LIVRO DÉCIMO-SEGUNDO
CAPÍTULO I
Prece
Inquieto está meu coração, Senhor, quando, na miséria de minha vida é atingido pelas palavras de tua Escritura Sagrada. Por isso, geralmente, a abundância de palavras é testemunho da pobreza da inteligência humana. A busca usa mais palavras que a descoberta; é maior o pedir que o obter; a mão que bate cansa-se mais do que a mão que recebe. Mas nós temos tua promessa: quem a destruirá? Se Deus está conosco, quem será contra nós? Pedi, e recebereis; procurai e encontrareis; batei, e abrir-se-vos-á. Porque todo o que pede recebe, todo o que procura encontra, e a todo o que bate se lhe abrirá.
São promessas tuas. E quem temerá ser enganado, quando a promessa vem da Verdade?
CAPÍTULO II
O céu do céu
Que a humildade de minha língua confesse à tua grandeza que criaste o céu e a terra; este céu que vejo, esta terra que piso, e de onde tiraste a terra que trago em mim. sim, criaste tudo isto.
Mas, Senhor, onde está o céu de que nos falou a voz do salmista: “O céu do céu pertence ao Senhor, mas ele deu a terra aos filhos dos homens?” – Onde está esse céu que não vemos, e diante do qual tudo o que vemos é apenas terra?
De fato, todo este mundo material, cuja base é a terra, embora não seja inteiramente belo em toda parte, recebeu até em seus últimos elementos, uma aparência atraente. Mas, comparado com esse céu do céu, o céu de nossa terra também não passa de terra. Por isso, não é absurdo chamar de terra esses dois grandes corpos visíveis, se os compararmos a esse céu misterioso que pertence ao Senhor, e não aos filhos dos homens.
CAPÍTULO III
As trevas sobre o abismo
Mas esta terra era invisível e informe, era um profundo abismo acima do qual não pairava nenhuma luz, pois não tinha nenhuma forma. Por isso inspiraste estas palavras: “As trevas cobriam o abismo”. – Mas que são trevas, senão ausência da luz? De fato, se então existisse, onde estaria a luz senão sobre a terra, para iluminá-la? Mas como a luz ainda não existia, o que era a presença das trevas, senão a ausência da luz? As trevas reinavam sobre o abismo porque a luz não existia, do mesmo modo que onde não há ruído reina o silêncio. E que significa reinar o silêncio, senão falta de som?
Não ensinaste, Senhor, à alma que a ti se confessa? Não me ensinaste, Senhor, que antes de receber de ti forma e figura esta matéria informe, não existia nada, nem cor, nem figura, nem corpo, nem espírito? Não era um nada absoluto, mas massa informe, sem figura alguma.
CAPÍTULO IV
A matéria informe
Que nome darei a esta matéria, como sugerir sua idéia às inteligências mais curtas, senão usando um termo de uso corrente? O que se pode encontrar no mundo que seja mais parecido com essa ausência total de forma, que a terra e o abismo? Colocados no mais baixo grau da criação, eles não têm a beleza dos corpos que no alto brilham de luz fulgurante. Por que, então, não aceitar que essa matéria informe, que criaste sem beleza para com ela moldar um mundo cheio de beleza, fosse comodamente designada aos homens pelos termos de terra invisível e informe?
CAPÍTULO V
Sua natureza
Assim, quando o pensamento indaga o que nossos sentidos podem colher a respeito dessa matéria, responde a si mesmo: “Não é nem forma inteligível, como a vida, como a justiça, porque é a matéria corpórea, nem uma forma sensível, porque nada há que se possa ver ou perceber no que é invisível e sem forma”. – Quando o pensamento humano fala desse modo, procura conhecê-la ignorando-a, ou ignorá-la conhecendo-a?
