quinta-feira, 5 de maio de 2011

O aliado obscuro de João Paulo II.

fratres in unum

(IHU) Maciel, fundador dos Legionários, já era pedófilo quando o polonês chegou ao papado. Ambos se apoiaram e compartilharam uma mesma visão da Igreja.

A análise é de Jesús Rodríguez, autor do livro La confesión. Las extrañas andanzas de Marcial Maciel y otros misterios de la Legión de Cristo (Ed. Debate), publicada no jornal El País, 29-04-2011. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
“E ao senhor, padre, quando veio a ideia de criar a Legião?”, perguntou-lhe João Paulo II a Marcial Maciel na primeira vez que jantaram juntos no refeitório privado do Santo Padre. A resposta de Maciel foi imediata: “Santidade, aos 15 anos eu já tinha claro que queria criar uma congregação de sacerdotes para instaurar o reino de Cristo na sociedade”. O Papa refletiu e continuou: “Pois o senhor sabe, padre Maciel, que eu, aos 15 anos, ainda não havia sido ordenado e não me passava pela cabeça chegar a ser Papa”. Segundo um religioso que presenciou a conversação, após essa frase do Papa, os dois começaram a rir. O Papa sempre admirou em Maciel essa segurança absoluta que ele tinha em sua missão. Sabia que ia ser de uma fidelidade absoluta.
Quando Wojtyla chegou ao papado em 1978, Maciel já era pedófilo. Já havia tido relações com mulheres, já sofria de uma adição aos opiáceos e estava há décadas em manejos econômicos. Controlava com mão de ferro os seus pequenos presos em seu particular voto de silêncio. Era senhor de mentes e feitos na Legião de Cristo. Mas todo o seu poder pouco tinha a ver com o que ele conseguiria da mão do novo pontífice. Em 1978, a Legião de Cristo era apenas uma congregação profundamente conservadora criada por um ambicioso sacerdote mexicano, que ainda não tinha as suas Constituições aprovadas, secretista, poderosa no México e com presença entre as elites reacionárias da Espanha, Itália, Irlanda e EUA. Com João Paulo II, Marcial Maciel conseguiria uma influência que nunca pôde imaginar.
E mais ainda arrastando seu obscuro passado do qual ninguém, pelo que parece, se deu conta. Maciel era um gênio como arrecadador. Seus seminários estavam cheios e orgulhava-se por não ir nem um passo atrás nem adiante do Papa. E, como se fosse pouco, apoiava economicamente o Solidariedade, o sindicato católico criado na Polônia em 1980 e dirigido por Lech Walesa que estava minando os fundamentos do regime comunista por parte do novo Papa.
Crescimento
Durante o papado de Wojtyla, a Legião seria a congregação católica de maior crescimento. Quando Wojtyla chegou ao Vaticano, contava com 100 sacerdotes. À sua morte, tinha 800 e mais de 2.000 seminaristas distribuídos em 124 casas por todo o mundo. Universidades no México, Chile, Itália e Espanha. Faculdades de Teologia, Filosofia e Bioética. Mais de 130.000 alunos. E 20.000 empregados em seu grupo econômico Integer. O número que mais foi repetido sobre o valor dos ativos da Legião nos últimos anos é de 25 bilhões de euros.
Depois de um Papa de dúvidas como Paulo VI, chegou em 1978 Karol Wojtyla, um Papa de certezas. Procedente da sempre fiel Polônia. Como o México. Um catolicismo de resistência. Esse era o projeto que o novo Papa oferecia em um tempo de incertezas. Para sua batalha, ele precisava de um exército incondicional. Já não lhe valiam os franciscanos, dominicanos ou jesuítas. Estavam muito comprometidos com os pobres. Fronteiriços com o marxismo. Inimizados com os poderosos. Wojtyla encontrou seus novos recrutas no Opus, nos Kikos, no Lumen Dei, nos carismáticos, no Comunhão e Libertação, Schoenstatt, Santo Egídio e na Legião de Cristo.
Juntos, subiram na máquina do tempo e rebobinaram até os anos 1950. Até uma Igreja com um poder centralizado, sem lugar para a dissidência. E decidiram que essa era a Igreja do final do século, a que tinha que re-envangelizar o planeta. Maciel seria um dos marechais de campo.
