CAPÍTULO XXV
Os frutos da terra
Os frutos da terra
Quero ainda dizer, Senhor meu Deus, o que me inspiram as palavras que seguem da tua Escritura. E o farei sem medo, porque direi a verdade; pois não vem de ti, por acaso, a inspiração do que queres que eu diga?
Não creio que eu possa dizer a verdade se tu não me inspirares, pois tu és a própria verdade, e todo homem é mentiroso. Por isto, quem mente fala do que é seu. Logo, para falar a verdade, só falarei o que me inspiras. Tu nos deste para alimento todas as ervas que produzem semente e que cobrem a terra, e todas as árvore que contém em si, em germe, seus frutos. E não foi somente a nós que deste esse alimento, mas também às aves do céu, aos animais da terra e aos répteis, mas não aos peixes e aos grandes cetáceos. Dizíamos que esses frutos da terra significam e representam alegoricamente as obras de misericórdia, que a terra fecunda produz para as necessidades desta vida. Era semelhante a uma terra assim o piedoso Onesíforo, cuja casa recebeu a graça de tua misericórdia, porque muitas vezes assistira a teu Paulo, sem se envergonhar por suas cadeias.
É o mesmo que fizeram os irmãos que, de Macedônia, lhe forneceram o que lhe era necessário, produzindo também abundante fruto. E contudo, o Apóstolo se queixa de certas árvore que não lhe tinham dado fruto devido, quando escreve: “em minha primeira defesa ninguém me assistiu; todos me abandonaram. Que isto não lhes seja imputado!” – Tais frutos são devidos aos que nos ministram doutrina racional, ajudando-nos a compreender os mistérios divinos. E nós lhes devemos exemplos de todas as virtudes; e também lhes devemos os frutos como a pássaros do céu, por causa das bênçãos que distribuem abundantemente sobre a terra, pois sua voz se fez ouvir por toda a terra.
CAPÍTULO XXVI
O dom e o fruto
O dom e o fruto
Nutrem-se com esses alimentos os que neles se alegram; não encontram neles alegria os homens cujo deus é seu ventre. E até entre os que ofertam esses frutos, o fruto não é o que eles dão, mas o espírito com que o oferecem. Por isso, naquele que servia a seu Deus e não a seu ventre percebo claramente a fonte de sua alegria; e participo fortemente de seu regozijo. Paulo recebera os presentes que os filipenses lhes tinham mandado por intermédio de Epafrodito. Vejo bem a razão de sua alegria. E é dela que se nutria, porque ele diz com verdade: “Alegrei-me muito no Senhor, vendo enfim reflorescer para mim vossa estima, da qual já andáveis desgostados”.
Eles, de fato, tinham estado realmente aborrecidos e, tornados áridos, não produziam mais o fruto das boas obras; e Paulo se alegra por eles, porque suas simpatias tornaram a florescer, e não por o terem socorrido na sua indigência. Porque ele diz em seguida: “Não é por causa das privações que sofro que falo assim: aprendi a me contentar com o que tenho. Sei acomodar-me às privações, e sei viver na abundância. Em tudo e por tudo habituei-me à saciedade e à fome, à abundância e à penúria. Tudo posso naquele que me fortalece”.
Qual então o motivo de tua alegria, ó grande Paulo? De onde vem tal júbilo, de que te alimentas, ó homem renovado para o conhecimento de Deus, conforme a imagem de teu Criador, alma viva que possui tal domínio de si, língua alada que exprime os mistérios? É certamente a tais almas que se deve este alimento. O que foi para ti esse alimento substancioso? A alegria. Ouçamos o que segue: “Contudo, fizestes bem ao partilhar de minhas tribulações” – Esta é a fonte da alegria, isto é o que o nutre, as boas obras, e não o conforto que aliviou sua miséria. Ele diz: “Na tribulação dilatastes meu coração” – pois ele aprendeu a viver na abundância e sofrer as privações, em ti, que o confortas. – “Bem sabeis, filipenses – diz ele – que nos primórdios de minha pregação do Evangelho, quando deixei a Macedônia, nenhuma Igreja me assistiu com seus bens quanto ao dar e receber, com exceção de vós, que, várias vezes me enviaste, para Tessalônica, com que suprir às minhas necessidades”. – Alegra-se agora por voltarem à prática de boas ações, felicitando-se por terem eles reflorido como campo fértil e verdejante.