CAPÍTULO VI
Em que consiste
Senhor, se pela boca e pela pena devo confessar-te o que me ensinaste sobre essa matéria, eu direi que outrora ouvi falar, sem nada compreender, a respeito desse nome por pessoas que também não entendiam. Tentei imaginá-la sob as formas mais diversas, e não o consegui. Meu espírito revolvia confusamente formas feias e horríveis, mas enfim sempre formas. Chamava de informe essa matéria, não porque a imaginasse sem forma, mas por tê-las tão estranhas e bizarras que, se a visse, afastaria meus sentidos e confundiria minha fraqueza de homem.
Por isso, o que eu concebia era informe, não por ausência de qualquer forma, mas por comparação com formas mais belas. A reta razão me persuadia; se eu quisesse conceber algo absolutamente informe, a suprimir nele todo resquício de forma, mas eu não conseguia; parecia-me bem mais fácil negar a existência do que estava privado de toda forma, do que conceber um ser a meio termo entre a forma e o nada, e que não fosse nem forma, nem nada, um ser informe, um quase nada.
Então, minha inteligência deixou de inquirir minha imaginação, cheia de imagens de formas corpóreas, que ela variava e mudada a seu talante. Fixei a atenção nos próprios corpos, analisei mais profundamente essa mutabilidade pela qual eles cessam de ser o que eram e começam a ser o que não eram. Suspeitei que essa transição de uma forma para outra se fazia por meio de algo informe, e não do nada absoluto.
Mas meu interesse era saber, e não apenas supor; e se minha voz e minha pena te confessassem em detalhes as soluções deste problema que me inspiraste, qual de meus leitores teria paciência para me entender? Contudo, meu coração não deixará de te honrar com cânticos de louvor por essas inspirações, por aquilo que não têm palavras capazes de exprimir.
É a própria mutabilidade das coisas que é susceptível de assumir todas as formas em que se transfiguram as coisas mutáveis. E o que é essa mutabilidade? É espírito? Será talvez corpo? Seria uma espécie de espírito ou de corpo? Se pudéssemos dizer: um nada que é algo, ou o que é e não é, eu a chamaria assim. No entanto, era necessário que ela existisse de alguma maneira, para tomar essas formas visíveis e complexas.
CAPÍTULO VII
A criação do nada
Mas de onde essa matéria tirava seu ser, senão de ti, por quem existe toda e qualquer coisa? Quanto mais difere de ti uma coisa, mais longe de ti está – e não se trata de distância espacial.
Portanto, és tu, Senhor que não mudas ao sabor das circunstâncias, mas que és sempre o mesmo, o mesmo e o mesmo, santo e santo e santo, Senhor, Deus Todo-Poderoso, és tu, Senhor, que no princípio, que vem de ti, em tua Sabedoria, nascida de tua substância, fizeste algo do nada. Criaste o céu e a terra, e isso não com tua substância, pois nesse caso, tua criação seria igual a teu Filho unigênito e, por isso, iguais a ti mesmo. E não seria justo que o que não é da tua substância, fosse igual a ti.
Mas fora de ti nada existia com que pudesses fazer o céu e a terra, ó Trindade una, Unidade trina. Por isso criaste do nada o céu e a terra; duas realidades, uma imensa e outra pequena. Porque és Todo-Poderoso e bom, e só podes criar coisas boas: o grande céu e a pequena terra.
Fora de ti nada havia, e desse nada fizeste o céu e a terra, tuas duas obras: uma próxima de ti, a outra próxima do nada. Uma que tem acima de si apenas a ti mesmo, e outra que nada tem inferior a ela.
CAPÍTULO VIII
A terra invisível
Mas o céu do céu pertence a ti, Senhor; a terra, que deste aos filhos dos homens para que a vissem e tocassem, não era tal como agora e vemos e tocamos. Era invisível e informe: um abismo sobre o qual não havia luz. As trevas se estendiam sobre o abismo – isto é: mais profundas que o abismo. Esse abismo das águas, agora visíveis, tem até em suas profundezas uma luminosidade, perceptível aos peixes e aos animais que se arrastam no fundo. Mas tudo isso era quase o nada, sendo ainda completamente informe; porém já era um ser apto a receber uma forma.
