”
  Foi mais ou menos o que eu lhe disse, e dele me afastei sob forte emoção. Alípio me olhava atônito em silêncio. Eu não falava como de costume, e muito mais que as palavras, minha fronte, minhas fazes, meus olhos, minha cor e o tom de minha voz denunciavam meu estado de espírito. 
  Nossa casa tinha um pequeno jardim, que usávamos, assim como o restante da casa, que nosso hóspede não habitava. Para ali me levara a tormenta de meu coração, onde ninguém pudesse interferir no ardente combate que eu travava comigo mesmo, até que se resolvesse o assunto conforme tu sabias e eu ignorava. Mas eu delirava para reencontrar a razão, e morria para reviver; conhecia meu mal, mas desconhecia o bem que depois haveria de sobrevir. 
  Retirei-me, pois, para o jardim, e Alípio seguiu-me passo a passo; mas, apesar de sua presença, eu não estava menos só. E como haveria ele de me deixar naquele estado? Sentamo-nos o mais longe possível da casa. Eu tremia pela violenta indignação, me enraivecia por não poder seguir teu agrado e aliança, ó meu Deus, aliança pela qual clamavam todos os meus ossos, que te elevavam louvores até o céu. E para ir a ti não há necessidade de navios nem de carros, nem mesmo de dar aqueles poucos passos que separavam a casa do jardim onde estávamos. Não somente ir, mas chegar junto de ti, nada mais é do que querer ir, mas com querer enérgico e pleno, e não com vontade tíbia, que se dispersa em todos os sentidos, e se agita incerta, dividida, ora levantando-se, ora voltando a cair.
  Enfim, naquela angustiante hesitação, fazia mil gestos, como soem fazer os homens que querem e não podem, ou porque não têm membros, ou porque os têm atados em cadeias, debilitados pela fraqueza ou paralisados de qualquer outro modo. Se puxei os cabelos, se feri a fronte, se apertei os joelhos entre os dedos entrelaçados, eu o fiz porque quis. Poderia porém querer fazê-lo e não o fazer, se a flexibilidade de meus membros não me obedecesse. Portanto, fiz muitas coisas, nas quais o querer não era o mesmo que o poder. 
  Contudo, eu não fazia aquilo que desejava acima de tudo o mais, e que eu poderia fazer desde que o quisesse, porque se o tivesse efetivamente querido, bastava que o quisesse sinceramente; nisto o poder é o mesmo que o querer, e querer já seria agir.
  Contudo não o fazia, e meu corpo obedecia mais facilmente ao mais leve comando de minha alma, movendo os membros segundo sua vontade, do que a própria alma obedecer a si mesma para realizar seu grande desejo com a vontade.

CAPÍTULO XI
A desobediência da vontade

  Mas, de onde vinha este prodígio? Qual sua causa? Brilhe a tua misericórdia, e perguntarei – se é que me podem responder – aos sombrios castigos infligidos aos homens, e às tenebrosas misérias dos filhos de Adão. De onde vem este prodígio? E qual sua causa?
  A alma dá ordens ao corpo, e este obedece imediatamente; a alma dá ordens a si mesma, e resiste. Ordena a alma à mão que se mova, e é tal sua presteza, que mal se pode distinguir a ordem da execução; não obstante, a alma é espírito e a mão é corpo. A alma dá a si mesma a ordem de querer, uma não se distingue da outra, e contudo, ela não obedece. De onde este prodígio? E qual sua causa?
  Manda a alma que queira – e não mandaria se não quisesse – e, não obstante, não faz o que manda. Logo, não quer totalmente, e por isso não manda de modo total. A alma manda na proporção do querer, e enquanto não quiser, suas ordens não são executadas, porque é a vontade que dá a ordem de ser a uma vontade que nada mais é que ela própria. Logo, não manda plenamente, e esta é a razão por que não faz o que manda. Porque, se estivesse em sua plenitude, não mandaria que fosse, porque já seria. 
  Não há, portanto, prodígio algum em querer em parte e em parte não querer; é uma enfermidade da alma. esta, sustentada pela verdade, não se ergue de todo, pois está oprimida pelo peso do hábito. Há, portanto, duas vontades, ambas incompletas, e o que uma possui falta à outra. 

