LIVRO NONO
CAPÍTULO I
Colóquio
Ó Senhor, sou teu servo e filho de tua serva. Rompeste minhas cadeias: eu te sacrificarei uma vítima de louvor. Louvem-te meu coração e minha língua, e que todos os meus ossos te digam: Senhor, quem semelhante a ti? Que eles te digam essas palavras e que me respondas e digas à minha alma: Eu sou tua salvação.
Quem sou eu, e como era? Que males não tive em minhas obras, ou, se não em minhas obras, em minhas palavras, ou, se não em minhas palavras, em minha vontade! Mas tu, Senhor, bom e misericordioso, puseste os olhos na profundeza de minha morte, e purificaste com tua destra o abismo de corrupção de minha alma. Tratava-se agora apenas de não querer o que eu queria, e de querer o que tu querias.
Mas, onde esteve meu livre arbítrio durante tantos anos? De que profundo e misterioso abismo foi ele chamado num instante, para que eu inclinasse a cerviz a teu jugo suave e o ombro a teu leve fardo, ó Cristo Jesus, meu auxílio e redenção?
Quão suave foi para mim a privação de doçuras fúteis! Temia então perdê-las, como agora sentia prazer em deixa-las! Porque tu se afastavas de mim, e entravas em seu lugar, mais doce que qualquer prazer, mas não para a carne e o sangue; mais claro que toda luz, mais oculto que qualquer segredo; mais sublime que todas as honras, mas não para os que exaltam a si mesmos. Minha alma já estava livre dos devoradores cuidados da ambição, do ganho, e do prurido dos apetites carnais; e falava muito comigo, ó Deus e Senhor meu, minha luz, minha riqueza, minha salvação!
CAPÍTULO II
Adeus ao magistério
Pareceu-me de bom alvitre, em tua presença, não abandonar de modo ostensivo o ministério da minha língua, mas retirá-lo suavemente do mercado da loquacidade, para que dali por diante os jovens, que não se preocupam com tua lei ou paz, mas com as enganosas loucuras e contendas forenses, não comprassem de minha boca armas para seu furor. Felizmente faltavam pouquíssimos dias para as férias das vindimas (é provável que as férias de outono dos estudantes coincidissem com as férias dos tribunais, que se iniciavam em 22 de agosto, e terminavam em 15 de outubro). Decidi suportá-los até lá. Então me retiraria como de costume, e, resgatado por ti, não tornaria mais a vender meu ofícios.
Esta minha determinação, te era conhecida; dos homens, só a conheciam os de minha intimidade. E, mesmo assim, tínhamos combinado de nada deixar transpirar. Contudo, quando subíamos do vale de lágrimas, cantando o cântico gradual (série de salmos cantados pelos peregrinos que sobem os degraus do templo de Jerusalém) nos tinhas dado setas agudas e carvões destruidores contra a língua pérfida que contradiz, sob o pretexto de aconselhar e, como quem se alimenta, consome o que ama.
Tinhas alvejado nosso coração com as setas do teu amor, e levávamos tuas palavras cravadas em nossas entranhas; os exemplos de teus servos, que das trevas trouxeram para a luz, e da morte para a vida, ardiam no fundo de nosso espírito em uma espécie de fogueira, que inflamava e consumia nosso torpor, para que não mais nos inclinássemos para as baixezas. Estávamos inflamados de tal ardor, que o vento da contradição das línguas dolosas não nos apagaria, antes fazia-nos arder mais e mais.
Contudo, por causa de teu nome, que santificaste em toda terra, nossa decisão e propósito teriam também quem os louvasse. Pareceria de certo modo jactância não aguardar as férias tão próximas; abandonar antes dessa data uma profissão pública, e exposta a todos, seria atrair sobre minha conduta todas as atenções, provocando comentários. Diriam que eu me adiantara às férias iminentes por querer parecer grande personagem. E de que me valeria que pensassem ou discutissem sobre minhas intenções, blasfemando sobre o meu bem? Além disso, nesse mesmo verão, devido ao excessivo trabalho didático, meus pulmões começaram a se ressentir; respirava com dificuldade, e as dores no peito e minha voz, que não saía clara ou prolongada, revelavam uma lesão. A princípio me senti angustiado, vendo-me quase obrigado a abandonar o fardo do magistério ou, para me curar e convalescer, teria certamente de o interromper. Mas, quando nasceu em mim e se firmou a vontade plena de repousar e de ver que és o Senhor, então, tu o sabes meu Deus, que cheguei a me alegrar de encontrar esta desculpa verdadeira para moderar o sentimento das famílias, que por causa de seus filhos nunca me permitiram ser livre.