Senhor, criaste o mundo de uma matéria sem forma; do nada fizeste este quase nada de onde tiraste as grandes coisas que admiramos, nós, os filhos dos homens. Porque este céu corpóreo é de fato admirável, este firmamento que separa uma água de outra, que criaste no segundo dia, depois da luz, dizendo: “Faça-se – e assim se fez”. Chamaste a este firmamento de céu: o céu desta terra e deste mar que criaste no terceiro dia, dando forma visível à matéria informe, criado por ti antes de todos os dias.
Já havias criado outro céu antes de haver dia; mas era o céu do céu, porque no princípio criaste o céu e a terra. Quanto a esta mesma terra, nada mais era que matéria informe, sendo invisível, caótica e as trevas reinando sobre o abismo. É desta terra invisível, caótica, desta massa informe, deste quase nada, que formaste todas as coisas de que é formado e não formado este mundo mutável, domínio da transformação, que torna possíveis a percepção e a medida do tempo. Porque o tempo é feito da mudança das coisas, de variações e transformações das formas, cuja matéria é esta terra invisível, de que falei acima.
CAPÍTULO IX
A criação do tempo
Por isso, o Espírito que instruiu teu servo, quando relata que no princípio criaste o céu e a terra, cala-se sobre o tempo, guarda silêncio sobre os dias. De fato, o céu do céu, que fizeste no começo, é de alguma maneira uma criatura racional que, mesmo sem ser coeterna contigo, ó Trindade, participava todavia de tua eternidade. A doçura de te contemplar beatamente a mantém imóvel e unida a ti sem movimento, e desde sua criação escapa às vicissitudes fugazes do tempo. Porém, esta massa informe, esta terra invisível, este caos, tu não o enumeraste entre os dias; de fato, onde não há forma nem ordem, nada vem, nada passa e, portanto não pode haver nem dias, nem sucessão de espaços temporais.
CAPÍTULO X
Invocação à verdade
Ó Verdade, luz de meu coração, faze com que se calem as minhas trevas. Deixei-me cair nelas e fiquei às escuras; mas, mesmo do fundo desse abismo, eu te amei ardentemente. Andei, errante, mas lembrei de ti. Ouvi tua voz atrás de mim, que me exortava a que voltasse; mas dificilmente podia escutá-la, por causa do tumulto de minha alma. e agora, eis que, ardente e anelante, volto à tua fonte. Que ninguém mo impeça; beberei de sua água, e assim viverei. Que não seja eu minha própria vida! Vivi mal por minha culpa, e fui a causa de minha morte. Em ti eu revivo! Fala-me, ensina-me. Creio em teus livros, e tuas palavras encerram profundos mistérios.
CAPÍTULO XI
As criaturas e o criador
Já me disseste, Senhor, com voz forte ao ouvido de minha alma, que és eterno, e que só tu possuis a imortalidade, porque não mudas nem de forma, nem de movimento; tua vontade não varia conforme o tempo, pois a vontade mutável não é imortal. Esta verdade me é clara em tua presença. Peço-te que ela se torne para mim cada vez mais clara, e sob tuas asas eu me mantenha atento a esta evidência.
Também disseste, Senhor, com voz forte ao ouvido de minha alma, que todas as naturezas, todas as substâncias que não são o que és, mas que existem, tu as criaste; que só o nada não provém de ti, assim como o movimento de uma vontade que se afasta de ti, Ser supremo. Enfim, que nenhum pecado te causa dano, nem perturba a ordem de teu império, superior ou inferior. Essa verdade é clara para mim em tua presença. Peço-te que se torne para mim cada vez mais clara, e que sob tuas asas eu me mantenha atento a esta evidência.
