[vatican]
Preâmbulo
1. A doutrina da justificação teve importância central para a Reforma luterana do século XVI. Era considerada o "primeiro e principal artigo" [1] e simultaneamente "regente e juiz sobre todas as partes da doutrina cristã" [2]. A doutrina da justificação foi particularmente sustentada e defendida em sua expressão reformatória e sua relevância especial face à teologia e à Igreja católica romana de então as quais, por sua vez, sustentavam e defendiam uma doutrina da justificação com características diferentes. Aqui, segundo a prospectiva reformatória, residia o cerne de todas as confrontações. Elas resultaram em condenações doutrinais nos escritos confessionais luteranos [3] e no Concílio de Trento da Igreja católica romana. Essas condenações vigoram até hoje e têm efeito divisor entre as Igrejas.
2. Para a tradição luterana a doutrina da justificação conservou essa
relevância especial. Por isso, desde o início, ela também ocupou um lugar
importante no diálogo oficial luterano-católico.
3. Remetemos em especial aos relatórios "O evangelho e a
Igreja" (1972) [4] e "Igreja e justificação" (1994) [5], da
Comissão Mista católica romana/evangélica luterana internacional, ao relatório
"Justificação pela fé" (1983) [6], do diálogo católico-luterano nos
Estados Unidos, e ao estudo "Condenações doutrinais - divisoras das
Igrejas?" (1986) [7], do Grupo de Trabalho Ecumênico de teólogos
evangélicos e católicos na Alemanha. Alguns destes relatórios de diálogo obtiveram
recepção oficial. Exemplo importante constitui o posicionamento compromissivo
emitido pela Igreja Evangélico-Luterana Unida da Alemanha, juntamente com as
outras Igrejas pertencentes à Igreja Evangélica na Alemanha, com o máximo grau
possível de reconhecimento eclesiástico do estudo sobre as condenações
doutrinais (1994) [8].
4. Todos os relatórios de diálogo citados, bem como os posicionamentos a
seu respeito, revelam em seu tratamento da doutrina da justificação, alto grau
de orientação e juízos comuns. Por isso está na hora de fazer um balanço e de
resumir os resultados dos diálogos sobre a justificação, de modo a informar
nossas Igrejas, com a devida precisão e brevidade, sobre o resultado geral
desse diálogo e de dar-lhes, ao mesmo tempo, condições de se posicionarem de
modo compromissivo a respeito.
5. É isso o que pretende a presente Declaração Conjunta. Ela quer
mostrar que, com base no diálogo, as Igrejas luteranas signatárias e a Igreja
católica romana [9] estão agora em condições de articular uma compreensão comum
de nossa justificação pela graça de Deus na fé em Cristo. Esta Declaração Comum
(DC) não contém tudo o que é ensinado sobre justificação em cada uma das
Igrejas, mas abarca um consenso em verdades básicas da doutrina da justificação
e mostra que os desdobramentos distintos ainda existentes não constituem mais
motivo de condenações doutrinais.
6. Nossa DC não é uma exposição nova e independente, ao lado dos
relatórios de diálogo e documentos já existentes, nem pretende, muito menos, substitui-los.
Ela se reporta, antes, a esses textos e sua argumentação.
7. Assim como os próprios diálogos, também esta DC se baseia na
convicção de que uma superação de questões controversas e de condenações
doutrinárias até agora vigentes não minimiza as divisões e condenações nem
desautoriza o passado da própria Igreja. Repousa, porém, sobre a convicção de
que no decorrer da história nossas Igrejas chegam a novas percepções e de que
ocorrem desdobramentos que não só lhes permitem, mas ao mesmo tempo também
exigem, que as questões e condenações divisoras sejam examinadas e vistas sob
uma nova luz.
1. A mensagem bíblica da justificação
8. Fomos
levados a essas novas percepções por nossa maneira conjunta de escutar a
palavra de Deus nas Escrituras Sagradas. Juntos ouvimos o evangelho de que
"Deus amou o mundo de tal maneira que deu Seu Filho unigênito, para que
todo o que nele crê não pereça, mas tenha a vida eterna" (Jo 3,
16). Esta Boa Nova é exposta de diferentes maneiras nas Escrituras Sagradas. No
Antigo Testamento ouvimos a palavra de Deus sobre a pecaminosidade humana (cf. Sl
51, 1-5; Dn 9, 5 s.; Ecl 8, 9 s.; Esd 9,
6 s.) e sobre a desobediência humana (cf. Gn 3, 1-19; Ne 9,
16 s.26), bem como sobre a justiça (cf. Is 46, 13; 51, 5-8; 56, 1
[cf. 53, 11]; Jr 9, 24) e o juízo de Deus (cf. Ecl 12, 14; Sl
9, 5 s.; 76, 7-9).