Cheio dessa consolação, esperava que escoasse aquele tempo – talvez uns vinte dias. Mas minguara minha coragem, porque já me abandonara a cobiça de ganho, que me ajudava a carregar este pesado encargo; e teria sucumbido se a paciência não tomasse o lugar da ambição.
Talvez alguns de teus servos, meus irmãos, dirá que pequei nisso porque, estando com o coração já cheio de desejos de te servir, consenti ficar mais uma hora sentado na cátedra da mentira. Não discutirei. Mas tu, Senhor misericordiosíssimo, acaso não me perdoaste e resgataste também este pecado, junto com todos os demais horrendos e mortais na água santa do batismo?
CAPÍTULO III
Dois amigos
Angustiava-se Verecundo por este nosso bem, porque se via afastado de nossa companhia pelos vínculos matrimoniais que o aprisionavam fortemente. Não era ainda cristão, como sua mulher, mas justamente nela encontrava o maior obstáculo que o impedia de entrar pelo caminho que havíamos começado a trilhar; não queria ser cristão, dizia ele, senão do modo que justamente lhe era proibido.
Contudo, com sua grande bondade, pôs à nossa disposição sua propriedade no campo pelo tempo que nos aprouvesse. Tu, Senhor, haverás de recompensá-lo no dia da retribuição dos justos, pois já concedeste a graça. Porque, estando nós ausentes e já em Roma, atacado de uma enfermidade corporal, Verecundo saiu desta vida depois de se fazer cristão e crente. Assim te compadeceste não apenas dele, mas também de nós, para que quando pensássemos na grande generosidade que teve conosco este amigo, não nos afligíssemos de dor intolerável por não poder contá-lo entre os de tua grei.
Graças te sejam dadas, ó Deus nosso! Somos teus: tuas exortações e consolos o indicam. Fiel cumpridor de tuas promessas, concedes a Verecundo a amenidade de teu paraíso sempre florido, por nos ter oferecido sua propriedade de Cassicíaco, na qual descansamos em ti das angústias do século; lhe perdoaste os pecados sobre a terra, na tua montanha, a montanha da abundância.
Verecundo, como disse, angustiava-se, mas Nebrídio partilhava a nossa alegria, porque, embora não sendo ainda cristão e houvesse caído no erro tão pernicioso de julgar que a carne verdadeira do teu Filho fosse mera aparência, já começava a se desvencilhar e, sem ter ainda recebido os sacramentos da tua Igreja, buscava ardentemente a verdade.
Não muito depois de nossa conversão e regeneração por teu batismo, fez-se por fim católico fiel. Servia-te na África junto aos seus, em castidade e continência perfeitas; toda sua família, sob sua influência, se fizera cristã. Libertaste-o então dos laços da carne, vivendo agora no seio de Abraão, seja qual for o significado dessa expressão. Ali vive meu Nebrídio, meu doce amigo que, de liberto, se tornou teu filho adotivo. Ali vive – pois, que outro lugar conviria a uma alma assim? Ali vive, nesse lugar sobre o qual indagava muitas coisas a mim, pobre homem ignorante. Já não aproxima seu ouvido da boca, mas aproxima sua boca espiritual de tua fonte, e bebe avidamente de tua sabedoria, numa felicidade sem fim. Mas não creio que se embriague a
ponto de esquecer de mim, enquanto tu, Senhor, que és sua bebida, te lembras de nós.
Essa era a nossa situação. Consolávamos o Verecundo que, sem que a amizade fenecesse, andava desgostoso com nossa conversão; nós o exortávamos a se manter fiel à sua condição conjugal. Quanto a Nebrídio, esperávamos que nos seguisse, pois, facilmente poderia fazê-lo, e já estava a ponto de se decidir. Enfim, aqueles dias passaram, e me pareceram tantos e tão longos, tal era meu desejo de liberdade e descanso, para cantar do fundo do meu ser: A ti meu coração: Procurei teu rosto; teu rosto, Senhor, hei de buscar.