Suas trajetórias eram quase gêmeas. Haviam nascido em 1920, com dois meses de diferença, no seio de famílias conservadoras, rurais e de classe média. Criados em um catolicismo piedoso, vigoroso, excludente, muito de resistência política e unido ao sentimento nacional do México e da Polônia. Viveriam momentos de opressão religiosa durante suas infâncias, que lhes educariam em um catolicismo de batalha. As mães de ambos, Emilia e Maurita, seriam o amor de suas vidas, a chave de seu doutrinamento religioso, seus modelos. As mulheres tinham que ser para eles mães e esposas. E transmissoras do catecismo. Como suas mães.
Amizade
Segundo Maciel em seu livro Mi vida es Cristo, João Paulo II e ele se conheceram em janeiro de 1979, dois meses depois de Wojtyla ter sido eleito sucessor de São Pedro. O novo Papa colocou em sua cabeça que seu primeiro ato de massa fora da Itália tinha que ser no México, um país com mais de 80 milhões de católicos às portas dos EUA e da América Central da Teologia da Libertação. Era preciso arrebatar a América das garras do comunismo.
Em janeiro de 1979, Wojtyla estava decidido a realizar essa viagem. Mas o governo mexicano não tinha tanta clareza. México e Santa Sé não mantinham relações diplomáticas. O México era um Estado profundamente laico, com uma constituição anticlerical. Mas, ao mesmo tempo, contava com um catolicismo muito emocional, de sangue. Sua legislação implicava em que, no caso de João Paulo II visitar o México, não o poderia fazer como chefe de Estado, mas sim como um “turista ilustre”. Ele não seria convidado oficialmente pelo presidente José López Portillo. Não poderia celebrar a missa em espaços abertos. Com sua aposta de visitar o México, Wojtyla colocava tudo em jogo. Logo no começo do seu pontificado.
Nisso, apareceu Maciel. Dentro da rede de amizades que o fundador dos legionários havia tecido no México, estavam Rosario Pacheco e Margarita e Alicia López Portillo. Católicas, ricas e mãe e irmãs do presidente mexicano, José López Portillo. Maciel era o confessor de dona Rosario. Falou com elas. E elas com o presidente. Realizou-se o milagre. López Portillo convidaria o Papa e o receberia no aeroporto. João Paulo estaria autorizado a rezar missa ao ar livre diante de centenas de milhares de fiéis. E a visita seria transmitida pela televisão.
As recompensas
Wojtyla nunca esqueceria esse fino trabalho. Ninguém, em Roma, se importou que rumores iriam correr contra o superior dos legionários, que em algum canto da Cúria se esconderia um grosso dossiê sobre suas andanças. João Paulo II as ignorou. E, durante quase três décadas, não deixou de recompensar a lealdade de Maciel.
Nos anos seguintes, Wojtyla aprovaria as Constituições da Legião sem mudar uma vírgula, ordenaria no Vaticano 59 legionários e convidaria Maciel para fiscalizar vários Sínodos de bispos na Europa e na América Latina. Favoreceu a criação da universidade pontifícia dos legionários em Roma e a implantação da congregação no Chile. E chegou a definir Maciel como “guia eficaz para a juventude”.
E, quando as coisas começaram a ficar mal para Maciel após a publicação no jornal The Hartford Courant das primeiras denúncias por abusos sexuais, em fevereiro de 1997, o Papa fez ouvidos surdos. Em um dos últimos anos da Legião presidido no final de sua vida, Wojtyla ainda homenagearia os membros da Legião de Cristo, elevando a voz e sobrepondo-se à sua enorme debilidade: “Se nota, se siente, los legionarios están presentes”.
Quando o bispo mexicano Carlos Talavera entregou em 1999 uma carta ao cardeal Ratzinger, prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé e hoje Papa, que detalhava os abusos de Maciel sobre o ex-sacerdote legionário Juan Manuel Fernández Amenábar, a resposta de Ratzinger foi conclusiva, segundo esse mesmo bispo declarou depois: “Lamentavelmente, não podemos abrir o caso do padre Maciel, porque ele é uma pessoa muito querida do Santo Padre, ajudou muito a Igreja, e considero-o um assunto muito delicado”.
João Paulo II tinha que morrer em abril de 2005 para que o affaire Maciel fosse reativado. E já nada poderia salvá-lo da condenação. Tinha assegurado o fogo eterno.


Nenhum comentário:

Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...