[IHU]
11/9/2011
“Na manhã do 11 de setembro de 2001, eu estava trabalhando em
minha mesa na revista America. Perto das 9 horas da manhã, minha mãe me
telefonou da Filadélfia para dizer que ela tinha ouvido falar de um
avião que havia colidido com o World Trade Center. Achei estranho que
ela me telefonasse; ela sabia que os nossos escritórios ficavam na parte alta
da cidade, não no centro. Poucos minutos depois, eu liguei a TV. Foi só então
que eu vi a tragédia em desdobramento.”
É assim que James Martin, padre jesuíta e editor de
cultura da renomada revista semanal America, dos jesuítas
dos Estados Unidos, inicia um recente relato publicado em sua coluna Of
Many Things, retratando o que ele viveu na manhã do fatídico dia do
ataque às Torres Gêmeas,
há 10 anos.
Na tarde
desse mesmo dia, Martin foi caminhando pelas ruas vazias do
centro de Nova Iorque até o lado leste da cidade, ao Chelsea Piers, um
grande centro de eventos e de esportes, onde ficou aguardando para ajudar as
vítimas que nunca chegaram – houve muito poucos sobreviventes. No dia 13, ele
perguntou aos policiais se não precisavam de ajuda no centro da cidade. Foi
assim que ele acompanhou os oficiais até “o lugar”. “Era uma visão horrível, da
qual certamente você já viu fotografias. Dez anos depois, eu ainda me lembro do
cheiro acre que permeava tudo”.
Mas foi
“nesse inferno que eu encontrei a graça”, relata o jesuíta. “Trabalhar no World
Trade Center foi uma das experiências mais profundas do Espírito Santo
que eu já tive”, uma experiência de “caridade, unidade e concórdia”.
A IHU
On-Line entrevistou Martin por e-mail para aprofundar essa
experiência que marcou a história, também a partir do ponto de vista cristão. Além do 11 de setembro, Martin também comenta alguns de seus
livros, best-sellers nos EUA, e o papel da teologia no mundo e na
cultura contemporâneos.
James Martin é padre
jesuíta e editor de cultura da revista semanal America, fundada em 1909
pelos jesuítas dos EUA. É formado em economia pela Wharton School of
Business, da Universidade da Pensilvânia. Depois de trabalhar
durante seis anos no setor de finanças e de recursos humanos da General
Electric Co., entrou na Companhia de Jesus em 1988. Formou-se em filosofia
pela Universidade Loyola de Chicago e em teologia pela Weston Jesuit School
of Theology, de Cambridge, onde também fez seu mestrado e doutorado
em Teologia. Trabalhou por dois anos junto ao Serviço Jesuíta aos Refugiados, em Nairóbi,
no Quênia. É o autor de vários livros, dentre os quais destacamos My
life with the saints (Loyola, 2006), que vendeu mais de 120 mil cópias
nos EUA. A obra recebeu o Prêmio Christopher de 2007, concedido por uma
grande organização cristã dos EUA, foi nomeado como um dos “melhores livros” de
2006 pela revista Publishers Weekly e também recebeu o prêmio de
primeiro lugar da Catholic Press Association. Seu livro mais recente é The
Jesuit guide to almost everything (HarperOne, 2010). Em português de
Portugal, publicou Torna-te aquilo que És: Da imitação à autenticidade
(Edições Paulinas, 2009). Martin também participa frequentemente em programas
da TV dos EUA, comentando sobre religião e espiritualidade.
Confira a
entrevista.
IHU On-Line
– Passados dez anos após os eventos de 11 de setembro, como o senhor analisa
essa tragédia? Em sua opinião, que aspectos são os mais importantes para
compreender esse episódio que marcou a história recente?
James Martin
– Na verdade, é bastante difícil analisar uma
tragédia como essas. Eu diria, entretanto, que nos dias e nas semanas depois do 11/9
parecia haver um sentimento de unidade nacional tremendo, quase palpável, mas
que se dissipou tão logo nós invadimos o Iraque, algo que mais ou menos
dividiu o país politicamente.