Também disseste, Senhor, com voz forte ao ouvido de minha alma, que essa criatura, que tem em ti seu único deleite, não te é coeterna; que goza de ti em união casta e duradoura, sem nunca trair em parte alguma sua natureza mutável; que, se conserva sempre em tua presença e unida a ti com todo seu amor, não tem de esperar futuro, nem que recordar passado, imutável pois com o tempo e o vir a ser. Feliz criatura, se existe, por participar de tua felicidade, feliz de ser perenemente habitada e iluminada por ti! Nada encontro que melhor se possa chamar de céu de céu que pertence ao Senhor, que a esta habitação de tua divindade, que contempla tuas delícias sem que nada a afaste para outras partes. Puro espírito, intimamente ligado por um elo de paz com esses santos, espíritos, cidadãos de tua cidade, situada no céu e acima do nosso céu.
Diante disso, possa a alma, cuja peregrinação afastou de ti, compreender se já tem sede de ti, se seu pranto se tornou seu pão, quando todos os dias lhe dizem: Onde está teu Deus? – se ela deseja apenas habitar em tua morada todos os dias de sua vida. E que é sua vida, senão tu? Que são teus dias, senão tua eternidade, como teus anos que não passam, porque és sempre o mesmo? Por isso, digo, faça compreender à alma, se possível, como tua eternidade transcende todos os temos. Tua morada, que nunca se afastou de ti, embora não te tendo coeterna, graças à sua incessante e ininterrupta união contigo, não padece de vicissitudes do tempo. Essa verdade é clara para mim em tua presença. Peço-te que se torne para mim cada vez mais clara, e que sob tuas asas eu me mantenha atento a esta evidência.
Vejo, de fato, não sei que matéria informe nas transformações das coisas últimas e ínfimas. Mas quem dirá, a não ser o insensato, cujo espírito vagueia entre quimeras, à mercê de seus fantasmas, quem, salvo este, ousaria afirmar que, se toda forma fosse destruída, abolida, restando apenas a matéria informe, graças à qual as coisas se transformam e passam de uma forma para outra, ela poderia produzir as vicissitudes do tempo? Não, tal hipótese é absolutamente impossível, pois sem variedade de movimentos não há tempo; e não há variedade onde não há forma.
Prece
Inquieto está meu coração, Senhor, quando, na miséria de minha vida é atingido pelas palavras de tua Escritura Sagrada. Por isso, geralmente, a abundância de palavras é testemunho da pobreza da inteligência humana. A busca usa mais palavras que a descoberta; é maior o pedir que o obter; a mão que bate cansa-se mais do que a mão que recebe. Mas nós temos tua promessa: quem a destruirá? Se Deus está conosco, quem será contra nós? Pedi, e recebereis; procurai e encontrareis; batei, e abrir-se-vos-á. Porque todo o que pede recebe, todo o que procura encontra, e a todo o que bate se lhe abrirá.
São promessas tuas. E quem temerá ser enganado, quando a promessa vem da Verdade?
CAPÍTULO II
O céu do céu
Que a humildade de minha língua confesse à tua grandeza que criaste o céu e a terra; este céu que vejo, esta terra que piso, e de onde tiraste a terra que trago em mim. sim, criaste tudo isto.
Mas, Senhor, onde está o céu de que nos falou a voz do salmista: “O céu do céu pertence ao Senhor, mas ele deu a terra aos filhos dos homens?” – Onde está esse céu que não vemos, e diante do qual tudo o que vemos é apenas terra?
De fato, todo este mundo material, cuja base é a terra, embora não seja inteiramente belo em toda parte, recebeu até em seus últimos elementos, uma aparência atraente. Mas, comparado com esse céu do céu, o céu de nossa terra também não passa de terra. Por isso, não é absurdo chamar de terra esses dois grandes corpos visíveis, se os compararmos a esse céu misterioso que pertence ao Senhor, e não aos filhos dos homens.