Referia-se por acaso às próprias necessidades quando dizia: “Socorrestes às minhas necessidades”? – Será este o motivos de sua alegria? Certamente que não. E como o sabemos? Porque ele diz em seguida: “Eu não procuro a dádiva, mas o fruto”. – Aprendi de ti, meu Deus, a discernir a dádiva do fruto. O dom é a própria coisa dada por aquele que acode às nossas necessidades; é o dinheiro, a comida, a bebida, a roupa, um abrigo, e auxílio. O fruto é a vontade boa e reta do doador. O bom Mestre não se limita a dizer: “Aquele que receber um profeta” – mas acrescenta: “Aquele que receber um justo...” – mas acrescenta: “na qualidade de justo”. – E assim, aquele receberá a recompensa do profeta, e o outro, a do justo. Ele não diz apenas:
“Aquele que der um copo de água fresca a um de meus pequeninos” – mas acrescenta: “na qualidade de discípulo”. – E prossegue: “Na verdade vos digo: este não ficará sem recompensa”.
– Dom é receber o profeta, receber o justo, dar um copo de água fresca a um discípulo; fruto é fazer isso em consideração de sua qualidade de profeta, de justo, de discípulo. É com este fruto que Elias era alimentado pela viúva: ela sabia que alimentava um homem de Deus, e é por isso que o fazia. Os alimentos, porém, que lhe eram levados pelo corvo, não passavam de dom, e não era o Elias interior, mas o Elias exterior que recebia esse alimento, o que poderia morrer se lhe faltasse esse alimento.
CAPÍTULO XXVII
Peixes e cetáceos
Peixes e cetáceos
Por isso, Senhor, direi diante de ti a verdade. Por vezes, ignorantes e infiéis que, para serem iniciados e conquistados para a fé, precisam desses rituais de iniciação e de milagres mirabolantes, simbolizados, a meu ver, pelos peixes e pelos cetáceos, acolhem teus servos e os socorrem, ou os auxiliam nas necessidades da vida presente, sem saber por que o fazem nem em vista de que devem agir. Desse modo, nem aqueles os alimentam, nem estes são alimentados por eles, pois os primeiros não são movidos por vontade santa e reta, e os segundos não se alegram com os dons recebidos, não descobrindo neles fruto algum. Ora, a alma só se alimenta com o que lhe traz alegria. É esta a razão pela qual os peixes e os cetáceos se nutrem de alimentos que a terra só pode produzir depois de separados e purificados de amargura das águas do mar.
CAPÍTULO XXVIII
A bondade da criação
A bondade da criação
Viste, meu Deus, que tudo o que criaste te pareceu excelente. Também nós vemos tua criação, e ela nos parece excelente. Para cada espécie de obra criada, disseste: “Faça-se” e quando elas se fizeram, viste que eram boas. Sete vezes está escrito – eu as contei – que viste a excelência de tua obra; e na oitava vez contemplaste toda a criação, e disseste que, no seu conjunto, era não apenas boa, mas muito boa. Tomadas separadamente, tuas obras eram boas; consideradas em seu conjunto, elas eram boas e até excelentes. O mesmo julgamento se pode fazer da beleza dos corpos. Um corpo, formado de membros todos belos, é muito mais bonito que cada um desses membros cuja harmoniosa organização forma o conjunto, embora, considerados à parte, também eles tenham sua beleza própria.
CAPÍTULO XXIX
A palavra de Deus e o tempo
A palavra de Deus e o tempo
Procurei ver com atenção se forma sete ou oito as vezes que constataste a bondade de tuas obras quando elas te agradaram. Mas não encontrei uma seqüência temporal não tua visão, de onde pudesse deduzir que foi esse o número de vezes que viste tuas criaturas. Então disse: “Senhor, não será verdadeira tua Escritura, inspirada por ti, que és a própria verdade? Por que então me dizes que tua visão das coisas não está sujeita ao tempo, enquanto tua Escritura me diz que dia por dia viste a bondade de tuas obras? E calculei quantas vezes o fizeste.”
A isto me respondes, porque és meu Deus, falando com voz forte no ouvido interior de teu servo, rompendo minha surdez, me exclamas: “Ó homem, o que minha Escritura diz, isto digo eu. Mas ela fala no tempo, enquanto este não atinge o meu verbo, que permanece em mim, eterno como eu. Assim, o que vês por meu Espírito, sou eu quem o vê; o que dizes por meu Espírito, sou eu quem o diz. Mas o que vês no tempo, eu não vejo no tempo; e o que dizes no tempo, eu não digo no tempo.”
