sábado, 21 de maio de 2011

CONFISSÕES DE SANTO AGOSTINHO - Parte 37

CAPÍTULO XIX
Ainda a terra seca


  Mas antes, lavai-vos, purificai-vos, arrancai a iniqüidade de vossos corações e de meus olhos, para que apareça a terra seca. Aprendei a fazer o bem, sede justos para com o órfão e defendei a viúva, para que a terra produza a erva tenra e árvores cheias de frutos. Vinde e dialoguemos, diz o Senhor, e assim no firmamento do céu se ascenderão luminares que brilharão por sobre a terra.

  Aquele rico perguntava ao bom Mestre o que deveria fazer para ganhar a vida eterna. E o bom Mestre, que é bom porque é Deus, e não um homem como o rico o considerava, lhe declarou: “O que deseja conseguir a vida deve observar os mandamentos, afastar de si a amargura da malícia e da iniqüidade, não matar, não cometer adultério, não roubar, não prestar falso testemunho, a fim de que se mostre a terra seca, geradora do respeito do pai e da mãe e do amor do próximo. 
  – Tudo isto já fiz – diz o rico. – De onde vêm pois tantos espinhos, se a terra é fértil? – Vai, arranca os espessos emaranhados da avareza,  vende teus bens, enriquece-te dando tudo aos pobres, e possuirás um tesouro no céu; segue o Senhor se queres ser perfeito, junta-te aos que ele instrui nas palavras de sabedoria, ele que sabe o que se deve dar ao dia e à noite. Também tu o saberás, e eles se tornarão para ti luminares no firmamento do céu. Mas isso não se realizará se ali não estiver teu coração, e teu coração, não estará onde não estiver teu tesouro – Assim falou teu bom Mestre. Mas a terra estéril entristeceu, e os espinhos sufocaram a Palavra divina. 
  Mas vós, geração escolhida, fracos aos olhos do mundo, que tudo deixaste para seguir o Senhor, caminhais após ele, confundi os fortes; segui-lo com vossos pés resplandecentes, e brilhai no firmamento para que os céus cantem suas glórias, distinguindo a luz dos perfeitos, que ainda não são semelhantes aos anjos, e as trevas dos pequenos, que ainda não perderam a esperança. Brilhai sobre toda a terra! Que o dia resplandecente de sol transmita ao dia seguinte a palavra de Sabedoria, e que a noite, iluminada pela lua, transmita à noite a palavra de Ciência. A lua e as estrelas brilham na noite, mas a noite não as obscurece, porque são elas que iluminam a noite, de acordo com a sua capacidade.
  Como se Deus tivesse dito: Façam-se luminares no firmamento, e logo se fez ouvir um ruído vindo do céu, semelhante ao de um vento violento, e foram vistas línguas de fogo, que se dividiram e se colocaram sobre cada um deles. E apareceram luminares no céu, que possuíam a palavra de vida. Correi por toda parte, chamas sagradas, fogos admiráveis. Vós sois a luz do mundo, e não estais debaixo do alqueire. Aquele aquem vos unistes foi exaltado e ele vos exaltou. Correi e dai-vos a conhecer a todas as nações. 

