[IHU]
18/9/2011
“Não se pode
responsabilizar nem a Igreja católica, nem o Santo Padre, nem os
membros da Cúria por fatos isolados, realizados em diferentes partes do mundo,
por pessoas com capacidade suficiente para ter responsabilidade penal e onde
existem órgãos judiciais onde podem ser julgados”. Rafael Navarro Valls,
secretário-geral da Real Academia de Jurisprudência e Legislação,
analisa para o RD a demanda apresentada ao Tribunal de Haia por
um grupo de vítimas de abusos sexuais contra Bento XVI e os cardeais Sodano,
Bertone e Levada. Para Navarro Valls, “dá a impressão de
que algumas das vítimas desses graves crimes estão sendo juridicamente
manipuladas por adversários da Igreja católica”. Especialmente injusto no caso
de Bento XVI, que “foi o Pontífice que maiores esforços fez para a
prevenção e o castigo dos pederastas clérigos ou religiosos”.
A entrevista
é de Jesús Bastante e está publicada no sítio Religión Digital,
16-09-2011. A tradução é do Cepat.
Eis a
entrevista.
Existe base
jurídica para que se denuncie o Papa e os cardeais Sodano, Bertone e Levada no
Tribunal de Haia?
Primeiramente,
a expressão “Tribunal de Haia” é ambígua, pois é uma denominação que se utiliza
tecnicamente para designar vários tribunais internacionais que têm (ou tiveram)
sua sede em Haia: Tribunal Permanente de Arbitragem, Tribunal
Internacional de Justiça, Tribunal Penal Internacional para a ex-Iugoslávia, Tribunal Internacional para a Ruanda
ou a Corte Penal Internacional (CPI). Presumo que se refira a esta
última, criada pelo Estatuto de Roma de 1998. Entrou em vigor em julho
de 2002, de modo que só pode julgar crimes posteriores a essa data.
A CPI
tem competência diante dos Estados que tenham ratificado o mencionado Estatuto
de Roma. Que eu saiba, nem a Santa Sé nem o Vaticano estão entre os Estados
que o fizeram. Deste modo, essa Corte não tem competência nem sobre o Santo
Padre nem sobre outros cidadãos com nacionalidade vaticana (os cardeais a
que alude). A mesma coisa ocorre com os Estados Unidos ou a China que, ao não
ratificá-lo, suas autoridades estão excluídas do raio de ação da competência
desse Tribunal. Apenas no caso de que o Conselho de Segurança
da ONU julgasse que há um perigo para a paz e a segurança internacional
(Capítulo VII da Carta das Nações Unidas) – o que, naturalmente, não acontece
neste caso – poderia instar a Corte Penal Internacional a investigar e
ajuizar o ocorrido em um Estado que não fosse parte do Estatuto de Roma.
No caso do genocídio de Darfur, o Sudão não fazia parte do Estatuto,
contudo, no dia 31 de março de 2005, o Conselho de Segurança da ONU
adotou a Resolução 1593 pela qual remeteu à Corte a situação.
Por último,
uma reflexão sobre a gravidade suficiente como pressuposto de admissibilidade
das causas pela CPI. O artigo 1 do Estatuto estabelece que a Corte
julgará os “casos mais graves de transcendência internacional”. Sem tirar a
importância dos fatos que são denunciados, que caso tenham acontecido merecerão
a correspondente condenação penal, a Corte Penal Internacional se
constituiu com outra finalidade que vai além de fatos cometidos supostamente
por clérigos de diferentes nacionalidades em diferentes países. Basta fazer uma
revisão dos casos que a CPI ajuizou para ver que o âmbito da atuação da Corte
é outro bem diferente ao que aqui contemplamos.
Pode-se
considerar os abusos sexuais crimes de lesa humanidade?
A matéria
que é objeto de denúncia (pederastia exercida em diferentes áreas geográficas)
muito forçadamente poderia entrar no raio de ação dos crimes de lesa humanidade
enumerados no art. 7 do Estatuto da Corte. Não porque lhe falte
gravidade, mas porque esse artigo entende por crimes de lesa humanidade
determinados atos “que são cometidos como parte de um ataque generalizado ou
sistemático contra uma população civil e com o conhecimento de tal ataque”.
