domingo, 21 de agosto de 2011

A volta do jansenismo?


[IHU]

21/8/2011  

Tess Livingstone, comentarista religiosa conservadora e recente convertida ao catolicismo, desagradou o padre Daniel Donovan em outro artigo publicado no jornal The Australian. Desta vez sobre as tentativas de um cardeal da Cúria que tenta subverter o entendimento do Vaticano II acerca da Eucaristia.
Essas pessoas estão tentando reintroduzir o jansenismo como a corrente dominante da crença e da prática católicas? Neste artigo, o padre Donovan examina o que está acontecendo e fornece uma exegese alternativa da compreensão da Eucaristia na Igreja primitiva e de como ela foi reavivada no Concílio Vaticano II.
Onde está a maioria dos nossos bispos que não levantam suas vozes em protesto contra o que está sendo feito ao catolicismo e ao trabalho da grande maioria de seus antecessores no Concílio Vaticano II? Quem autorizou essa tomada de controle do catolicismo por essa minoria remanescente e por esses convertidos dos últimos dias ao catolicismo que estão tentando transformar os entendimentos discernidos pela grande maioria dos bispos do mundo?
Donovan é sacerdote da arquidiocese de Sydney, na Austrália. É formado em Teologia e Educação e trabalhou em paróquias da Austrália e dos Estados Unidos. Também atuou em programas de formação de professores, ensinando teologia ensino e educação religiosa em nível universitário. Atualmente, está envolvido com programas religiosos em canais de televisão e redes de rádio australianos.
O artigo foi publicado no sítio australiano Catholica, 08-08-2011. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis o texto.

