terça-feira, 19 de abril de 2011

CONFISSÕES DE SANTO AGOSTINHO - Parte 25

CAPÍTULO XV
A memória das coisas ausentes
 

  Mas quem poderá explicar se a recordação se faz por meio de imagens ou não?
  Por exemplo: se digo pedra, ou digo sol, sem que tais objetos estejam presentes a meus sentidos, certamente tenho suas imagens na memória, à minha disposição.
  Evoco uma dor do corpo, que está ausente de mim, já que nada me dói. Contudo, se a imagem da dor não estivesse em minha memória, não saberia o que dizia, e ao raciocinar não a distinguiria do prazer.
  Falo de saúde do corpo, estando são; neste caso, está em mim o próprio objeto. No entanto, se sua imagem não estivesse em minha memória, de modo algum lembraria o significado dessa palavra. Os doentes, ouvindo falar de saúde, não saberiam do que se trata, não fosse o poder da memória a conservar a imagem da ausência da realidade.
  Falo dos números com que calculamos, e eles se apresentam na memória, não suas imagens, mas os próprios números.
  Evoco a imagem do sol, e esta se apresenta à minha memória; e não evoco a imagem de uma imagem, mas a própria imagem, disponível à recordação.
  Falo em memória, e reconheço o que falo, mas de onde o sei, senão da própria memória? Estará ela presente a si própria por sua imagem, e não por si mesma?

CAPÍTULO XVI
A memória do esquecimento


  E quando falo do esquecimento, e reconheço de que falo, como poderia eu reconhecê-lo se dele não lembrasse? Não falo do som da palavra, mas da realidade que ela exprime. Se eu a tivesse esquecido, não seria capaz de reconhecer o significado de tal som. Por isso, quando me lembro da memória é por ela mesmo que se apresenta a mim; mas quando me lembro do esquecimento, este e a memória estão presentes simultaneamente: a memória, com que me recordo, e o esquecimento, de que me recordo.
  Mas, que é o esquecimento, senão falta de memória? E como pode ele estar presente na minha lembrança. Se sua lembrança significa não lembrar? Mas se nos lembramos, o guardamos na memória, e se nos é impossível reconhecer o que significa a palavra esquecimento, quando a ouvimos, a não ser que dele nos lembremos, logo a memória é a que retém o esquecimento. Ele está na memória, pois do contrário, nós o esqueceríamos; mas, ele presente, nós nos esquecemos. Segue-se que ele não está presente à memória por si mesmo, quando nos lembramos dele, mas por sua imagem. Do contrário, o esquecimento não faria com que nos lembrássemos, mas com que nos esquecêssemos. Mas, enfim, quem poderá descobrir, quem poderá compreender o modo como isto se realiza?
  Mas, Senhor, esgota-me esta busca e é, portanto, sobre mim mesmo que me canso; tornei-me para mim mesmo uma terra de dificuldades e árduos labores. Por que não exploro agora as regiões do firmamento, nem meço as distâncias dos astros, nem busco as leis do equilíbrio da terra. Sou eu que me lembro, eu, o meu espírito. Não é de admirar que esteja longe de mim tudo o que não sou eu. Todavia, que há mais perto de mim do que eu mesmo? No entanto, é-me impossível compreender a natureza de minha memória, sem a qual eu nem poderia pronunciar meu próprio nome.   Que direi então, desde que tenho a certeza que lembro do esquecimento? Diria talvez que não está em minha memória o que recordo? Ou talvez direi que o esquecimento está em minha memória, para que não o esqueça? Ambas hipóteses são grandes absurdos. Vejamos uma terceira hipótese: poderei eu afirmar que minha memória retém a imagem do esquecimento, e não o esquecimento em si, quando dele me lembro? Com que fundamento, pois, poderei dizê-lo, se para que se grave na memória a imagem de um objeto, é necessário que este esteja presente antes, de onde emana a imagem a ser gravada? É assim que lembro de Cartago, e assim de todos os outros lugares por que passei;  assim me lembro do rosto dos homens que vi e das coisas que meus sentidos me deram a conhecer; assim me lembro ainda da dor física, coisas cujas imagens a memória fixou quando estavam presentes, para que eu as pudesse contemplar e repassar em espírito, quando eu as evocasse na sua ausência.
  Se, pois, é a imagem do esquecimento que está na memória, e não ele mesmo, é evidente que nalgum momento esteve presente para que sua imagem fosse fixada. Mas, se estava presente, como podia gravar na memória sua imagem, se o esquecimento apaga com sua presença tudo o que lá está impresso? Contudo, seja qual for o mecanismo desse fenômeno, e por mais incompreensível e inexplicável que seja, estou certo de que me lembro do esquecimento, que apaga da memória, todas as nossas lembranças.