CAPÍTULO III
As trevas sobre o abismo
Mas esta terra era invisível e informe, era um profundo abismo acima do qual não pairava nenhuma luz, pois não tinha nenhuma forma. Por isso inspiraste estas palavras: “As trevas cobriam o abismo”. – Mas que são trevas, senão ausência da luz? De fato, se então existisse, onde estaria a luz senão sobre a terra, para iluminá-la? Mas como a luz ainda não existia, o que era a presença das trevas, senão a ausência da luz? As trevas reinavam sobre o abismo porque a luz não existia, do mesmo modo que onde não há ruído reina o silêncio. E que significa reinar o silêncio, senão falta de som?
Não ensinaste, Senhor, à alma que a ti se confessa? Não me ensinaste, Senhor, que antes de receber de ti forma e figura esta matéria informe, não existia nada, nem cor, nem figura, nem corpo, nem espírito? Não era um nada absoluto, mas massa informe, sem figura alguma.
CAPÍTULO IV
A matéria informe
Que nome darei a esta matéria, como sugerir sua idéia às inteligências mais curtas, senão usando um termo de uso corrente? O que se pode encontrar no mundo que seja mais parecido com essa ausência total de forma, que a terra e o abismo? Colocados no mais baixo grau da criação, eles não têm a beleza dos corpos que no alto brilham de luz fulgurante. Por que, então, não aceitar que essa matéria informe, que criaste sem beleza para com ela moldar um mundo cheio de beleza, fosse comodamente designada aos homens pelos termos de terra invisível e informe?
CAPÍTULO V
Sua natureza
Assim, quando o pensamento indaga o que nossos sentidos podem colher a respeito dessa matéria, responde a si mesmo: “Não é nem forma inteligível, como a vida, como a justiça, porque é a matéria corpórea, nem uma forma sensível, porque nada há que se possa ver ou perceber no que é invisível e sem forma”. – Quando o pensamento humano fala desse modo, procura conhecê-la ignorando-a, ou ignorá-la conhecendo-a?
CAPÍTULO VI
Em que consiste
Senhor, se pela boca e pela pena devo confessar-te o que me ensinaste sobre essa matéria, eu direi que outrora ouvi falar, sem nada compreender, a respeito desse nome por pessoas que também não entendiam. Tentei imaginá-la sob as formas mais diversas, e não o consegui. Meu espírito revolvia confusamente formas feias e horríveis, mas enfim sempre formas. Chamava de informe essa matéria, não porque a imaginasse sem forma, mas por tê-las tão estranhas e bizarras que, se a visse, afastaria meus sentidos e confundiria minha fraqueza de homem.
Por isso, o que eu concebia era informe, não por ausência de qualquer forma, mas por comparação com formas mais belas. A reta razão me persuadia; se eu quisesse conceber algo absolutamente informe, a suprimir nele todo resquício de forma, mas eu não conseguia; parecia-me bem mais fácil negar a existência do que estava privado de toda forma, do que conceber um ser a meio termo entre a forma e o nada, e que não fosse nem forma, nem nada, um ser informe, um quase nada.
Então, minha inteligência deixou de inquirir minha imaginação, cheia de imagens de formas corpóreas, que ela variava e mudada a seu talante. Fixei a atenção nos próprios corpos, analisei mais profundamente essa mutabilidade pela qual eles cessam de ser o que eram e começam a ser o que não eram. Suspeitei que essa transição de uma forma para outra se fazia por meio de algo informe, e não do nada absoluto.
Mas meu interesse era saber, e não apenas supor; e se minha voz e minha pena te confessassem em detalhes as soluções deste problema que me inspiraste, qual de meus leitores teria paciência para me entender? Contudo, meu coração não deixará de te honrar com cânticos de louvor por essas inspirações, por aquilo que não têm palavras capazes de exprimir.
É a própria mutabilidade das coisas que é susceptível de assumir todas as formas em que se transfiguram as coisas mutáveis. E o que é essa mutabilidade? É espírito? Será talvez corpo? Seria uma espécie de espírito ou de corpo? Se pudéssemos dizer: um nada que é algo, ou o que é e não é, eu a chamaria assim. No entanto, era necessário que ela existisse de alguma maneira, para tomar essas formas visíveis e complexas.