CAPÍTULO XX
Os répteis e as aves

  Que o mar também conceba e dê à luz tuas obras; que as águas produzam répteis dotados de almas vivas. De fato, separando o precioso do vil, vos tornastes a boca de Deus, pela qual ele diz: “Produzam as águas...” não a alma viva, filha da terra, mas répteis dotados de almas vivas, e pássaros que voam sobre a terra. Assim como esses répteis, teus sacramentos, ó meu Deus, deslizaram, graças às obras de teus santos, por entre as ondas das tentações do século para regenerarem os povos com teu nome, em teu batismo.
  Então se operaram grandes maravilhas, semelhantes a enormes cetáceos, e as palavras de teus mensageiros percorreram a terra, sob o firmamento de teu Livro, que com tua autoridade deveria proteger seu vôo para onde quer que fossem. Não há língua nem palavras em que não se ouçam suas vozes; seu som espalhou-se por toda a terra, e suas palavras até os confins do mundo, porque tu, Senhor, abençoando-os, os multiplicaste.
  Estaria eu mentindo? Ou confundindo a questão, não distinguindo as claras noções das coisas do firmamento das obras corpóreas que se realizam no mar agitado e sob o firmamento? Por certo que não. Há coisas cuja idéia é completa, acabada, que não se multiplicam no curso das gerações, tais como as luzes da sabedoria e da ciência. Mas esses seres são o objeto de operações materiais múltiplas e variadas e, crescendo umas de outras, se multiplicam sob tua benção, meu Deus. É assim que refreias a impertinência de nossos sentidos, dando a uma verdade única o meio de se exprimir de varias maneiras, por movimentos do corpo. Eis que produziram tuas águas, pela onipotência de teu Verbo. Tudo isto se originou das necessidades de povos afastados de tua verdade eterna, por meio do teu Evangelho. De fato foram essas águas que fizeram brotar essas coisas, e sua amargura estagnante foi causa de que teu Verbo as criasse. 
  Todas tuas obras são belas, mas és indizivelmente mais belo tu, que criaste tudo o que existe. Se Adão não se tivesse separado de ti, em sua queda, de seu seio não teria saído o oceano amargo do gênero humano, com sua profunda curiosidade, seu orgulho cheio de tempestades, suas ondas instáveis. E os dispensadores de tuas palavras não teriam a necessidade de representar, no meio de tantas águas, por meio de sinais físicos e sensíveis, teus atos e palavras místicas. Foi nesse sentido que entendi esses répteis e essas aves. Mas até os
homens iniciados nesses sinais e deles imbuídos, não avançariam no conhecimento desses mistérios, aos quais estão sujeitos, se sua alma não se elevasse á vida do espírito, e, após a palavra inicial, não aspirasse à perfeição. 

CAPÍTULO XXI
A alma viva

  E assim não foi a profundeza do mar, mas a terra livre do amargor das águas que, impelida pelo teu Verbo gerou não mais os répteis dotados de almas vivas e os pássaros, mas a alma viva. E esta não mais tem necessidade de batismo (necessário para os gentios), como tinha necessidade enquanto as cobriam. Pois não se entra de outro modo no reino dos céus, desde que assim o determinaste. Para ter fé, ela já não exige grandes maravilhas. Ela crê sem ter visto sinais e prodígios, porque é terra fiel, já distinta das águas do mar que a incredulidade torna amargas: e as línguas são um sinal,não para os fiéis, mas para os infiéis. 
  A terra que estendeste acima das águas não tem necessidade dessa espécie de aves que as águas produziram por ordem de teu Verbo. Envia-lhe, pois, teu Verbo, por meio de teus mensageiros. Nós falamos de suas obras, mas quem age por seu intermédio, para que produzam uma alma viva, és tu. A terra a germina porque é a causa dos fenômenos que ocorrem na superfície, assim como o mar foi causa da produção dos répteis dotados de almas vivas, e das aves sob o firmamento do céu. A terra já não necessita destas criaturas, embora ela se alimente de peixes pescados nas profundezas do mar, nessa mesa que preparaste napresença dos crentes; porque eles foram pescados nas profundezas do mar para alimentar a terra árida. 
  Também as aves, ainda que nascidas no mar, multiplicam-se sobre a terra. As primeiras gerações evangélicas foram motivadas pela incredulidade dos homens, mas também fiéis nela encontram diariamente copiosas exortações e bênçãos. Todavia, a alma viva, extrai da terra sua origem, porque somente aos fiéis é meritório abster-se de amar este mundo, para que sua alma viva por ti, essa alma que estava morta quando vivia em delícias mortíferas. Ó Senhor, só tu fazes as delicias de um coração puro.
  Que teus ministros trabalhem na terra, não como nas águas da incredulidade, quando pregavam e falavam utilizando-se de milagres, de sinais misteriosos, de termos místicos, para capturar atenção da ignorância, mãe da admiração, pelo medo desses sinais secretos. Por esta porta, de fato, os filhos de Adão têm acesso à fé, esquecidos de ti enquanto se escondem de tua fade e se tornam abismos. Que teus ministros trabalhem como em terra seca, separada das fauces do abismo; e que sejam modelo para os fiéis, vivendo sob teus olhares e incitando-os à imitação. E assim ouve não só para ouvir, mas também para praticar. “Procurai a Deus, e vossa alma viverá, e a terra dará nascimento a uma alma viva. Não vos conformeis com este mundo em que vivemos, abstendo-vos dele. A alma vive evitando as coisas cujo desejo causa-lhe a morte. Abstende-vos das violências selvagens da soberba, das ociosas voluptuosidades da luxúria, da falsidade que engana em nome da ciência, para que os animais ferozes sejam domesticados, os brutos domados e para que as serpentes sejam inofensivas: todos representam alegoricamente os movimentos da alma humana. O fastio do orgulho, as delícias da luxúria, o veneno da curiosidade, são movimentos da alma morta, mas não morta a ponto de carecer de todo movimento; é afastando-se da fonte da vida que ela morre, o mundo a arrebata ao passar, e a este se amolda. 
  Mas tua palavra, meu Deus, é a fonte da vida eterna, e não passa. Ela mesma nos proíbe que nos afastemos de ti por essas palavras: “Não vos conformeis com o mundo em que vivemos, para que a terra, fertilizada pela fonte da vida, produza uma alma viva, uma alma que busque em tua palavra, transmitida por teus evangelistas, se fortificar, imitando os imitadores de teu Cristo”. – Eis o sentido da expressão “segundo sua espécie”, porque o homem imita a quem ama. “Sede como eu” – diz o Apostolo, - porque sou como vós. – Assim haverá na alma viva apenas feras sem maldade, agindo com doçura. Pois nos deste este mandamento: “Fazei vossas obras com mansidão, e sereis amados por todos” – Também os animais domésticos serão bons: se comerem, não sofrerão fastio e, se não comerem, não terão fome. As serpentes, tornando-se boas, serão incapazes de causar danos, mas continuarão astutas e cautelosas; não investigarão a natureza temporal, senão na medida necessária para compreender e contemplar a eternidade através das coisas criadas. Esses animais, as paixões, obedecem à razão, quando refreados em seus caminhos mortais, vivem e se tornam bons. 