CAPÍTULO X
Contra os maniqueus

  Desapareçam de tua presença, ó meu Deus, como os vãos faladores e sedutores do espírito, aqueles que, ao observarem a dupla deliberação da vontade, concluem que temos duas almas de naturezas opostas, uma boa, outra má. 
  Eles é que são de fato maus, que seguem tais más doutrinas; somente serão bons quando aceitarem a verdade, concordando com os que a possuem. E assim o Apóstolo poderá dizer deles: Outrora fostes trevas, mas agora sois luz no Senhor. Mas esses, querendo ser luz não no Senhor, mas em si mesmos, julgam que a natureza da alma á a mesma que a de Deus; vão-se tornando trevas ainda mais densas, pois em sua terrível arrogância se afastam ainda mais de ti, luz verdadeira, que ilumina a todo homem que vem a este mundo. Atentai para o que dizeis, e enchei-vos de vergonha. Aproximai-vos dele, e sereis iluminados, e vossos rostos não serão cobertos de confusão.
  Quando eu deliberava dedicar-me ao serviço do Senhor meu Deus, como de há muito me tinha proposto, eu era o que eu queria, e lera o que eu não queria. Mas, nem queria plenamente, nem deixar de querer por completo. Por isso lutava comigo mesmo, e me dilacerava a mim mesmo. Essa destruição, embora involuntária, não mostrava, contudo, a presença em mim de uma alma estranha, mas apenas o castigo de minha alma. E por isso já não era eu quem mo infligia, mas o pecado que habitava em mim, como castigo de pecado cometido livremente, por ser eu filho de Adão. 
  Com efeito, se fossem tantas as naturezas contrárias quantas são as vontades que em nós se contradizem, não deveríamos admitir apenas duas naturezas, mas muitas. Se alguém, com efeito, hesita entre uma reunião dos maniqueístas ou ao teatro, logo eles exclamam: “Eis aí as duas naturezas, uma boa, que o atrai para cá, e outra má, que o arrasta pra lá. E de onde mais viria essa hesitação de vontades opostas?”
  De minha parte eu digo que ambas são más, tanto a que leva a eles como a que arrasta ao teatro; mas eles só julgam boa a que leva até eles. 
  Mas, suponhamos que um dos nossos queira decidir, e conflitando as duas vontades, titubeie entre ir ao teatro ou à nossa igreja; não ficarão indecisos os maniqueístas na resposta que hão de dar? Porque, ou hão de confessar o que não querem, que é boa a vontade que o leva à nossa igreja, como vão a ela os que foram iniciados em seus mistérios e lhe permanecem fiéis, ou terão de reconhecer que num mesmo homem lutam duas naturezas más e duas almas más. E então terão de contradizer o que afirmam, que uma natureza é boa e outra má. Ou então terão de aceitar a verdade e, neste caso, não negarão que, quando alguém escolhe, é uma mesma alma a que hesita entre duas vontades opostas. 
  Portanto, quando virem duas vontades que se contrapõem ao mesmo homem, não falem mais de luta entre duas almas contrárias, uma boa e outra má, originadas em duas substâncias antagônicas. Porque tu, ó Deus verdadeiro, os confundes, como no caso em que ambas as vontades são más; por exemplo, quando alguém hesita, entre matar a outrem com um punhal ou veneno; entre assaltar esta ou aquela propriedade alheia, quando não pode assaltar a ambas; entre esbanjar na compra do prazer da luxúria, ou guardar dinheiro por avareza; entre ir ao circo ou ao teatro, quando ambos sejam concomitantes; e ainda acrescento uma terceira incerteza: entre roubar ou não a casa do próximo, em havendo a oportunidade, ou ainda, acrescento uma
quarta hipótese: entre cometer ou não adultério, se tem possibilidade para isso. Suponhamos que todas essas circunstâncias ocorram simultaneamente; como todas são igualmente desejadas, e irrealizáveis ao mesmo tempo, a alma será dilacerada por um conflito entre quatro vontades, ou mais ainda, tão numerosos são os objetos de desejo! Contudo, os maniqueus não afirmam que existe tão grande número de substâncias diferentes.
  O mesmo acontece com as vontades boas. Se eu lhes pergunto se é bom deleitar-se com a leitura do Apóstolo, com a leitura de algum salmo espiritual, ou com o comentar do Evangelho, eles responderão a cada questão: “É bom” – Ora, se as três atividades têm a mesma atração simultaneamente, não teríamos vontades opostas a dividir o coração do homem, enquanto escolhe qual delas abraçar de preferência? 
  Todas essas vontades são boas, e lutam entre si, até que se tome uma decisão, que unifique a vontade, antes dividida. Assim também, quando a eternidade agrada à nossa parte superior e o bem temporal nos prende fortemente cá embaixo: é a mesma alma que, sem uma vontade plena, quer um e outro desses bens. Por isso, dilacera-a uma grande dor; a verdade nos faz preferir a eternidade, mas o hábito não quer abandonar os bens temporais. 

