fratres in unum
(IHU) Mais incertezas após a infeliz instrução Universae Ecclesiae da Comissão “Ecclesia Dei” do Vaticano.
A análise é de Andrea Grillo, filósofo e teólogo italiano, especialista em liturgia e pastoral, doutor em teologia pelo Instituto de Liturgia Pastoral de Pádua e professor do Pontifício Ateneu S. Anselmo, de Roma e do Instituto Teológico Marchigiano de Ancona. Desde 2008, leciona na Pontifícia Universidade Gregoriana, em Roma, como professor convidado.
O artigo foi publicado em seu blog Come Se Non, 14-05-2011. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis o texto.
Profeticamente, no dia seguinte à promulgação, em julho de 2007, o cardeal Ruini havia visto bem “o risco de que um motu proprio emitido para unir mais a comunidade cristã fosse utilizado, ao contrário, para dividi-la”. Depois de um motu proprio, de uma carta aos bispos que o acompanhava e agora esta recente instrução, parece justamente que a profecia compreendeu corretamente: a divisão é uma possibilidade real dessa medida, que agora poderia se realizar com mais facilidade.
É preciso reconhecer: o monstruum era tal desde o início. Quando se quer reler uma tradição, reanimando um ritual que “saiu de vigência”, como o de 1962, e obstinando-se a presumir fatos que não existem e a construir ficções jurídicas sem a averiguação real – sob o pretexto de que um equilíbrio ousado e muito arriscado conceba uma dupla vigência paralela de duas formas diferentes e em tensão entre si do mesmo rito romano –, o nó das contradições está destinado a se atar cada vez mais. E, independentemente de quantas comissões sejam instituídas, quantas consultas estejam previstas, quantos DVDs com missas pré-conciliares sejam produzidos e distribuídos, quantos “direitos dos fiéis” sejam reconhecidos, a confusão continua aumentando sempre mais, e a desorientação não diminui.
O último elo da corrente – a Instrução Universae Ecclesiae – também é esmagado por um problema estruturalmente insolúvel: como se faz para “instruir” em torno a uma contradição patente? Quanto mais se instrui, menos se entende. Se, de repente – e não se sabe ainda com base em que princípio jurídico ou tradicional –, um ritual “não mais vigente”, superado pela sua versão reformada, volta magicamente em vigor e pretende valer paralelamente com relação ao que o havia intencionalmente emendado, renovado e superado, tudo sofre uma espécie de deformação irreparável.
Com os apegos e as nostalgias, assumidos como princípios de ordenamento eclesial, nunca se foi muito longe. De fato, com base nessa visão altamente problemática, qualquer padre agora poderia optar por celebrar o rito da eucaristia com a forma ritual que preferir, desde que a celebre “em privado”. Verdadeiramente instrutivo: duas contradições individualistas, que se sobrepõem, não realizam nada mais do que uma forma paradoxal de não celebração e de não identidade.
Por outro lado, com relação aos fiéis, qualquer grupo pode ter o direito de ver uma missa ser celebrada, à qual se pode assistir segundo o rito não mais vigente. E agora se diz – com a especificação de uma eclesiologia de supermercado ou de cinema multiplex – que “grupo válido” é também aquele formado por um fiel de Bérgamo, um de Vicenza, três de Como (mas de paróquias diferentes, obviamente) e um de Novara. Isso também é verdadeiramente muito instrutivo sobre a natureza comunitária da Igreja.
Mas não basta isso: a lógica do rito “extraordinário” é tão excepcional que, quando se confronta com a realidade, tem a força até de curvar a lei. Por isso, quando o Código de Direito Canônico vigente não é coerente com as rubricas do rito não mais vigente, não há nenhum problema: deve ser aplicada a lei que vigorava em 1962, ou seja, o Código de 1917, que, porém, hoje não vigora mais. Nada de medo: é justo, de fato, que ao rito não mais vigente corresponda a lei não mais vigente. O que há de mais instrutivo sobre essa coerência entre rito e lei na não vigência?