IHU On-Line
– Qual foi o papel da Igreja Católica dos EUA nos momentos posteriores à
tragédia? Quais foram as suas maiores contribuições e os seus maiores desafios?
James Martin
– Como havia muitos bombeiros e policiais que eram
católicos (esses dois grupos são compostos fortemente por católicos de
descendência irlandesa), a maior paróquia da cidade, por várias semanas, foi,
em essência, o Ground Zero. E a Igreja fez um excelente trabalho com
esses homens e mulheres, embora fosse principalmente em uma base ad hoc.
Além disso, houve literalmente milhares de funerais presididos por padres e
diáconos nos dias e nas semanas depois do 11/9. E, claro, a primeira
vítima “oficial” do desastre foi o Pe. Mychal Judge, OFM, um sacerdote franciscano
que era também o capelão do corpo de bombeiros. Ele correu para uma das torres
em chamas e perdeu a sua vida – um verdadeiro herói. Ele tem sido uma espécie
de ícone para o serviço abnegado prestado no 11 de setembro.
IHU On-Line
– A partir da sua experiência pessoal no 11 de setembro, o senhor afirmou, em
artigo na revista America, que “Deus é
como o bombeiro que corre em direção a um edifício em chamas para salvar
alguém”. Pode nos explicar melhor essa parábola?
James Martin
– Quando Jesus queria explicar algo difícil, como o
Reino de Deus, ele usava coisas simples da vida quotidiana – sementes, aves,
trigo, arbustos, árvores. Quando eu ouvi falar dos bombeiros que corriam para
prédios em chamas para salvar as pessoas (literalmente correndo contra aqueles
que estavam correndo para fugir), eu pensei nisso como uma poderosa imagem de
quanto Deus nos ama. Jesus nos amou tanto que morreu por nós; o bombeiro faz a
mesma coisa. Por isso, foi uma espécie de parábola – uma lição explicada não
apenas com princípios abstratos, mas com algo da nossa vida real.
IHU On-Line
– O senhor afirma que a sua experiência do 11 de setembro “não foi simplesmente
a de uma tragédia, mas também de ressurreição. Para mim, ela encarnou o
mistério cristão da cruz”. Como o mistério da cruz pode nos ajudar a superar
outras tragédias, sejam elas sociais (como a pobreza na América Latina) ou
pessoais e familiares?
James Martin
– Certamente, seria errado se eu sugerisse que o
sofrimento tem uma “resposta”. Mas eu vi, no 11/9, as sementes de uma
nova vida, particularmente nos atos de caridade que aconteceram depois dos
ataques. Mas esses tipos de “males morais” (aqueles que resultam de ações
humanas) são bastante diferentes dos desastres naturais, que são mais
inexplicáveis (a pobreza, claro, é uma espécie de mal moral e social). Mas em
cada caso pode haver um convite para experimentar Deus de novas maneiras (já
que, quando estamos vulneráveis, geralmente estamos mais abertos à ação de Deus
em nossas vidas) e também para lembrar que o sofrimento, como a história de
Jesus nos ensina, nunca tem a última palavra. Mais uma vez, porém, cada crente
precisa chegar à sua própria compreensão do mistério do sofrimento, um mistério
que não será respondido até que cheguemos a ver Deus face a face.
IHU On-Line
– O 11 de setembro também colocou em questão o diálogo inter-religioso,
especialmente a relação entre o Ocidente cristão e o Oriente muçulmano. Depois de 10
anos da tragédia, como é possível fortalecer esse diálogo e as relações entre
os “homens de boa vontade”?
James Martin
– Simplesmente ouvindo. Eu acho que a maioria das
denominações cristãs são muito boas na proclamação, mas não tão boas na escuta.