O jornal The Australian (04-08-2011, p. 8) está novamente publicando manchetes infundadas sobre a Eucaristia católica. Desta vez, a manchete diz: "Católicos devem se curvar diante de Cristo" (a manchete na edição online diz: "Vaticano pede formalização do ritual da comunhão").
Como de costume, os adversários na reportagem são a mesma "autoridade vaticana" no canto esquerdo e um "modernista enfurecido" no canto direito. Claro que o resultado da disputa é sempre o mesmo, com a autoridade do Vaticano dando o soco de nocaute, deixando o modernista enfurecido estatelado na lona, considerando suas opções. Enquanto o árbitro (neste caso, o secretário-executivo do Conselho Litúrgico Nacional, Peter Williams) faz a contagem. Surpreendentemente, o artigo parece colocar mais peso sobre uma declaração do Conselho Litúrgico Nacional do que no Vaticano II, que foi um Conselho Geral da Igreja.
Na verdade os comentários do cardeal Antonio Canizares Llovera, prefeito da Congregação para o Culto Divino e a Disciplina dos Sacramentos, não são corretamente refletidos na manchete. Os destinatários não estão "se curvando diante de Cristo", mas sim "reconhecendo a presença real de Cristo" na Eucaristia.
A linguagem deste e de outros artigos publicados por essa repórter sobre as práticas litúrgicas católicas no The Australian criam a impressão de que ela não é uma católica tradicional, mas tem suas raízes cerimoniais em outra denominação cristã. Os comentários do cardeal Llovera no Peru realmente "refletem o desejo do papa de reforçar as práticas litúrgicas, uma tendência que inclui a nova e mais formal tradução da missa"? A liturgia católica nunca foi moldada pelos desejos papais e/ou pelas tendências, mas sim por um consenso de toda a Igreja.
A Eucaristia na Tradição católica, teologicamente, é uma ação de todo o corpo de Cristo, cabeça e membros. É o ato central de louvor e de adoração, e é a resposta obediente da comunidade ao mandamento de Jesus: "Fazei isto em memória de mim".
Como tal, a ação litúrgica envolve as quatro ações distintas de Jesus: tomar, abençoar, partir e dar. No Ofertório, todo o corpo toma os dons ("frutos da terra e do trabalho humano... que se tornam comida e bebida da salvação"). Em seguida, por meio da Oração Eucarística, a comunidade e os dons do pão e do vinho são transformados e abençoados no poder do Espírito. Os frutos da terra são agora a presença do Salvador ressuscitado e, mediante a partilha dos dons transformados, a comunidade participa da Sua vitória sobre o pecado e a morte. Agostinho tinha o hábito de comunicar ao seu povo pela primeira vez não dizendo "O Corpo de Cristo", mas sim com as palavras "Receba o que você é" [1].
No Rito da Comunhão, estão as ações finais de partir e receber (dar); o pão é partido, e a comunidade se lembra do corpo partido de Jesus e do seu sangue derramado pela salvação de todos. Agora, aqueles que participam do Seu sacrifício se comprometem a continuar dando a si mesmos pela salvação do mundo. "E nos tornemos em Cristo um só corpo e um só espírito" (Oração Eucarística III). Finalmente, a comunidade recebe "o que é", o corpo de Cristo. Agora, o sacrifício está completo, agora a comunidade se lança a ser Eucaristia e a continuar a missão de Deus no mundo.
Só uma pessoa, seja ele ou ela uma autoridade da Igreja ou um novo convertido, que não compreende a ação unificada que é a Eucaristia na Tradição Católica poderia acreditar que sinais culturais externos de reverência devem ser ressaltados contra uma catequese de desenvolvimento integral da Eucaristia como o ato perfeito de louvor e de agradecimento por meio de Jesus ao Pai no Espírito Santo. Infelizmente, "a nova e mais formal tradução da missa" nunca vai compensar a "participação interna" no mistério de Cristo e na catequese proporcional para aprofundar e apoiar essa participação. A verdadeira reverência por Jesus presente na Eucaristia não está relacionada a gestos prescritos externos, sem consideração com sua finalidade pretendida originalmente.
Práticas litúrgicas: o fantasma de Cornelius Jansen (1585-1638)
Se a autora da reportagem do The Australian fosse mais familiarizada com a Tradição Católica, então ela estaria consciente da heresia do bispo Cornelius Jansen de Ypres (1585-1638) e de sua escola em Port Royal, em Paris. Infelizmente, tanto os católicos quanto os reformadores no Concílio de Trento (1545-1563) haviam falhado em desenvolver uma análise crítica do pensamento de Santo Agostinho, especialmente da sua teologia da graça e da justificação humana. Na sequência do Concílio, ao longo dos séculos XVII e XVIII, o jansenismo foi um movimento distinto [2] na Igreja, referindo-se a si mesmo como "rigorosos seguidores do agostinismo" [3]. Portanto, no "desejo de reforçar as práticas litúrgicas" em torno da recepção da Comunhão, não só "o desejo" está completamente em desacordo com a teologia da Eucaristia como uma ação sacrificial unificada de todo o corpo de Cristo, mas também tem traços da heresia jansenista.
Sob a Abadessa Madre Angelique Arnauld (1591-1661), o Convento de Port Royal, em Paris (1625), tornou-se o sementeiro do jansenismo. Finalmente, o irmão da Madre Angelique, Antoine Arnauld, tornou-se o "principal promovedor" do jansenismo e, em 1643, ele publicou um livro, Sobre a Comunhão Frequente [4], que disponibilizou os ensinamentos de Jansen em francês.
Os jesuítas foram rápidos em criticar as opiniões de Jansen de que as pessoas eram indignas de receber a Comunhão e no fato de que Jesus de fato instituiu esse sacramento como um meio de santidade para os pecadores. Os jesuítas ensinaram que havia apenas dois requisitos para receber a Eucaristia: o primeiro era que a pessoa deve ser batizada, e o segundo era que ele ou ela não deve estar em pecado grave. Os jansenistas, por outro lado, "desencorajavam a Comunhão frequente, argumentando que um alto grau de perfeição, incluindo a purificação do apego ao pecado venial, era necessário antes de se aproximar do sacramento" [5].
No tempo do Quarto Concílio de Latrão (1215), a Igreja teve que instituir o Preceito Pascal, uma lei que exigia que as pessoas recebessem a Comunhão "uma vez por ano". Como se assumia que o povo havia cometido pecado, o Concílio exigiu que as pessoas recebessem a absolvição antes da sua comunhão anual e, assim, recebessem a Eucaristia "dignamente".
Desde os primeiros dias da Igreja, a Eucaristia era a ação de toda a comunidade [6], mas, gradualmente, a Eucaristia se tornou a reserva do clero (em torno do ano 500), e a participação das pessoas diminuiu com uma maior ênfase sobre a adoração das espécies consagradas. O povo, por volta de 1215, então, não estava recebendo a Comunhão e, por isso, havia uma lei que exigia que recebessem o sacramento "uma vez por ano".
Notas:
 [1] Ronald Rolheiser. Our One Great Act of Fidelity: Waiting for Christ in the Eucharist. New York: Doubleday, 2011, p.37.
 [2] O jansenismo como um movimento (não muito diferente dos movimentos contemporâneos) teve o efeito de minar a identidade e as práticas sacramentais da Igreja.
 [3] Ver http://pt.wikipedia.org/wiki/Jansenismo O jansenismo tinha oposição dentro da Igreja Católica tanto por parte da hierarquia quanto dos jesuítas. Foram, de fato, os jesuítas que cunharam o termo "jansenismo" para indicar as "afinidades" entre o movimento e o calvinismo. O Papa Inocêncio X, em uma bula, Cum Occasione (1653), condenou os principais ensinamentos do jansenismo como heresia. No entanto, o Papa Clemente, em 1713, emitiu uma bula, Unigenitus, que finalmente acabava com a tolerância ao jansenismo na Igreja. Entretanto, sua influência na vida e na prática católicas persistiu até a década de 1960 e além, especialmente, nas práticas em torno da "comunhão frequente". Os jansenistas ensinavam que a "humanidade decaída" era indigna de receber a Eucaristia, e não surpreendentemente, portanto, a pessoa era obrigada a se ajoelhar e a receber a hóstia de joelhos. Além disso, ele ou ela não era digno de receber a hóstia em suas mãos, mas apenas em sua língua. Os católicos se lembrarão de que as crianças da Primeira Comunhão eram instruídas a não deixar que a hóstia encostasse em seus dentes. Toda essa demonstração de reverência perante a hóstia eram as vibrações de uma heresia silenciada que subverteu o propósito de Eucaristia e de um Salvador que busca os perdidos (Mt 9, 12-13; 18, 12).
 [4] Antoine Arnauld, em De frequente Communion (Sobre a Comunhão Frequente) disponibilizou em francês as doutrinas de Jansen, que, antes de 1643, estavam disponíveis apenas no original em latim do trabalho de Jansen, “Augustinus”, que foi publicado por muitos anos depois da morte de Jansen, em 1640. Arnauld foi introduzido ao trabalho de Jansen pelo amigo de Jansen, Jean du Vergier (1581-1643), o abade de Saint-Cyran.
 [6] Ver São Justino Mártir, The First Apology of St Justin Martyr (Cap. 66-67), em J. P. Minge (1857-1866), Patrologia Graeca (PG), Imprimerie Catholique, PG 6, p. 427-431.

Nenhum comentário:

Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...