CAPÍTULO VII
A criação do nada
Mas de onde essa matéria tirava seu ser, senão de ti, por quem existe toda e qualquer coisa? Quanto mais difere de ti uma coisa, mais longe de ti está – e não se trata de distância espacial.
Portanto, és tu, Senhor que não mudas ao sabor das circunstâncias, mas que és sempre o mesmo, o mesmo e o mesmo, santo e santo e santo, Senhor, Deus Todo-Poderoso, és tu, Senhor, que no princípio, que vem de ti, em tua Sabedoria, nascida de tua substância, fizeste algo do nada. Criaste o céu e a terra, e isso não com tua substância, pois nesse caso, tua criação seria igual a teu Filho unigênito e, por isso, iguais a ti mesmo. E não seria justo que o que não é da tua substância, fosse igual a ti.
Mas fora de ti nada existia com que pudesses fazer o céu e a terra, ó Trindade una, Unidade trina. Por isso criaste do nada o céu e a terra; duas realidades, uma imensa e outra pequena. Porque és Todo-Poderoso e bom, e só podes criar coisas boas: o grande céu e a pequena terra.
Fora de ti nada havia, e desse nada fizeste o céu e a terra, tuas duas obras: uma próxima de ti, a outra próxima do nada. Uma que tem acima de si apenas a ti mesmo, e outra que nada tem inferior a ela.
CAPÍTULO VIII
A terra invisível
Mas o céu do céu pertence a ti, Senhor; a terra, que deste aos filhos dos homens para que a vissem e tocassem, não era tal como agora e vemos e tocamos. Era invisível e informe: um abismo sobre o qual não havia luz. As trevas se estendiam sobre o abismo – isto é: mais profundas que o abismo. Esse abismo das águas, agora visíveis, tem até em suas profundezas uma luminosidade, perceptível aos peixes e aos animais que se arrastam no fundo. Mas tudo isso era quase o nada, sendo ainda completamente informe; porém já era um ser apto a receber uma forma.
Senhor, criaste o mundo de uma matéria sem forma; do nada fizeste este quase nada de onde tiraste as grandes coisas que admiramos, nós, os filhos dos homens. Porque este céu corpóreo é de fato admirável, este firmamento que separa uma água de outra, que criaste no segundo dia, depois da luz, dizendo: “Faça-se – e assim se fez”. Chamaste a este firmamento de céu: o céu desta terra e deste mar que criaste no terceiro dia, dando forma visível à matéria informe, criado por ti antes de todos os dias.
Já havias criado outro céu antes de haver dia; mas era o céu do céu, porque no princípio criaste o céu e a terra. Quanto a esta mesma terra, nada mais era que matéria informe, sendo invisível, caótica e as trevas reinando sobre o abismo. É desta terra invisível, caótica, desta massa informe, deste quase nada, que formaste todas as coisas de que é formado e não formado este mundo mutável, domínio da transformação, que torna possíveis a percepção e a medida do tempo. Porque o tempo é feito da mudança das coisas, de variações e transformações das formas, cuja matéria é esta terra invisível, de que falei acima.
CAPÍTULO IX
A criação do tempo
Por isso, o Espírito que instruiu teu servo, quando relata que no princípio criaste o céu e a terra, cala-se sobre o tempo, guarda silêncio sobre os dias. De fato, o céu do céu, que fizeste no começo, é de alguma maneira uma criatura racional que, mesmo sem ser coeterna contigo, ó Trindade, participava todavia de tua eternidade. A doçura de te contemplar beatamente a mantém imóvel e unida a ti sem movimento, e desde sua criação escapa às vicissitudes fugazes do tempo. Porém, esta massa informe, esta terra invisível, este caos, tu não o enumeraste entre os dias; de fato, onde não há forma nem ordem, nada vem, nada passa e, portanto não pode haver nem dias, nem sucessão de espaços temporais.