CAPÍTULO XXII
Sentido místico da criação do homem 

  Assim, Senhor, nosso Deus e nosso Criador, quando nossos afetos mundanos, que nos causam a morte porque nos faziam viver mal, se afastarem do amor do mundo, quando nossa alma, vivendo bem, se tornar alma viva, e quando se cumprir a palavra que proferiste pela boca de teu Apostolo: “Não vos conformeis com o mundo em que vivemos” – então seguir-se-á aquilo que acrescentaste imediatamente ao dizer: “Mas reformai-vos na novidade de vossa mente”. – E já não será “segundo vossa espécie” – como se fosse imitar nossos predecessores ou viver seguindo os exemplos de alguém melhor que nós. Não disseste: “Que o homem seja feito de acordo  com sua espécie” – mas “façamos o homem à nossa imagem e semelhança” – para que pudéssemos reconhecer tua vontade. Para tanto, o divulgador de teu pensamento, que gerou filhos pelo Evangelho, não querendo que continuassem como crianças os que alimentara com leite e agasalhara em teu seio como uma ama, dizia: “Reformai-vos renovando vosso coração, para discernir a vontade de Deus, que é bom, agradável e perfeito”. – Também não dizes: “Faça-se o homem” – mas “à nossa imagem e semelhança”. Aquele que é renovado no espírito, que compreende e conhece tua verdade, não mais carece que um outro lhe ensine a imitar sua espécie. Graças às tuas lições, ele reconhece por si qual é tua vontade, o que é bom, agradável e perfeito. Tu lhe ensinas, pois agora é capaz deste ensinamento, a ver a Trindade da Unidade e a Unidade da Trindade. Eis por que, depois de falar no plural: “Façamos o homem” se diz no singular: “E Deus criou o homem”. Depois deste  plural: “À nossa imagem” – este singular: “À imagem de Deus”. Assim o homem “se renova pelo conhecimento de Deus, à imagem de seu criador” – e “tornando-se espiritual, julga todas as coisas”, que certamente hão de ser julgadas, “mas ele não é julgado por ninguém”. 
 