Algumas semanas atrás, por exemplo, eu fui em uma peregrinação à Terra Santa,
a Israel, e novamente me dei conta de quão pouco eu sabia sobre o judaísmo e o islã. Então, por que eu abriria a
minha boca e diria algo sobre o meu vizinho, antes de tê-lo ouvido? Ouvir vem
antes do diálogo.
IHU On-Line
– O senhor é autor do livro The Jesuit guide to almost everything. Como Santo Inácio de Loyola pode nos inspirar nos
desafios da vida espiritual e eclesial deste início do século XXI?
James Martin
– De muitas maneiras. Para começar, a
espiritualidade de Santo Inácio é flexível e adaptável. É claro que ela
está fundamentada em princípios cristãos, mas, para dar um exemplo, Inácio disse
que é errado fazer com que todos avancem pelo mesmo caminho. Deus se encontra
com você onde você está, e assim, portanto, o lugar onde você está é um lugar
para se encontrar com Deus – não importa quem você seja. Em segundo lugar, a
espiritualidade inaciana lembra as pessoas que Deus pode ser encontrado, como
jesuítas gostam de dizer, “em todas as coisas”. Isso significa que a
espiritualidade não se confina simplesmente ao interior das paredes de uma igreja.
Deus pode ser experimentado nas amizades, na família, nas relações de trabalho
(assim como no trabalho em si), na natureza, na música, na diversão e assim por
diante. E esse tipo de espiritualidade prática e de mente aberta é tão
relevante no século XXI como era quando foi explicada pela primeira vez, no
século XVI.
IHU On-Line
– Seu outro livro, My life with the saints, aborda a sua relação com
diversos santos, em formato de memórias espirituais da sua própria vida. Dentre
os escolhidos, dois deles são dos EUA, Thomas Merton e Dorothy Day. Que pontos importantes das vidas e
dos legados deles o senhor destacaria para os nossos leitores brasileiros?
James Martin
– Quando eu penso no Brasil, eu penso não só nas
grandes riquezas culturais, intelectuais e naturais do país, mas também no seu
engajamento com os problemas dos pobres. Dorothy Day, a fundadora do Movimento
Operário Católico [Catholic Worker Movement], foi a grande apóstola
norte-americana dos pobres, fundando dezenas de “casas de hospitalidade” para
homens e mulheres sem-teto. E ela favoreceu um tipo de ação política em que
alguém não só ajudava os pobres, mas também questionava as estruturas que os
mantinham pobres. Como D. Hélder Câmara disse uma vez: “Quando dou
comida aos pobres, me chamam de santo. Quando pergunto porque eles são pobres,
chamam-me de comunista”. Dorothy Day certamente concordaria com isso
(ela gostava de dizer que Jesus veio para confortar os aflitos e afligir os
confortados).
Merton poderia
ser visto como o grande apóstolo da vida interior [inner life], que é
algo que eu penso que todas as pessoas modernas (incluindo os brasileiros)
desejam. Todos nós temos aquela inquietação interior que só uma profunda
relação com Deus irá satisfazer; e todos nós desejamos nos tornar, como disse Merton,
os nossos “verdadeiros eus” [true selves], que nós somos diante de Deus.
Assim, esses dois norte-americanos têm muito a dizer ao Brasil – embora
nenhum deles falasse português!
IHU On-Line
– Em sua opinião, diante da sociedade tecnocientífica atual, quais são as
contribuições que a teologia cristã tem a dar? Como pensar Deus e o papel da
Igreja no contexto contemporâneo?
James Martin
– A principal contribuição é o lembrete de que o
núcleo de qualquer desenvolvimento tecnológico ou científico deve ser a pessoa
humana. Um dos grandes sucessos do papado de João Paulo II, creio eu,
foi a sua ênfase constante sobre a dignidade do ser humano. Facilmente se
esquece que, em nossa cultura tecnocientífica, tende-se a celebrar qualquer
avanço tecnológico antes de perguntar se ele vai aumentar ou diminuir a
dignidade humana, aumentar ou diminuir a comunidade e aumentar ou diminuir
aqueles que estão nos degraus mais baixos da escada econômica.