CAPÍTULO XI
Últimas resistências 

  Assim sofria e me atormentava, com acusações mais acerbas que de costume, rolando-me e debatendo-me dentro de minha cadeias, para ver se as quebrava por completo. Elas mal me prendiam,mas ainda me prendiam. E tu, Senhor, me espicaçavas no fundo de minha alma, e com severa misericórdia redobravas os açoites do temor e da vergonha, para que eu não afrouxasse de novo, e para que quebrasse minha tênue e leve cadeia, antes que ela se revigorasse para me prender mais firmemente. 
  E dizia comigo mesmo: “Vamos! Mãos à obra, sem demoras!” E quase passava da palavra à ação. Estava a ponto de agir, mas não agia. Eu já não recaía nas antigas paixões, mas delas estava bem próximo, e tomava ainda alento de seu ar. Quase a alcançava, faltava pouco, cada vez menos, e já quase chegava ao termo e a segurava; mas não a alcançava, nem a tocava; hesitava entre morrer para a morte e viver para a vida. O mal arraigado dominava-me mais do que o bem, cujo hábito eu não possuía; na medida que ia se aproximando o momento em que me  transformaria em outro homem, maior era o horror que me incutia, sem contudo me fazer voltar para trás ou mudar de caminho. Simplesmente mantinha-me indeciso. 
  Mantinham-me preso umas tantas bagatelas, umas vaidades de vaidades, antigas amigas minhas, que me puxavam por minhas vestes carnais, murmurando: “Então, nos abandonas? De agora em diante nunca mais estaremos contigo? Desde este momento nunca mais te será lícito isto ou aquilo?”
  E que coisas, meu Deus, que torpezas me sugeriam com o que chamei de isto ou aquilo! Por tua misericórdia, afasta-as da alma de teu servo! Oh! Que imundícies me sugeriam, que indecências! Já se reduzira a menos da metade o número de vezes que eu lhes dava ouvidos; não era mais um assalto aberto, frontal, mas segredado por cima dos ombros, e como que puxando-me furtivamente, se me afastava, para que me voltasse para trás. 
  Contudo, faziam com que eu, vacilante, tardasse em me separar delas para correr para onde me chamavam, enquanto o hábito violento me dizia: “Julgas que poderás viver sem elas?”
  Mas isto já dizia com voz muito débil. Para onde voltava o rosto, e por onde temia passar, mostrava-se para mim a casta dignidade da continência, serena e alegre, sem desordens, acariciando-me honestamente para que me aproximasse sem medo. Estendia para mim, para me acolher e abraçar, suas mãos piedosas, cheias de uma multidão de bons exemplos.
  Junto dela, uma turba de meninos e meninas, uma juventude numerosa, e homens de toda idade, viúvas veneráveis e virgens idosas. Em todas essas almas, não era estéril, mas fecunda a mãe de filhos nascidos nas alegrias do esposo, que eras tu, Senhor!
  E a continência zombava de mim com ironia animadora, como se dissesse: “Então, não serás capaz de fazer o mesmo que eles? Ou será que estes e estas encontraram forças em si mesmos, e não no Senhor, seu Deus? Foi o Senhor Deus, quem me entregou a eles. Por que te apóias em ti, se és vacilante? Lança-te nele, não temas, que ele não se apartará de ti, e tu não cairás. Lança-te com confiança, que ele te receberá e te curará.”
  E enchia-me de vergonha por ainda ouvir o murmúrio daquelas bagatelas e, vacilante, continuava indeciso. 
  Mas de novo a voz da castidade parecia me dizer: Não dês ouvidos às tentações imundas da tua carne impura que te prende à terra, a fim de que seja mortificada. Ela te fala de deleites, contrários porém, à lei do Senhor teu Deus.
  Essa luta se desenrolava no fundo do meu espírito, de mim contra mim mesmo. Alípio, sem sair de perto de mim, aguardava em silêncio o desfecho de minha insólita agitação. 

(Continua...)

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