CAPÍTULO XXII
A verdadeira felicidade
Longe de mim, longe do coração de teu servo, Senhor, que a ti se confessa, a idéia de encontrar a felicidade não importa em que alegria! A felicidade é uma alegria que não é concedida aos ímpios, mas àqueles que te servem por puro amor: tu és essa alegria! Alegrar-se de ti, em ti e por ti: isso é felicidade. E não há outra. Os que imaginam outra felicidade, apegam-se a uma alegria que não é a verdadeira. Contudo, sempre há uma imagem da alegria da qual sua vontade não se afasta.
A verdadeira felicidade
Longe de mim, longe do coração de teu servo, Senhor, que a ti se confessa, a idéia de encontrar a felicidade não importa em que alegria! A felicidade é uma alegria que não é concedida aos ímpios, mas àqueles que te servem por puro amor: tu és essa alegria! Alegrar-se de ti, em ti e por ti: isso é felicidade. E não há outra. Os que imaginam outra felicidade, apegam-se a uma alegria que não é a verdadeira. Contudo, sempre há uma imagem da alegria da qual sua vontade não se afasta.
CAPÍTULO XXIII
Felicidade e verdade
Poderemos então concluir que nem todos desejam ser felizes, pois há aqueles que não querem buscar em ti sua alegria, tu que és a única felicidade? Ou talvez todos a queiram, mas, como a carne combate contra o espírito, e o espírito contra a carne, e com isso se contentam. Porque não querem com força bastante aquilo que não podem, para obtê-lo.
Pergunto a todos se preferem encontrar a alegria na verdade ou no erro; ninguém hesita em declarar que preferem a verdade, como em dizer que querem ser felizes. É que a felicidade é a alegria que provém da verdade. E essa alegria é a que nasce de ti, que és a própria Verdade, ó meu Deus, minha luz, saúde de meu rosto! Todos querem essa vida, a única feliz, essa alegria que se origina na verdade.
Encontrei muitos que gostam de enganar, mas ninguém que quisesse ser enganado.
Onde, então, conheceram a felicidade, senão onde conheceram a verdade? Visto que não querem ser enganados, também amam a verdade, e desde que amam a felicidade, que nada mais é que a alegria proveniente da verdade, certamente também amam a verdade; e não a amariam se não retivessem dela, na sua memória, alguma noção. Por que, então, não se alegram com ela? Por que não são felizes? Porque se empolgam demais com outras coisas, que os tornam mais infelizes do que a verdade, de que se recordam fracamente, e que os faria felizes.
Há ainda um pouco de luz entre os homens: caminhem, caminhem, para que as trevas não os surpreendam.
Mas por que a verdade gera o ódio? Por que os homens olham como inimigo aquele que a prega em teu nome, uma vez que amam a felicidade, que mais não é que a alegria nascida da verdade? Talvez por amarem a verdade de tal modo que tudo de diferente que amam, querem que seja verdade; e, não admitindo ser enganados, também não querem ser convencidos de seu erro. Desse modo, detestam a verdade por amarem aquilo que tomam pela verdade. Amam-na quando ela brilha, mas odeiam-na quando os repreende; e, como não querem ser enganados, mas enganar, eles a amam quando ela se manifesta, mas a odeiam quando ela os denuncia. Porém ela os castiga; não querem ser descobertos pela verdade, mas esta os denuncia, sem que por isso se manifeste a eles.
É assim o coração do homem! Cego e lerdo, torpe e indecente: quer permanecer oculto, mas não quer que nada lhe seja ocultado. Em castigo, sucede-lhe o contrário: não consegue esconder-se da verdade, enquanto esta lhe continua oculta. Contudo, apesar de tão infeliz, prefere encontrar alegrias na verdade que no erro. Será, portanto, feliz quando, livre de perturbações, se alegrar somente na Verdade, origem de tudo o que é verdadeiro.
