terça-feira, 17 de maio de 2011

CONFISSÕES DE SANTO AGOSTINHO - Parte 35

CAPÍTULO XXIV
Qual a verdade?


  Quem de nós, entre tantos significados possíveis que ocorrem aos estudiosos quanto as varias interpretações de tuas palavras, poderá atinar com tais intenções e declarar com segurança: “Eis o pensamento de Moisés, este é o sentido que quis dar á sua narração”. – Quem poderá declará-lo, com a mesma segurança que ele, que essa narração é verdadeira, qualquer que tenha sido o pensamento de Moisés?

  Eis que eu, meu Deus, teu servo, te consagrei nesta obra o sacrifício de minhas confissões; peço à tua misericórdia que me permita a realização desse desejo, e declaro com toda segurança que criaste todas as coisas, as invisíveis e as visíveis, pelo teu verbo imutável.
  Mas poderei dizer com a mesma certeza que Moisés teve essa intenção, e não outra, quando escreveu: “No princípio, criou Deus o céu e a terra”? – Embora esteja persuadido de que isto está claro na tua verdade, não vejo com igual certeza o que Moisés pretendia ao escrever tais palavras. Por essa expressão: “no princípio” pode ter significado: “no começo da criação”. Por céu e terra, pode ter querido dar-nos a entender, a natureza espiritual e corporal, não já formada e perfeita, mas uma e outra, só esboçada e sem forma. Vejo que ambos os sentidos são igualmente plausíveis. Mas não posso atinar em qual dos dois pensava Moisés quando escrevia essas palavras. Fosse porém qual fosse sua intenção ao exprimir essas palavras, eu não poderia duvidar de que tão grande homem tenha entrevisto a verdade e a tenha formulado adequadamente. 

CAPÍTULO XXV
Os diversos partidos


  Que ninguém me moleste portanto, dizendo: “O pensamento de Moisés não é o que tu dizes, mas o que eu digo”. – Se apenas me dissessem: “Como sabes que Moisés de fato entendia essas palavras no sentido que lhe atribuis?” – Eu não me agastaria, e responderia talvez o que respondi acima, ou até mais explicitamente, se meu contraditor fosse insistente. 
  Quando porém, me dizem: “O pensamento de Moisés não é o que dizes, é o que eu afirmo” – sem contudo provar a veracidade de uma ou outra interpretação, então, ó vida dos pobres, ó meu Deus, em cujo seio não há contradição, inunda de paz o meu coração, para que eu tenha paciência para suportar essas pessoas. Pois não emitem tais opiniões inspirados por Deus, ou porque tenham lido o pensamento de teu servo, mas porque são orgulhosos. Ignoram o pensamento de Moisés, mas só apreciam o deles, e não por que seja verdadeiro, mas por ser o deles. Assim não fosse, apreciariam igualmente a opinião alheia, quando verdadeira, assim como eu aprecio o que eles dizem de verdadeiro, não porque vem deles, mas porque é verdade, e que, por isso mesmo, é tanto deles como minha, pois pertence em comum a todos os amantes da verdade.
  Quanto à pretensão de que o pensamento de Moisés não está no que digo, mas no que eles dizem, isso eu não aceito. Ainda que assim fosse, sua temeridade não é da ciência, mas a da audácia; seria produzida não por uma intuição correta, mas pelo orgulho.
  Senhor, teu julgamento é terrível. Porque  tua verdade nem é um bem meu, nem o bem deste ou daquele: a verdade é o bem de todos nós; e tu nos conclamas abertamente a que participemos dela, com a advertência severa de não a possuirmos como bem privativo, para não sermos privados dela. De fato, quem reivindica apenas para si o que ofereces para gozo de todos, e quer para si o que é de todos, é rejeitado desse bem comum para o que é seu, isto é, da verdade para a mentira: o que fala mentira fala do que é seu.
  Ouvem, pois, juiz excelente, ó Deus, que és a própria Verdade: ouve o que respondo a esse contraditor. 
  É diante de ti que falo, e na presença de meus irmãos que usam legitimamente da lei, cujo fim á caridade. Escuta e vê o que lhes digo, se é de teu agrado. Eis as palavras fraternas e de paz que lhe dirijo: “Quando ambos vemos que tuas palavras são verdadeiras, ou as minhas palavras são verdadeiras, pergunto: onde o vemos? Certamente não é em ti que eu a vejo, nem tampouco é em mim que tu a vês. Ambos a vemos na verdade imutável, que está acima de nossas inteligências”.
  Uma vez que não discordamos sobre essa luz do Senhor, nosso Deus, por que discutir sobre o pensamento de nosso próximo? Nós não o podemos ver como vemos a verdade imutável. Se o próprio Moisés nos aparecesse e nos explicasse seu pensamento – nem assim veríamos esse pensamento, mas apenas acreditaríamos nele. Cuidemos pois, de não nos levantarmos orgulhosamente um contra o outro a respeito das Escrituras. Amemos ao Senhor, nosso Deus, de todo o nosso coração, de toda nossa alma, de todo nosso espírito, e ao próximo como a nós mesmos. É segundo esses dois preceitos da caridade que Moisés pensou aquilo que escreveu em seus livros. Não acreditarmos nisso seria considerar o Senhor mentiroso, atribuindo a seu servo sentimentos distintos daqueles que ele próprio lhe ensinou. Diante de tantos pensamentos igualmente verdadeiros que podem ser deduzidos dessas palavras, vê que estultice é afirmar temerariamente que Moisés teve este pensamento e não aquele, ofendendo com nossas disputas perniciosas a caridade, por amor da qual ele escreveu as palavras que procuramos interpretar!