Mas, onde esteve meu livre arbítrio durante tantos anos? De que profundo e misterioso abismo foi ele chamado num instante, para que eu inclinasse a cerviz a teu jugo suave e o ombro a teu leve fardo, ó Cristo Jesus, meu auxílio e redenção?
Quão suave foi para mim a privação de doçuras fúteis! Temia então perdê-las, como agora sentia prazer em deixa-las! Porque tu se afastavas de mim, e entravas em seu lugar, mais doce que qualquer prazer, mas não para a carne e o sangue; mais claro que toda luz, mais oculto que qualquer segredo; mais sublime que todas as honras, mas não para os que exaltam a si mesmos. Minha alma já estava livre dos devoradores cuidados da ambição, do ganho, e do prurido dos apetites carnais; e falava muito comigo, ó Deus e Senhor meu, minha luz, minha riqueza, minha salvação!
CAPÍTULO II
Adeus ao magistério
Pareceu-me de bom alvitre, em tua presença, não abandonar de modo ostensivo o ministério da minha língua, mas retirá-lo suavemente do mercado da loquacidade, para que dali por diante os jovens, que não se preocupam com tua lei ou paz, mas com as enganosas loucuras e contendas forenses, não comprassem de minha boca armas para seu furor. Felizmente faltavam pouquíssimos dias para as férias das vindimas (é provável que as férias de outono dos estudantes coincidissem com as férias dos tribunais, que se iniciavam em 22 de agosto, e terminavam em 15 de outubro). Decidi suportá-los até lá. Então me retiraria como de costume, e, resgatado por ti, não tornaria mais a vender meu ofícios.
Esta minha determinação, te era conhecida; dos homens, só a conheciam os de minha intimidade. E, mesmo assim, tínhamos combinado de nada deixar transpirar. Contudo, quando subíamos do vale de lágrimas, cantando o cântico gradual (série de salmos cantados pelos peregrinos que sobem os degraus do templo de Jerusalém) nos tinhas dado setas agudas e carvões destruidores contra a língua pérfida que contradiz, sob o pretexto de aconselhar e, como quem se alimenta, consome o que ama.
Tinhas alvejado nosso coração com as setas do teu amor, e levávamos tuas palavras cravadas em nossas entranhas; os exemplos de teus servos, que das trevas trouxeram para a luz, e da morte para a vida, ardiam no fundo de nosso espírito em uma espécie de fogueira, que inflamava e consumia nosso torpor, para que não mais nos inclinássemos para as baixezas. Estávamos inflamados de tal ardor, que o vento da contradição das línguas dolosas não nos apagaria, antes fazia-nos arder mais e mais.
Contudo, por causa de teu nome, que santificaste em toda terra, nossa decisão e propósito teriam também quem os louvasse. Pareceria de certo modo jactância não aguardar as férias tão próximas; abandonar antes dessa data uma profissão pública, e exposta a todos, seria atrair sobre minha conduta todas as atenções, provocando comentários. Diriam que eu me adiantara às férias iminentes por querer parecer grande personagem. E de que me valeria que pensassem ou discutissem sobre minhas intenções, blasfemando sobre o meu bem? Além disso, nesse mesmo verão, devido ao excessivo trabalho didático, meus pulmões começaram a se ressentir; respirava com dificuldade, e as dores no peito e minha voz, que não saía clara ou prolongada, revelavam uma lesão. A princípio me senti angustiado, vendo-me quase obrigado a abandonar o fardo do magistério ou, para me curar e convalescer, teria certamente de o interromper. Mas, quando nasceu em mim e se firmou a vontade plena de repousar e de ver que és o Senhor, então, tu o sabes meu Deus, que cheguei a me alegrar de encontrar esta desculpa verdadeira para moderar o sentimento das famílias, que por causa de seus filhos nunca me permitiram ser livre.
Cheio dessa consolação, esperava que escoasse aquele tempo – talvez uns vinte dias. Mas minguara minha coragem, porque já me abandonara a cobiça de ganho, que me ajudava a carregar este pesado encargo; e teria sucumbido se a paciência não tomasse o lugar da ambição.