Entre eles, se incluem alguns crimes sexuais, como a prostituição forçada, a
gravidez ou a esterilização forçada ou “outros de gravidade similar”. O exemplo
mais típico foram as gravidezes em massa forçados de uma etnia sobre outra no
marco de conflitos armados. Contudo, aqui se trata de crimes supostamente
cometidos por clérigos de diferentes nacionalidades em diversos países. Falta o
que Cuno Tarfusser, juiz da CPI, acaba de chamar de
“elemento contextual”, ou seja, que esses atos tivessem sido cometidos em
consequência de um ataque à população civil, de caráter sistemático e
organizados por uma “política organizativa superior”.
De 2002 para
cá, quando a CPI entrou em funcionamento, foram recebidas cerca de 8.000
denúncias de todo tipo. Não me consta que exista processo aberto por pederastia
com esse contexto. Não se pode responsabilizar nem a Igreja católica, nem o Santo
Padre, nem os membros da Cúria por fatos isolados, realizados em diferentes
partes do mundo, por pessoas com capacidade suficiente para ter
responsabilidade penal e onde existem órgãos judiciais capazes de julgá-los. Em
definitiva, não estamos falando de uma responsabilidade penal coletiva da
Igreja católica, mas individual de cada uma das pessoas que, em seu caso,
tenham realizado estes fatos.
Assim, pois,
é o direito penal de cada um dos países afetados quem tem competência, pessoal
e territorial. Não esqueçamos que a Corte Penal Internacional tem
caráter “complementar” às jurisdições nacionais (art. 1 Estatuto CPI). Por isso
mesmo, o Estatuto dispõe que não se admitirá uma questão penal quando “o
assunto seja objeto de uma investigação ou ajuizamento no Estado que tem
jurisdição sobre ele, salvo quando este não estiver disposto a levar a cabo a
investigação ou o ajuizamento ou não possa realmente fazê-lo” (art. 17).
Que opinião
lhe merece, como jurista e como católico, a iniciativa destas vítimas?
Me dá a
impressão de que algumas das vítimas desses graves crimes estão sendo
juridicamente manipuladas por adversários da Igreja católica. Não se trata de
menosprezar sua dor e a gravidade do crime. Trata-se de que uns e outros encontrem
seu adequado curso – também jurídico – nas jurisdições competentes. Qualquer
manipulação acaba, no longo prazo, sendo desmascarada, sobretudo quando é
acompanhada de ampla cobertura da mídia. O direito é um instrumento muito
sensível para tentativas deste tipo. Reage de modo contundente, rechaçando
aquilo que não é justo ou foi superdimensionado em suas pretensões de
competência. Tenhamos confiança na justiça penal dos países nos quais esses
dolorosos fatos aconteceram.
Quanto ao
demais, dá o que pensar o fato de que a demanda seja apresentada imediatamente
depois desse positivo e massivo referendo da figura de Bento XVI,
realizado por dois milhões de jovens na JMJ de Madri ,e
imediatamente antes de uma difícil viagem do Papa à Alemanha.
Esse
Tribunal tem competência sobre a Santa Sé?
Não, como já
vimos. Além disso, a jurisprudência norte-americana, que já se debateu com a
possível “comunicação ou conexão de responsabilidade entre as dioceses e/ou os
membros do clero envolvidos e a Santa Sé”, se pronunciou de forma negativa
sobre esta conexão. (Doe v. Holy See, ano 2009, Nono Circuito de Apelação,
recurso ao Tribunal Supremo negado.) Também outro Tribunal de Haia, a Corte
Internacional de Justiça da ONU, não teria competência, não somente porque
a Santa Sé não é membro da ONU (apenas observador permanente),
mas porque, além disso, neste caso, não pode agir através de grupos de pessoas,
mas através de Estados membros (art. 34.1 da Corte Internacional de Justiça da
ONU).
É justo
envolver o Papa nestes crimes, quando se destacou como o grande “gari” contra a
pederastia?
Não somente
é injusto, como, além disso, é um absurdo jurídico. Os culpados são os
delinquentes, não as autoridades que lutam para erradicar esses crimes. Como
você disse, o caso de Bento XVI é especialmente exemplar: foi o
Pontífice que maiores esforços fez para a prevenção e o castigo dos pederastas
clérigos ou religiosos. Por certo, um número exíguo quando comparado com a
grande maioria do clero ou religiosos de vida reta e irrepreensível.
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