CAPÍTULO XVII
Deus e a memória


  Grande é o poder da memória! E ela tem algo de terrível, meu Deus, em sua complexidade infinita e profunda. E isto é o espírito, e isto sou eu mesmo. Que sou, pois meu Deus? Qual a minha natureza? Vida vária e multiforme, de amplidão imensa. Eis-me em minha memória, em seus campos, antros, inumeráveis cavernas, tudo isso infinitamente cheio de toda espécie de coisas, também inumeráveis. Umas gravadas em imagens, como os corpos; outras, estão sob a forma de não sei que noções e sinais, como os afetos da alma, que a memória conserva quando a alma já não os sente, embora tudo o que está na memória esteja também no espírito. Percorro em todas as direções este mundo interior, vou de um lado para outro, e nele me aprofundo o mais possível, sem encontrar-lhe os limites, tão grande é a vida que reside no homem mortal!
  Que hei de fazer, pois, meu Deus, minha verdadeira vida? Ultrapassarei também esta faculdade que se chama memória? Ultrapassá-la-ei para chegar a ti, doce luz? Que dizes? Subindo em espírito a ti, que estás acima de mim, ultrapassarei também esta minha força, que se chama memória, pois quero atingir-te onde és acessível, e unir-me a ti por onde possa fazê-lo. Também os animais e as aves têm memória, porque de outro modo não voltariam a seus ninhos e tocas, nem fariam outras coisas habituais, e nem mesmo poderiam adquiri hábitos sem a memória. Passarei, pois, além da memória para chegar àquele que me separou dos animais e me fez mais sábio que as aves do céu. Passarei além da memória, mas onde te hei de achar, ó Deus verdadeiramente bom, suavidade segura? Onde te hei de encontrar? Se te encontro sem minha memória, estou esquecido de ti, e se não me lembro de ti, como te poderei encontrar?

CAPÍTULO XVIII
A memória das coisas perdidas


  Uma mulher perdeu uma dracma, e a procurou com sua lanterna. Mas se não se lembrasse dela, não a haveria de encontrar; de fato, se dela não lembrasse, como poderia saber, ao acha-la, que era aquela?
  Lembro-me de ter procurado e achado muitas coisas perdidas, sei disso porque, estando eu à procura, me diziam: “Por acaso é esta?” “Por acaso é aquela?” – e eu sempre respondia que não, até encontrar o que procurava. Se não tivesse fixado a lembrança do objeto, fosse o que fosse, ainda que me fosse mostrado, não o encontraria, pois não o poderia reconhecer. E sempre que perdemos e achamos alguma coisa acontece o mesmo.
  Se alguma coisa desaparece de nossa vista, e não da memória – como sucede com um corpo visível – conservamos interiormente sua imagem e o procuramos até que apareça a nossos olhos. Quando for encontrado, será reconhecido de acordo com essa imagem interior. Não podemos dizer que encontramos um objeto perdido se não o reconhecemos; nem o podemos reconhecer se dele não lembramos. Tinha pois desaparecido da nossa vista, mas era conservado pela memória.

CAPÍTULO XIX
A memória das lembranças
 

  E quando a própria memória perde uma lembrança, como acontece quando nos esquecemos de algo e procuramos recordá-la, o que se passa? Onde, afinal, a procuramos senão na própria memória? E se esta, por acaso, nos oferece uma coisa por outra, a repelimos até que apareça o que buscamos. E assim que aparece dizemos: “É isto”. E assim não diríamos se não a reconhecêssemos, e não a reconheceríamos se dela não houvesse registro. É certo, portanto, que já a havíamos esquecido. Ou será que ela não se apagara totalmente de nossa memória, por meio da parte que nos ficou impressa procuramos a outra? A memória, nesse caso, teria ciência de não poder, como de ordinário, fornecer a lembrança em seu conjunto e, mutilada, reclamaria e parte faltante. É o que sucede quando vemos uma pessoa conhecida, ou nela pensamos sem poder recordar seu nome. Se outro nome nos apresenta ao espírito, não o associamos à tal pessoa; por isso o afastamos, até que se apresenta um que concorde com nossa representação habitual da pessoa.
  Mas donde nos vem este nome, senão da memória? Mesmo quando nos é sugerido por outrem, é pela memória que reconhecemos; não o aceitamos como um conhecimento novo, mas recordando-o, confirmamos ser esse o nome que nos disseram. Se fosse totalmente apagado da alma, nem mesmo avisados o reconheceríamos.
  Não podemos pois, afirmar que nos esquecemos completamente daquilo de que nos lembramos ter esquecido. De nenhum modo poderíamos resgatar uma lembrança perdida se seu esquecimento fosse total.