Talvez alguns de teus servos, meus irmãos, dirá que pequei nisso porque, estando com o coração já cheio de desejos de te servir, consenti ficar mais uma hora sentado na cátedra da mentira. Não discutirei. Mas tu, Senhor misericordiosíssimo, acaso não me perdoaste e resgataste também este pecado, junto com todos os demais horrendos e mortais na água santa do batismo?
CAPÍTULO III
Dois amigos
Angustiava-se Verecundo por este nosso bem, porque se via afastado de nossa companhia pelos vínculos matrimoniais que o aprisionavam fortemente. Não era ainda cristão, como sua mulher, mas justamente nela encontrava o maior obstáculo que o impedia de entrar pelo caminho que havíamos começado a trilhar; não queria ser cristão, dizia ele, senão do modo que justamente lhe era proibido.
Contudo, com sua grande bondade, pôs à nossa disposição sua propriedade no campo pelo tempo que nos aprouvesse. Tu, Senhor, haverás de recompensá-lo no dia da retribuição dos justos, pois já concedeste a graça. Porque, estando nós ausentes e já em Roma, atacado de uma enfermidade corporal, Verecundo saiu desta vida depois de se fazer cristão e crente. Assim te compadeceste não apenas dele, mas também de nós, para que quando pensássemos na grande generosidade que teve conosco este amigo, não nos afligíssemos de dor intolerável por não poder contá-lo entre os de tua grei.
Graças te sejam dadas, ó Deus nosso! Somos teus: tuas exortações e consolos o indicam. Fiel cumpridor de tuas promessas, concedes a Verecundo a amenidade de teu paraíso sempre florido, por nos ter oferecido sua propriedade de Cassicíaco, na qual descansamos em ti das angústias do século; lhe perdoaste os pecados sobre a terra, na tua montanha, a montanha da abundância.
Verecundo, como disse, angustiava-se, mas Nebrídio partilhava a nossa alegria, porque, embora não sendo ainda cristão e houvesse caído no erro tão pernicioso de julgar que a carne verdadeira do teu Filho fosse mera aparência, já começava a se desvencilhar e, sem ter ainda recebido os sacramentos da tua Igreja, buscava ardentemente a verdade.
Não muito depois de nossa conversão e regeneração por teu batismo, fez-se por fim católico fiel. Servia-te na África junto aos seus, em castidade e continência perfeitas; toda sua família, sob sua influência, se fizera cristã. Libertaste-o então dos laços da carne, vivendo agora no seio de Abraão, seja qual for o significado dessa expressão. Ali vive meu Nebrídio, meu doce amigo que, de liberto, se tornou teu filho adotivo. Ali vive – pois, que outro lugar conviria a uma alma assim? Ali vive, nesse lugar sobre o qual indagava muitas coisas a mim, pobre homem ignorante. Já não aproxima seu ouvido da boca, mas aproxima sua boca espiritual de tua fonte, e bebe avidamente de tua sabedoria, numa felicidade sem fim. Mas não creio que se embriague a
ponto de esquecer de mim, enquanto tu, Senhor, que és sua bebida, te lembras de nós.
Essa era a nossa situação. Consolávamos o Verecundo que, sem que a amizade fenecesse, andava desgostoso com nossa conversão; nós o exortávamos a se manter fiel à sua condição conjugal. Quanto a Nebrídio, esperávamos que nos seguisse, pois, facilmente poderia fazê-lo, e já estava a ponto de se decidir. Enfim, aqueles dias passaram, e me pareceram tantos e tão longos, tal era meu desejo de liberdade e descanso, para cantar do fundo do meu ser: A ti meu coração: Procurei teu rosto; teu rosto, Senhor, hei de buscar.
CAPÍTULO IV
A doçura dos salmos
Por fim, chegou o dia da libertação da profissão de retórico, da qual já me libertara em pensamento. Assim aconteceu. Livraste minha língua da tarefa de que há havias livrado meu coração. Eu te bendizia contente, e parti com todos os meus, para a quinta de Verecundo. O que lá realizei nas letras, já a teu serviço, mas ainda com a respiração ofegante, como durante uma pausa da luta, e ainda respirando da soberba da erudição, é atestado pelos livros nos quais anotava meus debates com meus amigos ou comigo mesmo em tua presença (refere-se aos seguintes livros: Contra Acadêmicos, De beata vita, De ordine e dos Solilóquios). Do que tratei com Nebrídio, então ausente, claramente o indicam minhas cartas.