CAPÍTULO X
Invocação à verdade
Ó Verdade, luz de meu coração, faze com que se calem as minhas trevas. Deixei-me cair nelas e fiquei às escuras; mas, mesmo do fundo desse abismo, eu te amei ardentemente. Andei, errante, mas lembrei de ti. Ouvi tua voz atrás de mim, que me exortava a que voltasse; mas dificilmente podia escutá-la, por causa do tumulto de minha alma. e agora, eis que, ardente e anelante, volto à tua fonte. Que ninguém mo impeça; beberei de sua água, e assim viverei. Que não seja eu minha própria vida! Vivi mal por minha culpa, e fui a causa de minha morte. Em ti eu revivo! Fala-me, ensina-me. Creio em teus livros, e tuas palavras encerram profundos mistérios.
CAPÍTULO XI
As criaturas e o criador
Já me disseste, Senhor, com voz forte ao ouvido de minha alma, que és eterno, e que só tu possuis a imortalidade, porque não mudas nem de forma, nem de movimento; tua vontade não varia conforme o tempo, pois a vontade mutável não é imortal. Esta verdade me é clara em tua presença. Peço-te que ela se torne para mim cada vez mais clara, e sob tuas asas eu me mantenha atento a esta evidência.
Também disseste, Senhor, com voz forte ao ouvido de minha alma, que todas as naturezas, todas as substâncias que não são o que és, mas que existem, tu as criaste; que só o nada não provém de ti, assim como o movimento de uma vontade que se afasta de ti, Ser supremo. Enfim, que nenhum pecado te causa dano, nem perturba a ordem de teu império, superior ou inferior. Essa verdade é clara para mim em tua presença. Peço-te que se torne para mim cada vez mais clara, e que sob tuas asas eu me mantenha atento a esta evidência.
Também disseste, Senhor, com voz forte ao ouvido de minha alma, que essa criatura, que tem em ti seu único deleite, não te é coeterna; que goza de ti em união casta e duradoura, sem nunca trair em parte alguma sua natureza mutável; que, se conserva sempre em tua presença e unida a ti com todo seu amor, não tem de esperar futuro, nem que recordar passado, imutável pois com o tempo e o vir a ser. Feliz criatura, se existe, por participar de tua felicidade, feliz de ser perenemente habitada e iluminada por ti! Nada encontro que melhor se possa chamar de céu de céu que pertence ao Senhor, que a esta habitação de tua divindade, que contempla tuas delícias sem que nada a afaste para outras partes. Puro espírito, intimamente ligado por um elo de paz com esses santos, espíritos, cidadãos de tua cidade, situada no céu e acima do nosso céu.
Diante disso, possa a alma, cuja peregrinação afastou de ti, compreender se já tem sede de ti, se seu pranto se tornou seu pão, quando todos os dias lhe dizem: Onde está teu Deus? – se ela deseja apenas habitar em tua morada todos os dias de sua vida. E que é sua vida, senão tu? Que são teus dias, senão tua eternidade, como teus anos que não passam, porque és sempre o mesmo? Por isso, digo, faça compreender à alma, se possível, como tua eternidade transcende todos os temos. Tua morada, que nunca se afastou de ti, embora não te tendo coeterna, graças à sua incessante e ininterrupta união contigo, não padece de vicissitudes do tempo. Essa verdade é clara para mim em tua presença. Peço-te que se torne para mim cada vez mais clara, e que sob tuas asas eu me mantenha atento a esta evidência.
Vejo, de fato, não sei que matéria informe nas transformações das coisas últimas e ínfimas. Mas quem dirá, a não ser o insensato, cujo espírito vagueia entre quimeras, à mercê de seus fantasmas, quem, salvo este, ousaria afirmar que, se toda forma fosse destruída, abolida, restando apenas a matéria informe, graças à qual as coisas se transformam e passam de uma forma para outra, ela poderia produzir as vicissitudes do tempo? Não, tal hipótese é absolutamente impossível, pois sem variedade de movimentos não há tempo; e não há variedade onde não há forma.
(Continua...)
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