[IHU]
11/8/2011
“Eu me pergunto algo que é muito mais grave, mais imperioso, mais forte: do jeito como estão as coisas nos países do Chifre da África, onde centenas de milhares de criaturas morrem de fome e de escassez, e em vista de que os países mais poderosos do mundo não encontram uma solução para essa situação tão angustiante, por que o Papa não vai, no momento ao menos, para a Somália e o Quênia, e fica ali, nos campos de refugiados, até que se encontre uma solução eficaz para esta situação de tantos seres inocentes que se debatem entre a vida e a morte?”, pergunta o teólogo espanhol José María Castillo, em artigo publicado no seu blog Teología sin Censura, 09-08-2011. A tradução é do Cepat.
Eis o artigo.
Sem dúvida, muita gente vai pensar que é um despropósito relacionar as viagens do Papa com as viagens de Jesus. Vinte séculos separam umas das outras. E quase todas as circunstâncias que cercaram e cercam uma situação e outra são tão diferentes que relacionar aquilo com isto não pode ter outra finalidade que acabar dizendo que aquelas viagens não têm nada a ver com estas. Por essa razão, no final das contas e se tudo isto é assim, o que aqui se pretenderia seria simplesmente desprestigiar o Papa.
Evidentemente, não faltam razões para isso a quem pensa como acabo de indicar. Mas também digo que, se tão somente o título deste artigo deixa algumas pessoas nervosas, talvez se possa pensar razoavelmente que, ao menos de entrada, ninguém teria porque ter prevenções de que, a propósito da viagem do Papa, se diga algo como, por que, para que e com quem Jesus viajava. Não dizemos que o Papa é o Vigário de Cristo na terra? O Dicionário da RAE diz que Vigário é aquele “que tem as vezes, poder e faculdades de outros ou os representa”. Pois – digo eu –, se o Papa representa Jesus, salvando todas as diferenças, algo estas viagens terão a ver com aquelas. E assim é. Jesus viajava para falar de Deus. E para isso o Papa vem a Madri. Jesus viajava em busca dos afastados de Deus. E para isso foi organizada a Jornada Mundial da Juventude, já que há razões para pensar que os jovens são um dos setores da população mais afastados da fé em Deus. Jesus viajava para consolar os que sofrem. E não há dúvida de que a visita do Papa servirá de consolo para não poucas pessoas atribuladas.
Tudo isto é certo. Mas também é verdade que Jesus viajava de forma que as “multidões”, que acudiam a ele para ouvi-lo, eram pessoas que os evangelhos designam normalmente com a palavra grega “óchlos”, que aparece 170 vezes nos Evangelhos. E que designa, não apenas uma grande quantidade de pessoas, mas também pessoas ignorantes, de condição social humilde e que eram consideradas pelos piedosos como “gente que desconhecia a lei religiosa e era maldita”, segundo diziam os religiosos mais observantes (Jo 7, 49). Se os autores dos Evangelhos dispunham de outras palavras gregas (“démos”, láos”, “éthnos”...) para designar o povo que acudia a Jesus, por que normalmente utilizam a palavra mais despectiva que tinham em mãos? Que atrativo estranho tinha aquele itinerante incansável que foi Jesus?
Ao me fazer estas perguntas, não pretendo questionar nem o custo econômico da viagem do Papa, nem o que pretendem os organizadores desta viagem, nem o que buscam aqueles que viajam até Madri para ouvi-lo. Eu me pergunto algo que é muito mais grave, mais imperioso, mais forte: do jeito como estão as coisas nos países do chifre da África, onde centenas de milhares de criaturas morrem de fome e de escassez, e em vista de que os países mais poderosos do mundo não encontram uma solução para essa situação tão angustiante, por que o Papa não vai, no momento ao menos, para a Somália e o Quênia, e fica ali, nos campos de refugiados, até que se encontre uma solução eficaz para esta situação de tantos seres inocentes que se debatem entre a vida e a morte? Se há fundadas esperanças de que um gesto assim do Papa seria uma sacudida nas consciências de tantos bilionários que poderiam aliviar o presente estado de coisas, por que o Papa não faz isso? Não é mais necessário, mais importante, mais humano, mais evangélico, neste dramático momento, ir com os pobres moribundos do que ser recebido apoteoticamente em Madri?
E conste que vou colocar o remendo antes que os grãos se percam. Porque são muitos os que vão dizer que tudo isto é demagogia barata, utopia inútil, etc., etc. Mas mesmo com o risco de que me joguem tudo isso, e muito mais, na cara, não vou deixar de dizer o que sinto, diante de uma necessidade tão urgente e que tanto clama ao céu. Mais, se digo isto não é para atacar a Igreja ou o Papa. Pelo contrário. Digo isso porque tenho a firme convicção da força que a Igreja e o Papa têm para mover corações e consciências quando a vida ou a morte de tantos seres frágeis, os mais indefesos e desamparados, estão em jogo.
Evidentemente que o Papa, ao se reunir com os jovens, vai lhes remover as consciências, vai lhes indicar o caminho do Evangelho e vais lhes descobrir horizontes de humanidade. Mas, por favor, o primeiro é o primeiro. E, sem dúvida alguma, o mais urgente, neste momento, é salvar a vida de tantas pessoas que são os “Zé Ninguém” deste mundo.
Termino afirmando que isto não vale apenas para o Papa e os bispos. Vale para todos. Para mim, em primeiro lugar. Para que tenhamos a coragem de enfrentar uma situação que não admite espera.
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