Mas quando encontrei tempo suficiente para dar testemunho de todos os grandes benefícios que me concedeste nessa época da vida, uma vez que tenho pressa de chegar a outros assuntos mais importantes? Volta-me – e me é doce confessá-lo, Senhor – a lembrança dos estímulos internos com que me domaste; o modo como me aplanaste a alma derrubando as colinas e montanhas de meus pensamentos; como endireitaste meus caminhos tortuosos e suavizasse minhas asperezas; como também submeteste Alípio – o irmão de meu coração – ao nome de teu Filho único, Jesus Cristo, Senhor e Salvador nosso, nome que ele mal suportava em minhas obras, porque preferia o cheiro dos soberbos cedros das escolas, já abatidos pelo Senhor, ao odor das salutares ervas de tua Igreja, antídoto contra o veneno das serpentes.
Que invocações elevei a ti, meu Deus, lendo os Salmos de Davi, cânticos de fé, hinos de piedade, que expulsavam de mim todo sentimento de orgulho? Eu era ainda inexperiente de teu verdadeiro amor, e dividia minhas horas de lazer com Alípio, catecúmeno como eu. Minha mãe estava conosco. Ao aspecto da mulher ela aliava fé varonil, a calma da velhice, a ternura de mãe e a piedade de cristã. Que exclamações elevei a ti naqueles salmos, e como me inflamava com eles em teu amor! Incendiava-me em desejos de recitá-los, se fosse possível, ao mundo inteiro, para rebater a soberba do gênero humano! Com efeito, em todo o mundo se cantam. Não há ninguém que se subtraia a teu calor.
Com que veemente e dolorosa indagação me levantava contra os maniqueístas! E de novo me compadecia deles por ignorarem esses sacramentos, esses remédios, investindo loucamente contra o antídoto que poderia curá-los! Gostaria que estivessem perto de mim, sem que eu o soubesse, e que vissem meu rosto e ouvissem minhas exclamações quando lia o Salmo 4 naquelas minhas férias, e percebessem os efeitos salutares que me produzia este salmo: Quando te invoquei, tu me escutaste, ó Deus de minha justiça! Dilataste minha alma na tribulação. Compadece-te, Senhor, de mim, e ouve minha prece. Se me ouvissem – sem eu o saber, para
que não pensassem que eram por causa deles as palavras que eu entremeava às do salmo, porque realmente nem eu diria tais coisas, nem as diria daquele modo, se soubesse da sua presença; e, mesmo que as palavras fossem as mesmas, ele não as entenderiam como eu as dizia a mim mesmo, diante de ti, na íntima efusão dos afetos de minha alma.
Estremeci de medo, ao mesmo tempo me abrasei de alegre esperança em tua misericórdia, ó Pai! E todos estes sentimentos saíam pelos meus olhos e pela voz quando, dirigindo-se para nós, teu Espírito de bondade nos dizia: Filhos dos homens, até quando sereis duros de coração? Por que amais a vaidade e buscais a mentira?
Também eu tinha amado a vaidade e buscado a mentira. Mas tu, Senhor, já havias glorificado teu eleito, ressuscitando-o de entre os mortos e colocando-o à tua direita, de onde haveria de nos enviar, segundo a promessa, o Paráclito, o Espírito da Verdade. O Senhor estava glorificado, ressuscitando de entre os mortos, e subindo aos céus. Antes o Espírito ainda não tinha sido dado, porque Jesus ainda não tinha sido glorificado.
Clama o profeta: Até quando sereis duros de coração? Por que amais a vaidade e buscais a mentira? Sabeis que o Senhor já glorificou a seu santo. Clama: Até quando? Clama: Sabei! – E eu sem o saber durante tanto tempo, amando a vaidade e buscando a mentira!
Por isso tremi quando o ouvi, porque me lembrei de ter sido igual àqueles a quem tais palavras eram dirigidas. Os fantasmas que eu havia tomado pela verdade nada mais eram do que vaidade e mentira.
Ah! As queixas fortes e profundas que me inspiravam a dor da recordação! Oxalá as tivessem ouvido os que ainda amam a vaidade e buscam a mentira! Talvez também se perturbassem e vomitassem seu erro. E tu os terias ouvidos quando clamassem por ti, porque morreu por nós de verdadeira morte corporal aquele que intercede por nós diante de ti.