CAPÍTULO XXIII
O julgamento do homem espiritual

  Ele julga tudo, significa que tem autoridade sobre os peixes do mar, sobre os pássaros do céu, sobre os animais domésticos e selvagens, sobre toda a terra e sobre todos os répteis que nela se arrastam. Exerce esse poder pela inteligência, pela qual percebe as coisas que são do Espírito de Deus. Mas, elevado a tão grande honra, o homem não entendeu sua dignidade, igualou-se aos jumentos insensatos, tornando-se semelhante a eles. 
  Por isso, na tua Igreja, Senhor, pela graça que lhe concedeste – pois somos obra tua, e criados para obras boas, tanto os que governam como os que obedecem segundo o Espírito tem o dom de julgar. Porque assim fizeste a criatura humana homem e mulher, em tua graça espiritual, onde não há distinção conforme o sexo, nem judeu nem grego, nem escravo nem homem livre. Os espirituais, portanto, tanto os que presidem como os que obedecem, julgam espiritualmente. Eles não julgam conhecimentos espirituais que brilham no firmamento, pois não lhes cabe fazer juízos sobre tão sublime autoridade. Nem julgam tua Escritura, mesmo em suas passagens obscuras: nós lhe submetemos nossa inteligência, e temos certeza de que até aquilo que está oculto à nossa compreensão é justo e verdadeiro. O homem, pois, embora já espiritual e renovado pelo
conhecimento, conforme a imagem de seu criador, deve ser cumpridor da lei, e não seu juiz. Nem pode ajuizar sobre o que distingue espirituais e carnais. Somente teus olhos, meu Senhor, os distinguem, mesmo que nenhuma obra sua os tenha revelado a nós, para que os reconheçamos por seus frutos. Mas tu, Senhor, já os conheces e os classificaste, e os chamaste no segredo de teu pensamento, antes de ter criado o firmamento. 
  Tampouco julga, o homem espiritual, os povos inquietos deste mundo. De fato, por que julgaria ele os que estão fora, ignorando quem alcançará a doçura da tua graça, e quem permanecerá na eterna amargura da impiedade?
  Por isso, o homem que criaste à tua imagem, não recebeu poder sobre os astros do céu, nem sobre o mesmo céu misterioso, nem sobre o dia e a noite que chamaste á existência antes da criação do céu, nem sobre a massa das águas, que é o mar. Mas recebeu poder sobre os peixes do mar, sobre as aves do céu, sobre todos os animais, sobre toda a terra, e sobre tudo o que se arrasta pela superfície do solo.
  Ele julga e aprova o que acha bom, e reprova o que acha mau, quer na celebração dos sacramentos, com que são iniciados os que na tua misericórdia tira das águas profundas, quer no banquete em que se serve o peixe tirado das profundezas para alimento da terra fiel; quer nas palavras e expressões sujeitas à autoridade de teu Livro que, semelhantes aos pássaros, voam sob o firmamento: interpretações, exposições, discussões, bênçãos e invocações que brotam sonoras da boca, para que o povo responda: Amém! É necessário que essas palavras sejam enunciadas fisicamente, por causa do abismo do mundo e da cegueira da carne que, impossibilitada de ver o pensamento, tem necessidade de sons que firam os ouvidos. Assim, sem dúvida é sobre a terra que as aves se multiplicam, embora tenham suas origens na água.
  O homem espiritual julga também aprovando o que acha correto e reprovando o que é vicioso nas obras e nos costumes dos fiéis. Julga das suas esmolas, comparáveis aos frutos da terra; ele julga a alma viva pelas paixões domadas pela castidade, os jejuns, e pelos pensamentos piedosos, na medida em que essas coisas se manifestam aos sentidos do corpo. Em resumo, é juiz de tudo o que pode se corrigir. 