IHU On-Line
– Como editor de cultura da revista America, em sua opinião, como a teologia
pode dialogar com a cultura e o mundo das artes? E como a cultura pode
despertar o desejo pelo sagrado?
James Martin
– A teologia deve dialogar com a cultura porque ela
faz parte da experiência humana. Afinal, um dos grandes documentos do Concílio
Vaticano II era A Igreja no Mundo Moderno [Gaudium et
Spes]. Não acima dele, ou separado dele; mas nele. Por isso, a Igreja
deve se envolver com a cultura – até mesmo com a cultura pop –, se deseja
comunicar a mensagem do Evangelho aos novos grupos de crentes.
Quanto à
segunda questão, a cultura e a arte naturalmente são orientadas ao sagrado.
Porque as maiores obras de arte são aquelas que levantam as questões
essencialmente religiosas (quem sou eu? Por que estou aqui? Por que existe
sofrimento?). Até mesmo a cultura pop – cantores/as, músicos/as, artistas,
atores, atrizes, diretores/as – lidam com essas questões. O convite para a
Igreja é o de reconhecer que esse questionamento continua até mesmo em um nível
pop: na televisão, nos filmes, na música popular. Tendemos a esquecer disso por
nossa conta e risco, e assim, às vezes, não somos capazes de reconhecer que uma
música pop ou um filme popular podem falar às pessoas em níveis às vezes
bastante profundos.
IHU On-Line
– Em 2012, comemoraremos os 50 anos de convocação do Vaticano II e os 40 anos da publicação do livro Teologia
da libertação. Perspectivas, de Gustavo Gutiérrez. Como essas duas datas podem
iluminar a caminhada da Igreja no contexto atual?
James Martin
– A Igreja, penso eu, ainda está digerindo os
efeitos secundários do Concílio Vaticano II, que um comentarista chamou
de o maior evento religioso do século XX. Mesmo agora, há um debate feroz entre
os teólogos sobre as questões daquilo que é chamado de “continuidade” e
“descontinuidade”. Em resumo, a questão é: o Vaticano II representa uma
ruptura com o passado ou uma continuação? Uma versão ainda mais simples da
questão poderia ser dita desta forma: o que aconteceu no Vaticano II?
Questões relacionadas poderiam ser: qual é o lugar da tradição em meio à
mudança? Ou a relação entre o aggiornamento (abertura [atualização]) e o
ressourcement (voltar às fontes)? Pode levar algum tempo até que a
Igreja reflita sobre essas questões, assim como a Igreja levou muitos anos para
digerir o Concílio Vaticano I.
O mesmo pode
ser dito com relação à monumental obra de Gustavo Gutiérrez. Houve uma
grande quantidade de críticas fomentadas contra a teologia da libertação, mas eu acho que ela é uma
das contribuições mais significativas dos teólogos do século XX para a vida da
Igreja. Eu não sou um teólogo profissional, mas posso dizer que a teologia da
libertação – que eu definiria como o convite para ver o Evangelho a partir dos
olhos dos pobres para compreender o desejo de Cristo para que todos vivam em um
mundo tão justo quanto possível – tem sido de grande utilidade no meu próprio
trabalho com os pobres e na minha própria vida espiritual. Mas eu acho que a
Igreja está digerindo tudo isso também. Ambos são refeições muito ricas!
Nota:
O Pe.
Martin gravou um vídeo especial intitulado Uma Oração no Ground Zero,
no qual ele retorna aos locais em que ele e seus coirmãos jesuítas ajudaram as
vítimas do 11 de setembro. O vídeo está disponível aqui
(em inglês).
(Por Moisés
Sbardelott)
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