Eu lia: Irai-vos, e não queirais pecar. Como me perturbavam tais palavras, meu Deus! Já
havia aprendido a me irar contra mim mesmo pelos meus crimes passados, para não pecar mais;
e de uma cólera justa, porque não era uma natureza estranha, da raça das trevas, a que em mim
pecava, como dizem os que não se indignam contra si, e acumulam contra si a ira para o dia da
ira e da revelação de teu justo juízo?
Meus bens já não eram exteriores, e eu já não os buscava à luz deste sol, com olhos carnais. Os que querem gozar externamente, facilmente se dissipam e derramam pelas coisas visíveis e temporais, lambendo com pensamento faminto apenas as aparências. Oh! Se eles se esgotassem com a privação, e perguntassem: Quem nos mostrará o bem? E que ouvissem nossa resposta: Está gravada dentro de nós a luz de teu rosto, Senhor! – Porque não somos nós a luz que ilumina a todo homem, mas somos iluminados por ti, para que sejamos luz em ti, nós que outrora fomos trevas.
Oh! Se eles vissem essa luz interior e eterna que eu havia visto! E como a havia saboreado, irritava-me por não poder mostrá-la. Se, pelo seus olhares dirigidos para fora, visse seu coração afastado de ti, me dissessem: “Quem nos mostrará o bem? Pois ali, onde me irritara contra mim mesmo, ali, no recôndito de meu coração onde, arrependido, eu havia sacrificado e imolado em mim o velho homem; onde, pondo em ti minha esperança, começara a meditar a renovação de mim mesmo, ali fizeste com que eu sentisse tua doçura, dando alegria a meu coração. E exclamava ao ler, fora de mim, essas palavras cuja verdade ecoava em mim; e não queria desdobrar-me pelos bens terrenos, devorando o tempo e sendo por ele devorado, porque
possuía na eterna simplicidade outro trigo, outro vinho e outro azeite.
E subia, no versículo seguinte, um profundo clamor de meu coração: Oh! Em paz! Oh! Em seu próprio Ser! Mas, que disse? Dormirei e descansarei! Com efeito, quem nos há de resistir quando se cumprir a palavra que está escrita: A morte foi devorada pela vitória?
Tu és esse mesmo Ser, e não mudas, e em ti está o repouso que faz esquecer todos os sofrimentos. Porque ninguém pode ser comparado a ti e nem vale pensar em adquirir outras coisas que não sejam o que tu és; mas tu, Senhor, singularmente me firmaste na esperança.
Eu lia isto, e me inflamava. Não sabia que fazer com aqueles surdos, de quem eu fora a peste, um cão raivoso e cego que ladrava contra a Bíblia, dulcificada por seu mel celestial e iluminada por tua luz. E me consumia de dor por causa dos inimigos de tuas Escrituras.
Quando poderei recordar tudo o que aconteceu naqueles dias de descanso? Mas não esqueci, nem quero silenciar, a aspereza de um açoite que usaste em mim, e a admirável presteza de tua misericórdia.
Atormentavas-me então com uma dor de dentes, que se agravara a tal ponto de me impedir até de falar. Ocorreu-me ao pensamento pedir a todos os amigos, que rogassem por mim, ó Deus da salvação! Escrevi meu pedido numa tabuleta encerada, e lha dei para que o lessem. Apenas dobramos os joelhos com suplicante afeto, logo a dor desapareceu. E que dor! E como desapareceu! Enchi-me de espanto, eu o confesso, meu Deus e Senhor. Nunca, desde minha infância, havia experimentado coisa semelhante.
No fundo de meu coração penetrou o sinal da tua vontade e, alegre na fé, louvei teu nome. contudo, esta fé não me deixava viver tranqüilo quanto a meus pecados passados, que ainda não me haviam sido perdoados por teu batismo.