Mas, mais uma vez, mesmo que seja reconhecido que ordinariamente não se dá nenhuma forma de ordenação com o rito extraordinário, no entanto, em alguns casos, uma exceção é possível, e a alguns (privilegiados, sim, mas quase de se compadecer) é dada a faculdade de ordenar segundo o rito pré-conciliar. Como pode não ser instrutivo esse pontual esclarecimento das exceções à sacrossanta insuperabilidade do rito ordinário?
Depois, há o delineamento cuidadoso do “presbítero” considerado “idôneo” para a celebração, segundo o rito não mais vigente. É verdade que ele vai ter que se virar com a língua latina, mas orientar-se nas cinco declinações e ter alguma experiência com paradigmas verbais são requisitos suficientes para o soletramento básico, que satis est para que a forma mais formal seja salva e, portanto, válida. O fato de se conhecer o rito na sua estrutura deve ser presumido com base na “espontaneidade” com que o padre o exige: o efeito instrutivo beira aqui a uma sutil e complacente ironia.
Os muitos detalhes da nova instrução – dos quais citamos só algumas partes notáveis – ilustram bem a inexaurível corrente de paradoxos – observados com divertida preocupação – em que se tropeça quando se perde o sentido da realidade e se toma o caminho do sonho, da ilusão e da mistificação. O que significa dizer que agora devemos inserir, no missal de 1962, novos santos e novos prefácios? Como fazemos para pensar que se deve fazer a reforma daquele rito que já foi reformado, com todos os novos santos, novos prefácios, novas coletas, novas leituras bíblicas, novas orações eucarísticas, novas superoblata, novos postcommunio? Precisamos de uma outra reforma que adicione santos e prefácios ao rito não mais vigente de 1962? Mas já não estamos em 2011? Talvez nos despertamos de repente, depois de um sono de 49 anos? Como se faz para não entender que toda essa aflição no vazio, e vaziamente, só serve para confundir e desperdiçar energias e forças?
Considerando-se tudo isso, já nos havíamos ocupado dessas quimeras sem futuro. O rito de 1962 não é mais vigente desde que foi aprovada a nova forma do rito romano pelo Papa Paulo VI. Desse ponto de vista, o rito romano é tornado vivo e florescente pela tradição da nova forma, enquanto aquela forma e aquele uso definido provisoriamente em 1962, por explícita declaração do Papa João XXIII, estão agora superados, esgotados, sem nem mais vigência nem tradição. Toda tentativa, embora com autoridade, de negar essa evidência, só produz ilusões, contradições e desorientação.
A intenção do motu proprio era de “reaproximar” as margens do cisma lefebvriano. A quase quatro anos de distância, e com tudo o que aconteceu de 2007 em diante, podemos dizer com segurança: non expedit. A instrução diz, ao invés, que o motu proprio “tornou mais acessível à Igreja universal a riqueza da Liturgia Romana“. Ou seja, pretende desvincular o procedimento da justificação contingente que o havia motivado originalmente. Espera-se que uma instrução resolva os problemas – mas aqui nada é verdadeiramente resolvido –, não que faça teologia aproximativa – e aqui, infelizmente, nos atrevemos a fazê-la com muita desenvoltura.
A cereja do bolo, quanto à instrução, é o título: Universae Ecclesiae. A “universa ecclesia” – na verdade – não se apaixona de fato pelos temas da instrução e não se reconhece neles. Ou melhor, para fazê-la participar, é preciso justamente pôr em causa pelo menos o título. As pretensões do documento geram uma “Multiversa Ecclesia”, até uma “Controversa Ecclesia”. A mesmao comissão que elaborou o texto tem o nome de “Ecclesia Dei”, mas o nome completo do documento do qual deriva seu próprio nome é “Ecclesia Dei afflicta”. Que pena, justamente aflição, e não reconciliação, parece brotar dessa sua infelicíssima instrução.
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