 CAPÍTULO XXIV
Crescei e multiplicai-vos

  Mas que é isto? Que mistério é este? Abençoas os homens, Senhor, para que eles cresçam, se multipliquem, e encham a terra. Não queres nisto dar-nos a entender alguma coisa? Por que não abençoaste também a luz, que chamaste dia, nem a terra, nem o mar? Eu diria, meu Deus, que nos criaste à tua imagem, diria que quiseste conceder especialmente ao homem esta benção, se não houvesses abençoado igualmente os peixes e os cetáceos, para que cresçam, se multipliquem, encham as águas do mar, e os pássaros para que se multipliquem sobre a terra.
  Afirmaria ainda que essa benção foi reservada às espécies vivas que se reproduzem por meio de geração, caso a encontrasse também nas árvores, nas plantas, nos animais da terra. Mas não foi dito nem às plantas, nem às árvore , nem aos répteis: “Crescei e multiplicai-vos” – embora todas essas criaturas se multipliquem pela procriação, como os peixes, os pássaros e os homens, conservando assim sua espécie. 
  Quer dizer, então, ó minha Luz, ó Verdade? Que tais palavras carecem de senso e foram ditas em vão? De nenhum modo, ó Pai de misericórdia. Longe de mim, longe do servidor de teu Verbo, uma tal afirmação! Apenas não compreendo o sentido dessas palavras, e espero que os melhores que eu, ou seja, os mais inteligentes, a entendam melhor, segundo a sabedoria que deste, meu Deus, a cada um. Que te agrade ao menos a confissão, que faço diante de ti, de minha certeza de que não falaste em vão aquelas palavras.
  Não calarei as reflexões que me sugere a leitura dessas palavras. O que penso é verdadeiro, e nada vejo que impeça de explicar assim os textos figurados de teus livros. Sei que sinais corporais podem exprimir de vários modos  uma idéia que o espírito concebe em um só sentido; uma idéia expressa de um só modo. Como exemplo, cito a simples idéia do amor de Deus e do próximo. Quantos símbolos, quantas línguas, e em cada uma inúmeras locuções lhe dão uma expressão concreta! É assim que crescem e se multiplicam os peixes das águas. 
  E note ainda nisto, meu leitor. Há uma frase que a Escritura declara de uma só forma, e que a voz fala apenas dessa maneira: “No princípio criou Deus o céu e a terra” – E não pode a frase ser interpretada diversamente – descartando o erro ou o sofisma – conforme os diversos pontos de vista legítimos? É assim que crescem e se multiplicam as gerações dos homens!
  Se consideramos a natureza das coisas, não alegoricamente, mas em sentido próprio, a sentença: “Crescei e multiplicai-vos” – se aplica a todas as criaturas que nascem de uma semente. Se, ao contrário, a interpretamos em sentido figurado, como penso que foi a intenção da Escritura, que não limita inutilmente essa benção aos peixes e aos homens, encontramos então multidões de criaturas espirituais e temporais, como no céu e na terra; de almas justas e injustas, como na luz e nas trevas; de escritores sagrados que nos anunciaram a Lei, como no firmamento estabelecido entre as águas; na sociedade amargurada dos povos, como no mar; no zelo das almas piedosas, como em terra enxuta; nas obras de misericórdia praticadas nesta vida, como nas plantas que nascem de semente e nas árvore  frutíferas; nos dons espirituais concedidos para o bem de todos, como nos luminares do céu; nas paixões dominadas pela temperança, como na alma viva. Em todas essas coisas encontramos multidões, fecundidade, crescimento. Mas que esse crescimento e essa proliferação exprimam uma mesma idéia de vários modos e que uma só expressão possa ser entendida de muitas maneiras, esse fato, apenas o encontramos nos sinais sensíveis e nos conceitos intelectuais. 
  Os sinais corpóreos, originados da profundidade de nossa cegueira carnal, correspondem, segundo penso, às gerações das águas; os conceitos intelectuais, gerados pela fecundidade da inteligência, simbolizam,me parece, as gerações humanas.
  E é por isso, Senhor, creio que disseste tanto às águas como aos homens: “Crescei e multiplicai-vos” – Nessa benção, penso que nos deste a faculdade, o poder de formular de várias maneiras uma única idéia, e de compreender também de muitas maneiras uma expressão única, mas obscura.
  É assim que as águas do mar se povoam, e não se moveriam sem as várias interpretações das palavras. É assim que a terra se povoa de gerações humanas; sua aridez se fecunda pela sua paixão da verdade, sob o poder da razão.

(Continua...)

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