A doçura dos salmos
Por fim, chegou o dia da libertação da profissão de retórico, da qual já me libertara em pensamento. Assim aconteceu. Livraste minha língua da tarefa de que há havias livrado meu coração. Eu te bendizia contente, e parti com todos os meus, para a quinta de Verecundo. O que lá realizei nas letras, já a teu serviço, mas ainda com a respiração ofegante, como durante uma pausa da luta, e ainda respirando da soberba da erudição, é atestado pelos livros nos quais anotava meus debates com meus amigos ou comigo mesmo em tua presença (refere-se aos seguintes livros: Contra Acadêmicos, De beata vita, De ordine e dos Solilóquios). Do que tratei com Nebrídio, então ausente, claramente o indicam minhas cartas.
Mas quando encontrei tempo suficiente para dar testemunho de todos os grandes benefícios que me concedeste nessa época da vida, uma vez que tenho pressa de chegar a outros assuntos mais importantes? Volta-me – e me é doce confessá-lo, Senhor – a lembrança dos estímulos internos com que me domaste; o modo como me aplanaste a alma derrubando as colinas e montanhas de meus pensamentos; como endireitaste meus caminhos tortuosos e suavizasse minhas asperezas; como também submeteste Alípio – o irmão de meu coração – ao nome de teu Filho único, Jesus Cristo, Senhor e Salvador nosso, nome que ele mal suportava em minhas obras, porque preferia o cheiro dos soberbos cedros das escolas, já abatidos pelo Senhor, ao odor das salutares ervas de tua Igreja, antídoto contra o veneno das serpentes.
Que invocações elevei a ti, meu Deus, lendo os Salmos de Davi, cânticos de fé, hinos de piedade, que expulsavam de mim todo sentimento de orgulho? Eu era ainda inexperiente de teu verdadeiro amor, e dividia minhas horas de lazer com Alípio, catecúmeno como eu. Minha mãe estava conosco. Ao aspecto da mulher ela aliava fé varonil, a calma da velhice, a ternura de mãe e a piedade de cristã. Que exclamações elevei a ti naqueles salmos, e como me inflamava com eles em teu amor! Incendiava-me em desejos de recitá-los, se fosse possível, ao mundo inteiro, para rebater a soberba do gênero humano! Com efeito, em todo o mundo se cantam. Não há ninguém que se subtraia a teu calor.
Com que veemente e dolorosa indagação me levantava contra os maniqueístas! E de novo me compadecia deles por ignorarem esses sacramentos, esses remédios, investindo loucamente contra o antídoto que poderia curá-los! Gostaria que estivessem perto de mim, sem que eu o soubesse, e que vissem meu rosto e ouvissem minhas exclamações quando lia o Salmo 4 naquelas minhas férias, e percebessem os efeitos salutares que me produzia este salmo: Quando te invoquei, tu me escutaste, ó Deus de minha justiça! Dilataste minha alma na tribulação. Compadece-te, Senhor, de mim, e ouve minha prece. Se me ouvissem – sem eu o saber, para
que não pensassem que eram por causa deles as palavras que eu entremeava às do salmo, porque realmente nem eu diria tais coisas, nem as diria daquele modo, se soubesse da sua presença; e, mesmo que as palavras fossem as mesmas, ele não as entenderiam como eu as dizia a mim mesmo, diante de ti, na íntima efusão dos afetos de minha alma.
Estremeci de medo, ao mesmo tempo me abrasei de alegre esperança em tua misericórdia, ó Pai! E todos estes sentimentos saíam pelos meus olhos e pela voz quando, dirigindo-se para nós, teu Espírito de bondade nos dizia: Filhos dos homens, até quando sereis duros de coração? Por que amais a vaidade e buscais a mentira?
Também eu tinha amado a vaidade e buscado a mentira. Mas tu, Senhor, já havias glorificado teu eleito, ressuscitando-o de entre os mortos e colocando-o à tua direita, de onde haveria de nos enviar, segundo a promessa, o Paráclito, o Espírito da Verdade. O Senhor estava glorificado, ressuscitando de entre os mortos, e subindo aos céus. Antes o Espírito ainda não tinha sido dado, porque Jesus ainda não tinha sido glorificado.
Clama o profeta: Até quando sereis duros de coração? Por que amais a vaidade e buscais a mentira? Sabeis que o Senhor já glorificou a seu santo. Clama: Até quando? Clama: Sabei! – E eu sem o saber durante tanto tempo, amando a vaidade e buscando a mentira!
Por isso tremi quando o ouvi, porque me lembrei de ter sido igual àqueles a quem tais palavras eram dirigidas. Os fantasmas que eu havia tomado pela verdade nada mais eram do que vaidade e mentira.