CAPÍTULO XXX
Erro dos maniqueus
Erro dos maniqueus
Ouvi, Senhor, meu Deus, tua voz, e recolhi em meu coração uma gota de doçura de tua verdade. Compreendi que há uns aos quais tuas obras desagradam. Eles sustentam que muitas delas fizeste constrangido pela necessidade, como a estrutura dos céus, a ordem dos astros; afirmam que não as criaste por ti mesmo, mas que elas já existiam alhures, criadas por outra fonte; que te limitaste a reuni-las, a ordená-las, a entrelaçá-las; que com elas construíste as muralhas do mundo, depois de vencido teus inimigos, para que essa construção os mantivesse cativos, e não mais pudessem se revoltar contra ti; que não criaste nem organizaste outros seres, como os corpos carnais, os animais pequenos e tudo o que se prende à terra por meio de raízes; que foi um espírito hostil, uma outra natureza, não criada por ti, e que se opõe a ti nas regiões inferiores do mundo, que as gerou e organizou. Esses insensatos falam assim porque não vêem tuas obras através de teu Espírito, nem te reconhecem neles.
CAPÍTULO XXXI
A luz do espírito divino
A luz do espírito divino
O oposto sucede aos que vêem tuas obras através de teu Espírito, pois és tu é quem as vê neles. Portanto, quando vêem que elas são boas, tu também vês essa bondade; em tudo o que lhes agrada por tua causa, tu és que nos agradas, e o que nos agrada através de teu Espírito é em nós que te agrada. Com efeito, quem dentre os homens sabe das coisas do homem, senão o espírito do homem que nele habita? Do mesmo modo o que pertence a Deus ninguém o sabe, a não ser o Espírito de Deus. “Quanto a nós, diz ainda Paulo, não recebemos e espírito deste mundo, mas o Espírito de Deus, para que conheçamos os dons que nos vêm de Deus”.
E isto me fez perguntar: Posto que certamente ninguém sabe das coisas de Deus, com exceção do Espírito de Deus, como então nós conhecemos os dons que nos vêm de Deus? Eis a resposta que recebi: As coisas que sabemos por seu Espírito, ninguém as sabe a não ser o Espírito de Deus. É pois justo que foi dito aos que falavam, inspirados pelo Espírito de Deus: “Não sois vós os que falais” – e aos que obtém seu saber do Espírito de Deus: “Não sois vós os que sabeis”. – E com igual razão se diz aos que vêem através do Espírito de Deus: “Não sois vós os que vêem”. Assim, em tudo o que vemos de bom pelo Espírito de Deus, não somos nós que vemos, mas Deus.
Por isso, uma coisa é julgar mau o que é bom, como o fazem aqueles de quem falei acima, e outra coisa é o homem ver o que é bom. Todavia, muitos amam tua criação porque é boa, mas não tem amam nessa criação; e por isso preferem gozar dela que de ti. Há ainda outro caso, quando alguém vê que uma coisa é boa, mas é Deus que nele vê que essa coisa é boa, e é Deus que é amado em sua criação. Ele só o pode ser graças ao Espírito que Deus nos deu, porque o amor de Deus foi derramado em nossos corações pelo Espírito Santo que nos foi dado. Por ele, vemos que tudo o que de algum modo existe é bom, pois recebe seu ser daquele que é, não de um modo qualquer, mas de modo absoluto.