9. No Novo Testamento os temas "justiça" e
"justificação" são abordados de maneira diferenciada em Mateus (cf.
5, 10; 6, 33; 21, 32), em João (cf. 16, 8-11), na Epístola aos Hebreus (cf. 5,
13; 10, 37 s.) e na Epístola de Tiago (cf. 2, 14-26). [10] Também nas
cartas paulinas o dom da salvação é descrito de diferentes modos, entre outros
como "libertação para a liberdade" (Gl 5, 1-13; cf. Rm
6, 7), como "reconciliação com Deus" (2 Cor 5, 18-21; cf. Rm
5, 11), como "paz com Deus" (Rm 5, 1), como "nova
criação" (2 Cor 5, 17), como "vida para Deus em Cristo
Jesus" (Rm 6, 11-23) ou como "santificação em
Cristo Jesus" (cf. 1 Cor 1, 2; 1, 30;
2 Cor 1, 1). Salienta-se entre esses conceitos a descrição como
"justificação" do pecador pela graça de Deus na fé (cf. Rm 3,
23-25), que foi destacada de maneira especial no tempo da Reforma.
10. Paulo descreve o evangelho como poder de Deus para a salvação do ser
humano caído sob o poder do pecado: como mensagem que proclama a
"justiça de Deus de fé em fé" (Rm 1, 16 s.) e que
presenteia a "justificação" (Rm 3, 21-31). Ele anuncia Cristo
como "nossa justiça" (1 Cor 1, 30) ao aplicar ao Senhor
ressuscitado o que Jeremias disse acerca do próprio Deus (cf. 23, 6). Na morte
e na ressurreição de Cristo estão enraizadas todas as dimensões de sua obra
redentora, porque "nosso Senhor foi entregue por causa de nossas
transgressões e ressuscitou por causa de nossa justificação" (Rm 4,
25). Todos os seres humanos necessitam da justiça de Deus, "pois todos
pecaram e carecem da glória de Deus" (Rm 3, 23; cf. Rm 1,
18-3.22; 11, 32; Gl 3, 22). Nas cartas aos Gálatas (cf. 3, 6) e aos
Romanos (cf. 4, 3-9) Paulo entende a fé de Abraão (cf. Gn 15, 6) como fé
no Deus que justifica o pecador (cf. Rm 4, 5) e invoca o testemunho do
Antigo Testamento para sublinhar seu evangelho de que aquela justiça será
imputada a todos os que, como Abraão, confiam na promessa de Deus. "O
justo viverá pela fé" (Hab 2, 4; cf. Gl 3, 11; Rm 1,
17). Nas cartas paulinas a justiça de Deus é simultaneamente o poder de Deus
para cada crente (cf. Rm 1, 16 s.). Em Cristo ele faz com que ela
seja nossa justiça (cf. 2 Cor 5, 21). Recebemos a justificação por
Cristo Jesus, "a quem Deus propôs, em seu sangue, como propiciação
[eficaz] mediante a fé" (Rm 3, 25; cf. 3, 21-28). "Porque pela
graça sois salvos, mediante a fé; e isto não vem de vós, é dom de Deus; não de
obras" (Ef 2, 8 s.).
11. Justificação é perdão dos pecados (cf. Rm 3, 23-25; At
13, 39; Lc 18, 14), libertação do poder dominante do pecado e da morte
(cf. Rm 5, 12-21) e da maldição da lei (cf. Gl 3, 10-14). Ela
significa acolhida na comunhão com Deus, já agora, mas de forma plena no reino
vindouro de Deus (cf. Rm 5, 1 s.). Une com Cristo e sua morte e
ressurreição (cf. Rm 6, 5). Acontece no recebimento do Espírito Santo no
batismo como incorporação no corpo uno (cf. Rm 8, 1 s., 9 s.; 1
Cor 12, 12 s.). Tudo isso provém somente de Deus, por amor de Cristo,
por graça, pela fé no "evangelho de Deus com respeito a seu Filho"
(cf. Rm 1, 1-3).
12. As pessoas justificadas vivem a partir da fé que provém da palavra
de Cristo (cf. Rm 10, 17) e que atua no amor (cf. Gl 5, 6), o
qual é fruto do Espírito (cf. Gl 5, 22 s.). Mas, visto que poderes
e ambições atribulam as pessoas crentes por fora e por dentro (cf. Rm 8,
35-39; Gl 5, 16-21) e elas caem em pecado (cf. 1 Jo 1, 8.10),
precisam repetidamente ouvir as promissões de Deus, confessar seus pecados (cf.