CAPÍTULO XXIV
Deus e a memória
Eis como esquadrinhei minha memória em tua procura, Senhor: não me foi possível encontrar-te fora dela. Nada encontrei de ti que não fosse lembrança, e nunca me esqueci de ti desde que te conheci. Onde encontrei a verdade, aí encontrei a meu Deus, que é a própria verdade; e desde que aprendi a conhecer a verdade, nunca mais a esqueci. Por isso, desde que te conheço, permaneces em minha memória. É lá que te encontro quando me lembro de ti e quando sou feliz em ti. Estas são as santas delicias que me deste em tua misericórdia, olhando para minha pobreza.
CAPÍTULO XXV
Recapitulação
Onde habitas em minha memória, Senhor, em que lugar dela estás? Que esconderijo construíste aí? Que santuário aí edificaste para ti? Deste-me a honra de morar em minha memória; mas em que parte dela resides? É o que quero agora descobrir. Quando me recordei de ti, ultrapassei aquela região da memóriaque também os animais possuem, pois não te encontrei entre as imagens dos objetos corpóreos. E cheguei àquela parte onde depositei os afetos de minha alma, mas também aí não te encontrei. Cheguei à morada que meu próprio espírito possui na memória – porque também o espírito lembra de si mesmo – mas
nem ali estavas. Isso porque não és imagem corpórea, nem afeto de ser vivo, como a alegria, a tristeza, o desejo, o temor, a lembrança, o esquecimento e outros semelhantes, e nem és meu próprio espírito, porque és o Senhor e Deus do espírito, e tudo isso é mutável, enquanto permaneces imutável e subsistes acima de todas as coisas, e te dignaste habitar em minha memória desde que te conheço.
Mas, por que perguntar em que lugar da memória habitas, como se a memória tivesse compartimentos? Certo é que habitas nela desde que te conheço, e é nela que te encontro, quando penso em ti.
CAPÍTULO XXVI
Onde encontrar Deus?
Onde, então, te encontrei, para te conhecer? Não estavas ainda em minha memória antes de eu te conhecer. Onde, então, te encontrei, para te conhecer, senão em ti mesmo, acima de mim? No entanto, aí não existe espaço. Quer nos afastemos de ti, quer nos aproximemos, aí não existe espaço algum. Ó Verdade, por toda parte assistes aos que te consultam, e respondes ao mesmo tempo a todas essas diversas consultas. Tuas respostas são claras, mas nem para todos. Os homens te consultam sobre o que querem, mas nem sempre ouvem as respostas que querem. Teu servo fiel é o que não pensa em ouvir de ti a resposta que quer, mas em querer a resposta que lhe dás.
CAPÍTULO XXVII
Solilóquio de amor
Tarde te amei, Beleza tão antiga e tão nova, tarde te amei! Eis que estavas dentro de mim, e eu lá fora, a te procurar! Eu, disforme, me atirava à beleza das formas que criaste. Estavas comigo, e eu não estava em ti. Retinham-me longe de ti aquilo que nem existiria se não existisse em ti. Tu me chamaste, gritaste por mim, e venceste minha surdez. Brilhaste, e teu esplendor afugentou minha cegueira. Exalaste teu perfume, respirei-o, e suspiro por ti. Eu te saboreei, e agora tenho fome e sede de ti. Tocaste-me, e o desejo de tua paz me inflama.
CAPÍTULO XXVIII
A vida do homem
Quando me unir a ti com todo meu ser, não sentirei mais dor ou fadiga; minha vida, cheia de ti, será então a verdadeira vida. Alivias aqueles que enches de ti; mas, como ainda não estou cheio de ti, sou um peso para mim mesmo. Minhas alegrias, que deveriam ser choradas, lutam com minhas tristezas que deveriam alegrar-me, e ignoro de que lado está a vitória.
Ai de mim, Senhor, tem piedade de mim! As tristezas do meu mal lutam com minhas santas alegrias, e eu não sei de que lado está a vitória. Ai de mim! Senhor, tem piedade de mim! Eis minhas feridas: eu não as escondo. Tu és o médico, eu o enfermo; és misericordioso, e eu, miserável. Não é contínua tentação a vida do homem sobre a terra? Quem quer aborrecimentos e dificuldades? Mandas que os suportemos, e não que os amemos. Ninguém ama o que tolera, ainda que goste de o tolerar; e mesmo que alguém se alegre em tolerar, preferiria nada ter que suportar. Na adversidade, desejo a prosperidade, e na prosperidade temo a adversidade. Entre estes dois extremos, qual será o termo médio onde a vida humana não seja tentação?