Ah! As queixas fortes e profundas que me inspiravam a dor da recordação! Oxalá as tivessem ouvido os que ainda amam a vaidade e buscam a mentira! Talvez também se perturbassem e vomitassem seu erro. E tu os terias ouvidos quando clamassem por ti, porque morreu por nós de verdadeira morte corporal aquele que intercede por nós diante de ti.
Eu lia: Irai-vos, e não queirais pecar. Como me perturbavam tais palavras, meu Deus! Já
havia aprendido a me irar contra mim mesmo pelos meus crimes passados, para não pecar mais;
e de uma cólera justa, porque não era uma natureza estranha, da raça das trevas, a que em mim
pecava, como dizem os que não se indignam contra si, e acumulam contra si a ira para o dia da
ira e da revelação de teu justo juízo?
Meus bens já não eram exteriores, e eu já não os buscava à luz deste sol, com olhos carnais. Os que querem gozar externamente, facilmente se dissipam e derramam pelas coisas visíveis e temporais, lambendo com pensamento faminto apenas as aparências. Oh! Se eles se esgotassem com a privação, e perguntassem: Quem nos mostrará o bem? E que ouvissem nossa resposta: Está gravada dentro de nós a luz de teu rosto, Senhor! – Porque não somos nós a luz que ilumina a todo homem, mas somos iluminados por ti, para que sejamos luz em ti, nós que outrora fomos trevas.
Oh! Se eles vissem essa luz interior e eterna que eu havia visto! E como a havia saboreado, irritava-me por não poder mostrá-la. Se, pelo seus olhares dirigidos para fora, visse seu coração afastado de ti, me dissessem: “Quem nos mostrará o bem? Pois ali, onde me irritara contra mim mesmo, ali, no recôndito de meu coração onde, arrependido, eu havia sacrificado e imolado em mim o velho homem; onde, pondo em ti minha esperança, começara a meditar a renovação de mim mesmo, ali fizeste com que eu sentisse tua doçura, dando alegria a meu coração. E exclamava ao ler, fora de mim, essas palavras cuja verdade ecoava em mim; e não queria desdobrar-me pelos bens terrenos, devorando o tempo e sendo por ele devorado, porque
possuía na eterna simplicidade outro trigo, outro vinho e outro azeite.
E subia, no versículo seguinte, um profundo clamor de meu coração: Oh! Em paz! Oh! Em seu próprio Ser! Mas, que disse? Dormirei e descansarei! Com efeito, quem nos há de resistir quando se cumprir a palavra que está escrita: A morte foi devorada pela vitória?
Tu és esse mesmo Ser, e não mudas, e em ti está o repouso que faz esquecer todos os sofrimentos. Porque ninguém pode ser comparado a ti e nem vale pensar em adquirir outras coisas que não sejam o que tu és; mas tu, Senhor, singularmente me firmaste na esperança.
Eu lia isto, e me inflamava. Não sabia que fazer com aqueles surdos, de quem eu fora a peste, um cão raivoso e cego que ladrava contra a Bíblia, dulcificada por seu mel celestial e iluminada por tua luz. E me consumia de dor por causa dos inimigos de tuas Escrituras.
Quando poderei recordar tudo o que aconteceu naqueles dias de descanso? Mas não esqueci, nem quero silenciar, a aspereza de um açoite que usaste em mim, e a admirável presteza de tua misericórdia.
Atormentavas-me então com uma dor de dentes, que se agravara a tal ponto de me impedir até de falar. Ocorreu-me ao pensamento pedir a todos os amigos, que rogassem por mim, ó Deus da salvação! Escrevi meu pedido numa tabuleta encerada, e lha dei para que o lessem. Apenas dobramos os joelhos com suplicante afeto, logo a dor desapareceu. E que dor! E como desapareceu! Enchi-me de espanto, eu o confesso, meu Deus e Senhor. Nunca, desde minha infância, havia experimentado coisa semelhante.
No fundo de meu coração penetrou o sinal da tua vontade e, alegre na fé, louvei teu nome. contudo, esta fé não me deixava viver tranqüilo quanto a meus pecados passados, que ainda não me haviam sido perdoados por teu batismo.
(Continua...)
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