CAPÍTULO XX
A memória da felicidade
 

  E como hei de te buscar, Senhor? Quando te procuro, meu Deus, estou à procura da felicidade. Procurar-te-ei para que minha alma viva, porque meu corpo vive de minha alma, e minha alma vive de ti. Como então devo buscar a felicidade? Porque não a possuirei até que possa dizer “basta”. Como, pois, procurá-la? Talvez pela lembrança, como se a tivesse esquecido, guardando contudo a lembrança do esquecimento? Ou pelo desejo de conhecer algo desconhecido ou por nunca tê-lo vivido, ou por tê-lo esquecido a ponto de nem ter consciência do seu esquecimento?
  Mas não será justamente a felicidade que todos querem, sem exceção? E onde a conheceram para a desejarem tanto? Onde a viram para assim a amarem? O que é certo é que está em nós a sua imagem. Mas não sei como isto se dá. E há diversos modos de ser feliz: quer possuindo realmente a felicidade, quer possuindo apenas sua esperança. Este último modo é inferior ao dos que são realmente felizes, embora estejam melhor que os não felizes nem na realidade, nem na esperança. Mesmo estes, todavia, não desejariam tanto a felicidade se esta lhes fosse completamente estranha, e é certo que a desejam. Não sei como a conheceram, e portanto ignoro a noção que dela têm. O que me preocupa é saber se essa noção reside na memória, pois, se é lá que reside, é sinal de já fomos felizes alguma vez. Por ora não busco saber se todos fomos felizes individualmente, ou se o fomos naquele que pecou primeiro, e no qual todos morremos, e de quem nascemos na infelicidade. O que procuro saber é se a felicidade reside na memória, porque certamente não a amaríamos se não a conhecêssemos. Mal ouvimos esta palavra, e todos confessamos que desejamos a mesma coisa; e não é o som da palavra que nos deleita. Quando um grego a ouve pronunciar em latim, não se alegra, porque ignora seu sentido. Mas nós nos alegramos ao ouvi-la, como ele se a ouvisse em sua língua. A felicidade, com efeito, não é grega nem latina; mas gregos e latinos, assim como todos que falam outras línguas, desejam alcançá-la.
  Logo, a felicidade é conhecida de todos; e se fosse possível perguntar-lhes a uma voz:” Quereis ser felizes?” – todos, sem hesitar, responderiam que sim. E isso não aconteceria se a memória não tivesse em si a realidade, expressa por essa palavra.

CAPÍTULO XXI
A memória do que nunca tivemos


  Podemos comparar essa lembrança à que conserva de Cartago, quem a viu? Não, a felicidade não se vê com os olhos, pois não é corporal. Seria pois comparável à lembrança dos números? Também não, pois quem conhece os números não deseja adquiri-los. Pelo contrário, a idéia da felicidade nos inclina a amá-la e a querer possuí-la, para sermos felizes.
  Lembramos dela, talvez, como lembramos da eloqüência? Também não, embora ao ouvir essa palavra, muitos que não são eloqüentes  a associam à realidade que ela exprime, e desejariam obtê-la, o que indica que já têm idéia de eloqüência. Foi porém pelos sentidos do corpo que ouviram a eloqüência alheia, deleitando-se com ela, e desejando também ser eloqüentes. E certamente não lhes daria prazer se já não tivessem uma idéia da eloqüência, e nem a desejariam se esta não os tivesse deleitado. Mas a felicidade não a percebemos nos outros por nenhum sentido corporal.
  Essa lembrança, será porventura comparável à da alegria? Talvez, pois quando estou triste me lembro da alegria passada, e quando infeliz, lembro-me da felicidade. Ora, esta alegria, eu jamais a vi, ou ouvi, ou senti, ou saboreei, ou toquei; apenas a experimentei em minha alma quando me alegrei. E esta idéia se fixou em minha memória para que eu pudesse recordá-la, às vezes com desgosto, outras com saudades, conforme as circunstâncias que a geraram.
  De fato me senti invadido de alegria causada por ações torpes, cuja lembrança agora aborreço e abomino; outras vezes alegrei-me por ações boas e honestas, das quais me lembro com saudade; mas já pertencem ao passado, e evoco com tristeza minha antiga alegria.
  Mas onde e quando, então, experimentei a felicidade para lembrar-me dela, para amá-la e deseja-la? Não sou eu apenas, ou alguns que a desejam; mas todos, sem exceção queremos ser felizes. Sem uma noção precisa da felicidade, nossa vontade não teria essa firmeza.
  Que significa isto? Se perguntarmos a dois homens se querem alistar-se no exército, talvez um responda que sim o outro que não. Mas, perguntemos se desejam ser felizes, e ambos responderão que sim, sem nenhuma hesitação. E desejando um engajar-se, e o outro não, têm ambos a mesma finalidade: ser felizes. Um gosta disto, outro daquilo, mas ambos concordam em ser felizes, como seria unânime a resposta afirmativa a quem lhes perguntasse se querem estar alegres. Essa alegria é o que eles chamam de felicidade. E ainda que um siga por um caminho e outro por outro, a finalidade de todos é um só: a alegria. Como a alegria é um sentimento do qual todos temos experiência, a encontramos em nossa memória, e a reconhecemos ao ouvir pronunciar a palavra felicidade.

(Continua...)

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