Ai das prosperidades do século, onde se receia a adversidade e a alegria é corrompida! Ai das adversidades do século, uma, duas, três vezes ai! Pelo desejo da prosperidade, por ser dura a adversidade, e pelo temor que vença a nossa paciência! A vida do homem sobre a terra não é pois uma contínua tentação?
CAPÍTULO XXIX
Esperança em Deus
Só na grandeza da Tua misericórdia coloco toda minha esperança. Dai-me o que me ordenas e ordena-me o que quiserdes. Mandas que sejamos castos. “Sabendo, diz um sábio, que ninguém pode ser casto se Deus não lhe der este dom, já é sabedoria saber de quem procede este dom”. A continência reúne os elementos de nossa pessoa, reconduz-nos à unidade que perdemos dispersando-nos por tantas criaturas. Pouco te ama quem te ama juntamente com alguma criatura, e não a ama por tua causa.
Ó amor, que sempre ardes e jamais te extingues! Ó caridade, meu Deus, inflama-me! Ordena-me a continência? Dá-me o que mandas, e ordena o que quiseres!
CAPÍTULO XXX
Sonho e voluptuosidade
Ordenas que me abstenha da concupiscência da carne, da concupiscência dos olhos e da ambição do século. Proibiste as uniões luxuriosas, e embora tenhas permitido o casamento, ensinaste que há um estado bem melhor. E, pela tua graça, optei por esse estado, antes mesmo de me tornar dispensador de teu sacramento.
Mas em minha memória, de que falei longamente, vivem ainda as imagens dessas voluptuosidades que meus costumes de outrora ali gravaram. Sem forças diante de mim quando estou acordado, durante o sono, elas não somente suscitam em mim o prazer, mas o consentimento do prazer e a ilusão da ação. Tais ilusões têm tal poder sobre minha alma e sobre meu corpo, apesar de tão falsas, que seus fantasmas impelem a meu sono o que a realidade não me pode induzir quando em vigília. Acaso então, Senhor meu Deus, será que eu não sou eu nessas horas? E como vai tão grande diferença dentro de mim mesmo, do momento em que passo da vigília para o sono e vice versa! Onde pois está a razão, que durante a vigília resiste a tais sugestões, e que não se abala mesmo diante da realidade? Acaso se fecha juntamente com os olhos? Ou adormece com os sentidos do corpo?
E por que, muitas vezes, mesmo no sono, resistimos, lembrados de nosso propósito, e nele permanecemos castos, negando o consentimento a tais seduções? Todavia, a diferença é tanta que, no caso de não resistir durante o sono, ao acordar voltamos a encontrar a paz de consciência; e a própria diferença entre os dois estados indica que não fomos nós que fizemos aquilo, e lamentamos o que se fez em nós.
Senhor onipotente, não poderia tua mão curar todas as enfermidades de minha alma, abolindo também, com maior abundância de graça, os movimentos lascivos de meu sono? cada vez mais multiplica, Senhor, o número de tuas bondades para comigo, para que minha alma, livre do visco da concupiscência, siga até chegar a ti. Para que não seja rebelde, nem mesmo durante o sono; para que, pelo estímulo de imagens bestiais, não só não cometa essas torpezas degradantes até a lascívia carnal, mas que nem mesmo consinta nisso.
Não é muito para ti, ó Todo-Poderoso, que podes fazer mais do que pedimos e compreendemos, fazer com que, quer minha idade presente, quer na minha vida futura, eu me deleite nessas tentações – mesmo que sejam tão pequenas, que o primeiro esforço as venceria, quando adormeço com pensamentos castos.
Agora digo exultando ao meu Senhor em que estado me encontro neste gênero de pecado, com tremor pelos dons que já me concedeste, e gemendo pelas minhas imperfeições. Espero que aperfeiçoes em mim tuas misericórdias, até que atinja a plenitude da paz de que gozarão em ti meu espírito e meu corpo, quando a morte for absorvida pela vitória.
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