[IHU]
10/8/2011
"A crise na Espanha é de ordem antropológica, mais do que moral". Javier Prades Lopez (Madri, 1960) é um sacerdote da diocese da capital espanhola, decano da Faculdade de Teologia e delegado do Grão-Chanceler da recém-nascida Universidade Eclesiástica de "San Dámaso" de Madri, além de dirigir a Revista Espanhola de Teologia.
A reportagem é de Andrea Tornielli, publicada no sítio Vatican Insider, 08-08-2011. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
O Vatican Insider, a poucos dias do início da Jornada Mundial da Juventude, pediu-lhe para explicar o significado que esse evento pode ter para a sociedade espanhola cada vez mais descristianizada.
Eis a entrevista.
A sociedade espanhola parece se secularizar com uma rapidez maior do que a de outros países europeus. Por quê?
Eu assinalaria dois fatores possíveis. Primeiro, a sociedade espanhola faz parte do contexto europeu e compartilha alguns elementos próprios do cansaço de todo o Ocidente. O nosso tempo é um tempo de transição, em que convivem alguns aspectos de uma tradição popular que não desapareceu totalmente, com mudanças de diversas naturezas, que ocorrem de modo muito veloz e que somos chamados a compreender em seu verdadeiro porte. Na sociedade espanhola, se vê, por exemplo, um enfraquecimento dos sujeitos comunitários, começando pela família, que sempre foi uma realidade muito significativa, até a outras agregações e associações típicas da vida social.
Nesse sentido, a sociedade espanhola, também por causa da nossa história, com relação a outros países europeus, é menos articulada, menos dotada e, portanto, mais exposta à influência do Estado, porque o tecido social é mais frágil. Esse é um dos campos onde o debate foi mais forte nestes últimos anos. Percebe-se a urgência de uma retomada das realidades associativas, comunitárias, no tecido da vida social espanhola, se não quisermos acabar nas mãos de um estatismo sem trégua.
Quais são, a seu ver, as causas dessa crise?
A crise na Espanha é de ordem antropológica, mais do que moral. Dessa fraqueza, vêm também as consequências morais, mas a raiz disso tem a ver com a concepção do homem e, em particular, com a sua religiosidade constitutiva. Nesse sentido, a razão dessa rápida secularização, que é necessário assinalar, é o fato de que, na nossa sociedade e na nossa tradição cristã, se enfraqueceu a percepção da correspondência profunda entre o que poderíamos chamar de religiosidade humana, o sentido religioso do homem, e a resposta que a fé cristã oferece a ela. E isso também se deve ao fato de que se enfraqueceu a percepção da condição religiosa constitutiva do homem. Por isso, estamos diante de uma decisiva tarefa de educação e de personalização da fé.
Qual deve ser, na sua opinião, a atitude dos cristãos diante de uma sociedade secularizada e na qual a política também toma decisões que contrastam com o ensino da Igreja?
O desafio atual para nós, cristãos, é a de realizar o que Bento XVI indicou ao falar de "uma inteligência da fé" que se torna um incidente se se torna "inteligência do real". Em outras palavras, somos chamados a uma inevitável interpretação cultural da fé. O que quero dizer? A fé nunca se reduz a pura cultura humana, mas, como dizia João Paulo II, a fé verdadeiramente vivida e pensada chega até a se tornar cultura, expressividade humana em todos os campos. Em uma sociedade como a espanhola, temos uma necessidade particular de propor o anúncio de Jesus Cristo, mostrando todas as suas implicações para a vida humana, pessoal e social, incluindo aquelas grandes questões morais sobre as quais, nos últimos anos, se produziu um confronto com as iniciativas tomadas pelo governo.
Como se faz, na sociedade secularizada, para propor a fé novamente?
A modalidade dessa interpretação cultural da fé é o que a tradição da Igreja chama de "testemunho", isto é, um modo de se propor ao mundo que exige a verdade diante do interlocutor, que faz nascer no outro o desejo de conhecer e de aprofundar essa novidade humano que a testemunha desperta com a sua presença, com as suas ações e com as suas palavras. Acredito que a nossa responsabilidade nas sociedades plurais do Ocidente, a nossa contribuição ao bem comum, passa por essa tensão a dar testemunho da verdade da fé cristã, que saiba mostrar aos nossos interlocutores as implicações que ela oferece para uma compreensão do humano que contribua para uma vida boa para todos. Queremos estar presentes, publicamente, na sociedade espanhola para oferecer esse testemunho e servir, assim, ao bem comum.
O papa está prestes a voltar pela terceira vez para a Espanha: o que vocês esperam dessa visita?
A nossa primeira expectativa é dele, da sua pessoa e da sua missão. A sua presença pessoal entre nós é o sinal histórico, contingente, mas imprescindível, da grande companhia que o mistério de Deus faz às nossas vidas. Obviamente, para o ministério petrino enquanto sucessor de Pedro, a sua presença implica na confirmação objetiva da nossa fé, em estreita consonância com o tema da JMJ. Da sua presença, das suas ações e das suas palavras, esperamos o testemunho daquilo que ele mesmo chamou de "nova evangelização". Isto é, essa sua capacidade de falar ao coração de todos, de se dirigir aos nossos concidadãos, enquanto homens feitos com um coração cheio de expectativa, embora muitas vezes obscurecida e confusa.
O papa sabe acolher a condição de quem o ouve para relançar sempre uma possibilidade de anúncio e de encontro. Por isso, todos nós, espanhóis, tanto católicos como não crentes, poderemos reconhecer no anúncio de Cristo, que Bento XVI irá renovar, aquela correspondência superabundante que desejamos para uma vida completa.
