sexta-feira, 19 de agosto de 2011

Um teólogo no santuário do poder


[IHU]

19/8/2011  


Com a terceira viagem à Espanha, Bento XVI “demonstra assim a sua grande preocupação com o futuro do catolicismo espanhol, outrora reserva espiritual da Europa e imerso hoje em deserções e cismas”, escreve o teólogo espanhol Juan G. Bedoya, em artigo publicado no jornal El País, 18-08-2011. A tradução é do Cepat.
Eis o artigo.

“Sem Papa não há JMJ (Jornada Mundial da Juventude)”, afirmou o cardeal Rouco. Efetivamente, se o Papa não viesse, a Jornada Mundial da Juventude seria um simples acontecimento no calendário evangelizador da hierarquia católica. O Papa é quem garante massas e entusiasmo, além da implicação do Estado e, inclusive, a polêmica, que sempre vem bem para esquentar ambientes. Mas as JMJ foram uma criação do polonês João Paulo II, que era atlético e dinâmico, e um grande ator: “O Papa dos jovens”, como o definiu Rouco no sermão inaugural da JMJ.
Ratzinger, ao contrário, não é um líder de jovens, mas um pensador retraído, pouco dado a exibições. Um intelectual. Em 2005, sucedeu João Paulo II quando já havia completado 78 anos. Desde então teve que se acostumar a viajar e, pouco a pouco, se converteu também em um homem de multidões, finalmente libertado do opróbrio de ter sido durante décadas o grande Inquisidor da Igreja de Roma.
Joseph Alois Ratzinger nasceu em Marklt am Inn em 1927. Com 12 anos entrou em um seminário, mas teve que abandoná-lo quando Hitler, com a guerra já perdida, convocou para o exército rapazes de apenas 16 anos. Ratzinger foi, portanto, soldado da Alemanha nazista. Apesar de ter falado pouco sobre essa experiência, certamente marcou seu caráter. Também serviu aos seus detratores para atribuir-lhe influências e maneiras totalitárias.
O jovem Ratzinger recomeçou com 19 anos os seus estudos, que terminou na Universidade de Munique. O cardeal Von Faulhaber o ordenou sacerdote em 1951 junto com o seu irmão Georg. Pouco depois, já ensinava teologia na Universidade de Regensburg.
Entre 1962 e 1965, participou como perito do Concílio Vaticano II, como assessor do cardeal de Colônia. Era então um teólogo de abertura, moderno, inclusive atrevido, defensor da abertura do diálogo com outras religiões. Mas o sonho juvenil já carregava o veneno da prepotência: Ratzinger foi o inspirador da declaração Dominus Iesus, assinada por João Paulo II em 2000 sobre a Igreja católica como única religião de salvação (ou verdadeira). Antes, havia aceitado do papa Paulo VI o cargo de arcebispo de Munique (1977) e a dignidade do cardenalato quatro anos mais tarde.
Da época do Ratzinger aberto é esta frase: “A Igreja de hoje não necessita de panegiristas do existente, mas homens em quem a humildade e a obediência não sejam menores que a paixão pela verdade”.
Este era o Ratzinger professor brilhante, teólogo livre e companheiro dos melhores pensadores cristãos do século (Rahner, Congar, Schillebeeckx, Küng, entre os mais conhecidos), com alguns dos quais compartilhou editoras, revistas e cátedras. Seus afãs reformistas durariam o tempo que o polonês João Paulo II demorou para atraí-lo ao santuário do poder vaticano para colocá-lo na presidência da poderosa Congregação para a Doutrina da Fé (1981), que foi como decidiu chamar o velho e terrível Santo Ofício da Inquisição. Então, o Ratzinger teólogo se converteu em juiz e verdugo de centenas de teólogos, que castigou sem consideração por defenderem muitas vezes o que antes ele mesmo pensava.
Seguem outros pensamentos de sua juventude, tirados de seu livro O novo povo de Deus (Ed. Paulinas), de 1969:
Ofícios leigos. “Cristo não foi sacerdote, mas leigo. Não possuía nenhum ofício. Cristo não se entendeu a si mesmo como intérprete de desejos e esperanças humanos, algo como voz do povo, como seu mandatário secreto ou público, nem compreendeu a sua missão desde abaixo, como se disséssemos em sentido democrático”.
Liberdade do cristão. “Não é azar que os grandes santos não apenas tiveram que lutar com o mundo, mas também com a Igreja, com a tentação da Igreja de se fazer mundo, e sob a Igreja e na Igreja tiveram que sofrer um Francisco de Assis ou um Inácio de Loyola, que, em sua terceira prisão durante 22 dias em Salamanca, preso entre cadeias, permaneceu no cárcere da Inquisição, e ainda conseguia manter a alegria e a fé”.
Nova teologia. “O Concílio manifestou e impôs sua vontade de cultivar de novo a teologia a partir da totalidade das fontes, de não olhar estas fontes unicamente no espelho da interpretação oficial dos últimos cem anos, mas de entendê-las em si mesmas. Até então era costume olhar a Idade Média como o tempo ideal cristão. A Idade Moderna, ao contrário, se concebia como a grande apostasia”.
Primado. “Em todo o mundo cristão se movia uma tropa de sacerdotes submetidos ao Papa sem o elo de um prelado local. São Bernardo nos recorda que não somos o sucessor do imperador Constantino, mas o sucessor de um pescador”.
Ratzinger não foi um papa viajante, embora tenha viajado mais do que pensavam aqueles que o conhecem. Realizou 19 viagens para fora da Itália e 23 para dioceses italianas. Veio três vezes à Espanha, incluindo a presente visita. Demonstra assim sua grande preocupação com o futuro do catolicismo espanhol, outrora reserva espiritual da Europa e imerso hoje em deserções e cismas. É um diagnóstico fácil de ditar a partir de uma ideia que o cardeal Rouco levou anos afirmando, isto é, sua crença de que a Espanha é hoje “um país de missão”.

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