 CAPÍTULO XXVI
Agostinho no lugar de Moisés


  Todavia, meu Deus, que me elevas em minha pequenez, que descansas minha fadiga, que ouves minhas confissões e perdoas meus pecados, tu me ordenas que eu ame a meu próximo como a mim mesmo; não posso crer que Moisés, teu servo tão fiel, tenha sido aquinhoado com menos dons do que eu teria desejado e apetecido se tivesse nascido em seu tempo, e me tivesses confiado a tarefa de te servir com meu coração e minha língua, e disseminar essas Escrituras. Estas, tanto tempo depois, deviam ser úteis a todos os homens e, pelo mundo afora, triunfar com o prestígio de sua autoridade sobre as afirmações das doutrinas falsas e orgulhosas.
  Quereria, se estivesse no lugar de Moisés – pois todos procedemos da mesma massa, e que é o homem se não te lembras dele? – e me tivesses confiado a missão de escrever o Gênesis, quereria receber de ti tal eloqüência, tal qualidade de estilo, que mesmo os espíritos incapazes de compreender como foi que Deus criou, não pudessem rejeitar minhas palavras como superiores às suas forças; que os que já o pudessem, descobrissem, nas poucas palavras de teu servo, todas as verdades que sua reflexão já lhes tivesse proporcionado; e que se alguém, à luz de tua verdade, nelas percebesse outro significado, também ele o pudesse encontrar nessas mesmas palavras. 

CAPÍTULO XXVII
Os diversos sentidos da Escritura


  Assim como uma fonte, em seu pequeno leito, torna-se depois mais abundante e, pelos diversos regatos que alimenta, banha espaços muito mais amplos que qualquer um deles, que deslizam através de muitas regiões, assim também a narração do ministro de tua palavra, que deveria alimentar a tantos interpretes, faz brotar de seu estilo sóbrio e conciso torrentes de límpida verdade, de onde cada um tira para si a verdade que pode, para depois desenvolvê-la em longas sinuosidades de palavras. 
  Alguns, lendo ou escutando aquelas palavras, imaginam a Deus como homem ou como massa material dotada de imenso poder que, por decisão nova e repentina, criara fora de si mesma e como que à distância, o céu e a terra, esses dois grandes corpos, um superior, outro inferior, onde estão contidas todas as coisas. E ao ouvirem dizer:”Deus disse: faça-se isto! E isto foi feito! – imaginam que se trata de palavras comuns, que começam e terminam, que soam no tempo e passam. Julgam que, logo após pronunciadas, começa existir o que ordenaram que existisse. Todas as suas demais concepções ressentem-se do mesmo hábito de pensar de modo carnal. 
  Nisto são como crianças, pois enquanto essa linguagem humilde sustentar sua fraqueza como o seio de uma mãe, o que se fortifica salutarmente é a fé, que lhes faz ter como certo que Deus criou todas as realidades, cuja admirável variedade impressiona a seus sentidos. 
  Mas, se alguém, desprezando a aparente simplicidade de tuas palavras, em sua orgulhosa fraqueza, se lançar para fora do ninho que o nutriu, então cairá miseravelmente, Senhor Deus, tem piedade dele! Que os transeuntes não pisem este passarinho implume; manda teu anjo para que o reponha no ninho, para que viva até que aprenda a voar!  

(Continua...)

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