CAPÍTULO XXXII
A criação
A criação
Graças te damos, Senhor! Vemos o céu e a terra, isto é, a parte superior e inferior do mundo material, assim como a criação espiritual e material. E, como adorno dessas partes que se compõe, o conjunto do Universo, e o conjunto de toda a criação, vemos a luz que foi criada e separada pelas trevas. Vemos o firmamento do céu, tanto o que está situado entre as águas espirituais superiores e as águas materiais inferiores, como ainda esses espaços de ar, chamados também de céu, onde volitam as aves do céu entre as águas que se evolam em vapores, e nas noites serenas se condensam em orvalho, e as que correm pesadas sobre a terra. Vemos a
beleza das águas reunidas nas planícies do mar, e a terra enxuta, ora nua, ora tomando forma visível e ordenada, mãe das plantas e das árvore . vemos os luminares do céu brilhando acima de nós, o sol bastar para o dia, a lua e as estrelas consolando a noite, e todos esses astros marcando e assinalando a cadência do tempo. Vemos o elementos úmido habitado por peixes, monstros, animais alados, porque a densidade do ar que sustenta o vôo dos pássaros é aumentada pela evaporação das águas. Vemos a face da terra embelezar-se de animais terrestres, e o homem, criado à tua imagem e semelhança, senhor de todos os animais irracionais, precisamente porque foi feito à tua imagem e se assemelha a ti, em virtude da razão e da inteligência. E como na alma humana há uma parte que domina pela reflexão e outra que se submete na obediência, assim a mulher foi criada fisicamente para o homem; é fora de dúvida que ela possui um espírito e uma inteligência racional, iguais aos do homem, mas seu sexo a coloca sob a dependência do sexo masculino; é desse modo que o desejo, princípio da ação, se submete à razão que concebe a arte do agir retamente. Eis o que vemos, e que cada uma dessas coisas, tomadas por si, são boas, e que todas, em seu conjunto, são muito boas.
CAPÍTULO XXXIII
A matéria e a forma
A matéria e a forma
Que tuas obras te louvem para que te amemos! Que nós te amemos, para que tuas obras te louvem! Elas têm seu princípio e fim no tempo, seu nascimento e morte, seu progresso e decadência, sua beleza e sua imperfeição. Elas têm, portanto, sucessivamente sua manhã e sua noite, umas oculta; outras, manifestamente.
Foram feitas por ti do nada, não de tua substância, nem de nenhuma substância estranha ou inferior a ti, mas de matéria concriada, isto é, criada por ti ao mesmo tempo em que lhe deste forma, sem nenhum intervalo de tempo. Sem dúvida a matéria do céu e da terra é uma coisa, e sua forma é outra; a matéria tua a fizeste do nada, a forma, tu a tiraste da matéria informe. Contudo, criaste uma e outra a um só tempo, de maneira que entre a matéria e a forma não houvesse nenhum intervalo de tempo.
CAPÍTULO XXXIV
Alegoria da criação
Alegoria da criação
Também meditei sobre o significado simbólico da ordem pela qual se fez tua criação e da ordem pela qual a Escritura relata. Vimos que tuas obras, consideradas cada uma em si, são boas, e em seu conjunto, muito boas. Em teu Verbo, em teu Filho único, vimos o céu e a terra, a cabeça e o corpo da Igreja, predestinadas antes de todos os tempos, quando ainda não havia nem manhã, nem tarde. Depois começaste a executar no tempo o que predestinaste antes do tempo, a fim de revelar teus desígnios ocultos e de dar ordem às nossas desordens – porque pesavam sobre nós nossos pecados, e nos perdíamos longe de ti em voragens de trevas. Teu Espírito misericordioso pairava sobre nós, para nos socorrer no momento oportuno. Justificaste os ímpios; tu os separaste dos pecadores e confirmaste a autoridade de teu Livro entre os superiores, que te eram dóceis, e os inferiores, para que a eles se submetessem. Reuniste em um corpo único, de mesmas aspirações, a sociedade dos infiéis, para que aparecesse o zelo dos fiéis fecundo em obras de misericórdia, e distribuindo aos pobres os bens da terra para adquirir os do céu.
Acendeste então os luzeiros no firmamento: teus santos, que possuem a palavra de vida e brilham pela sublime autoridade dos seus dons espirituais. Depois, para difundir a fé entre as nações idólatras, fizeste com a matéria visível dos sacramentos os milagres bem perceptíveis, e determinaste as vozes das palavras sagradas, conformes ao firmamento de teu Livro, pelas quais seriam abençoados teus fiéis. Formaste depois a alma viva dos fiéis, pela disciplina das paixões bem ordenadas e pelo vigor da continência. Por fim renovaste a alma, que não estava sujeita senão a ti, e que não tinha mais necessidade de nenhuma autoridade humana para imitar, à tua imagem e semelhança; submeteste, como a mulher ao homem, a atividade racional ao poder da inteligência. Quiseste que a teus ministros que são necessários ao progresso dos fiéis nesta vida,
que esses mesmos fiéis propiciassem o necessário para suas necessidades temporais; obras valiosas de caridade, cujos frutos colherão no futuro. vemos todas essas coisas, e todas são muito boas, porque tu as contemplas em nós, tu que nos deste o Espírito, para que por ele pudéssemos vê-las e amar-te nelas.
(Continua...)
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