Às vezes, a JMJ é apresentada como um evento que se torna um teste de força. O que é esse evento?
Além das polêmicas circunstanciais, que, além disso, neste momento, eu considero muito minoritárias na Espanha, me parece justo dizer que a JMJ é uma enorme ocasião para realizar aquilo que o próprio Bento XVI disse aos espanhóis há alguns meses, em Barcelona: a contribuição da Igreja à sociedade é muito simples e muito clara: consiste em lembrar a todos que Deus existe e que Ele nos deu a vida e a leva a pleno cumprimento.
Essa percepção elementar do real como proveniente de Deus e que, portanto, nos testemunha a presença de Deus, também por meio da nossa presença como cristãos, me parece ser uma das contribuições mais importantes que a JMJ oferece a todos aqueles que dela participam. Vale a pena, portanto, vivê-la pelo que ela é: a possibilidade de um encontro. Estou convencido de que será assim para as centenas de milhares de jovens que chegarão a Madri. Mas, também para os milhões de pessoas que, habitando na cidade, vão se cruzar com eles, a JMJ, pela singular condição do gesto, será a ocasião para que possa acontecer o encontro com o Deus vivo, ou a redescoberta de uma fé adormecida ou esquecida.
Segundo o senhor, esses grandes momentos caracterizados pelo entusiasmo produzem uma mudança que depois permanece e que se destina a incidir?
A JMJ, como toda realidade da vida da Igreja, nunca é um fenômeno automático. As grandes dimensões do gesto não garantem que necessariamente irá acontecer uma mudança, assim como, além disso, nenhum outro gesto pode garantir isso, mesmo que de dimensões pequenas. Na vida cristã, nada acontece automaticamente. É sempre dramático o encontro entre a iniciativa de Cristo, que se faz presente através do seu Espírito em todas as dimensões da realidade eclesial, e a nossa liberdade.
Certamente, na JMJ, a liberdade de Deus se move até nós, busca o homem e se dirige para a sua liberdade pessoal, o alcança para se cruzar com a liberdade de cada um de nós. A ocorrência da mudança e a sua permanência estão em jogo nesse dramático encontro de liberdades entre Deus e cada um de nós, presentes na JMJ. A experiência demonstra, por exemplo, no florescimento de tantas vocações aos diversos estados de vida, que esse encontro se produz nas JMJs.
Como o senhor vê a situação social e cultural dos jovens na Espanha de hoje?
É uma realidade muito diversificada. Há, naturalmente, muitos jovens que vivem com grande seriedade e intensidade as suas vidas, mas também muitos jovens desorientados e confusos, que expressam a sua inquietação de um modo muito reduzido, às vezes até desumanos. Certas expressões de como os jovens usam o seu tempo livre ou concebem o trabalho ou os afetos fazem pensar em uma busca contraditória pela felicidade. Mas não há ninguém que não tenha dentro de si o desejo de ser feliz, mesmo que isso muitas vezes se traduza em respostas insuficientes, que não estão à altura de um desejo que é infinito. Por isso, é muito importante que esse desejo de felicidade, típico dos jovens, possa ser interceptado por uma proposta cristã, capaz de captar as profundezas infinitas da sua expectativa.
Como a proposta cristã pode, segundo o senhor, interceptar essa expectativa dos jovens?
Isso só é possível mostrando em andamento, historicamente, o cumprimento desse desejo. Essa é a nossa responsabilidade pelos jovens espanhóis: que possam descobrir a verdadeira estatura da sua humanidade e se tornar sujeitos ativos, protagonistas de uma construção social que não se reduza a puro protesto, o que vimos em tantas manifestações de rua recentes, onde a exigência humana que havia se despertado novamente se reduziu imediatamente a certas reivindicações e, no fundo, à exigência de um estatismo protetor. Isso jamais poderá dar uma resposta exaustiva à condição própria do homem. Queremos ser protagonistas da nossa felicidade e do bem comum.
Que significado tem a instituição da Universidade Eclesiástica de Madri, desejada pelo papa? Qual contribuição ela pode dar para a Espanha?
Acima de tudo, é motivo de grande alegria e de gratidão profunda ao Santo Padre que, mediante a Congregação para a Educação Católica, quis conceder à diocese de Madri essa Universidade Eclesiástica. Ela nasce para servir às exigências de evangelização e de missão da Igreja, através das faculdade que estudam as disciplinas eclesiásticas – teologia, filosofia, filologia e direito canônico –, com o trabalho cotidiano do ensino e da pesquisa dos professores. Na nossa universidade, já há uma importante presença de estudantes provenientes de outras dioceses da Espanha e do exterior, particularmente da América Latina, da África e até da Ásia. A dimensão missionária sempre foi uma característica da Igreja de Madri. Hoje, essa dimensão se realiza também dessa forma, a de acolher os estudantes que vêm de tantos pontos diversos do mundo para lhes propor uma experiência eclesial.
Quais é o seu programa?
A nossa intenção como realidade acadêmica é servir ao programa que Bento XVI já havia lançado em 2005, isto é, o de uma adequada hermenêutica do Concílio Vaticano II. É uma questão que se reabriu. Queremos abordá-la seguindo os passos de João Paulo II e de Bento XVI, intérpretes e grandes protagonistas da recepção do Concílio na Igreja, buscando desenvolver um trabalho acadêmico, portanto, filosófico, teológico, canônico, que consiga fazer passar para o tecido da vida do povo de Deus aquele grande acontecimento de autorrealização da Igreja que foi o Vaticano II.
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