1 Jo 1, 9), participar do corpo e do sangue de Cristo e ser exortadas a
viver uma vida justa em conformidade com a vontade de Deus. Por isso o apóstolo
diz às pessoas justificadas: "Desenvolvei vossa salvação com temor e
tremor; porque Deus é quem efetua em vós tanto o querer quanto o realizar, segundo
a sua vontade" (Fl 2, 12 s.). Permanece, porém, a Boa
Nova: "Já nenhuma condenação há para os que estão em Cristo
Jesus" (Rm 8, 1) e nos quais Cristo vive (cf. Gl 2, 20). Por
intermédio da obra justa de Cristo haverá justificação que dá vida para todos
os seres humanos (cf. Rm 5, 18).
2. A doutrina da justificação como problema ecumênico
13. No século XVI, a interpretação e aplicação contrastantes da mensagem bíblica da justificação constituíram uma das causas principais da divisão da Igreja ocidental, o que também se expressou em condenações doutrinais. Por isso, para superar a divisão na Igreja, uma compreensão comum da justificação é fundamental e indispensável. Acolhendo resultados da pesquisa bíblica e percepções da história da teologia e dos dogmas, desenvolveu-se no diálogo ecumênico desde o Concílio Vaticano II uma nítida aproximação no que diz respeito à doutrina da justificação, de modo que a presente DC pode formular um consenso em verdades básicas da doutrina da justificação a cuja luz as correspondentes condenações doutrinais do século XVI não mais se aplicam ao parceiro de hoje.
3. A compreensão comum da justificação
14. O
ouvir comum da Boa Nova proclamada nas Sagradas Escrituras e, não por último,
os diálogos teológicos de anos recentes entre as Igrejas luteranas e a Igreja
católica romana levaram a uma concordância na compreensão da justificação. Ela
abarca um consenso nas verdades básicas; os desdobramentos distintos nas
afirmações específicas são compatíveis com ela.
15. É nossa fé comum que a justificação é obra do Deus uno e
trino. O Pai enviou seu Filho ao mundo para a salvação dos pecadores. A
encarnação, a morte e a ressurreição de Cristo são fundamento e pressuposto da
justificação. Por isso justificação significa que o próprio Cristo é nossa
justiça, da qual nos tornamos participantes através do Espírito Santo segundo a
vontade do Pai. Confessamos juntos: somente por graça, na fé na obra
salvífica de Cristo, e não por causa de nosso mérito, somos aceitos por Deus e
recebemos o Espírito Santo, que nos renova os corações e nos capacita e chama
para as boas obras [11].
16. Todas as pessoas são chamadas por Deus para a salvação em Cristo.
Somos justificados somente por Cristo ao recebermos essa salvação na fé. A
própria fé, por sua vez, é presente de Deus através do Espírito Santo, que atua
na palavra e nos sacramentos na comunhão dos crentes e que, ao mesmo tempo,
conduz os crentes àquela renovação de sua vida que Deus consuma na vida eterna.
17. Compartilhamos a convicção de que a mensagem da justificação nos
remete de forma especial ao centro de testemunho neotestamentário da ação
salvífica de Deus em Cristo: ela nos diz que como pecadores devemos nossa
vida nova unicamente à misericórdia perdoadora e renovadora de Deus,
misericórdia esta com a qual só podemos ser presenteados e que só podemos
receber na fé, mas que nunca - de qualquer forma que seja - podemos fazer por
merecer.
18. Por isso a doutrina da justificação, que assume e desdobra
essa mensagem, não é apenas um aspecto parcial da doutrina cristã. Ela se
encontra numa relação essencial com todas as verdades da fé, as quais devem ser
vistas numa conexão interna entre si. Ela é um critério indispensável que visa
orientar toda a doutrina e prática da Igreja incessantemente para Cristo.
Quando luteranos acentuam a importância singular desse critério, não negam a
conexão e a importância de todas as verdades da fé. Quando católicos se sentem
comprometidos com vários critérios, não negam a função especial da mensagem da
justificação. Luteranos e católicos compartilham o alvo comum de confessar em
tudo a Cristo, ao qual unicamente importa confiar, acima de todas as coisas,
como mediador uno (cf. 1 Tm 2, 5 s.) pelo qual Deus, no Espírito
Santo, dá a si mesmo e derrama seus dons renovadores.
4. O desdobramento da compreensão comum da justificação
4.1. Incapacidade e pecado humanos face à justificação
19.
Confessamos juntos que o ser humano, no concernente à sua salvação, depende
completamente da graça salvadora de Deus. A liberdade que ele possui para com
as pessoas e coisas do mundo não é liberdade com relação à salvação. Isto quer
dizer que, como pecador, ele se encontra sob o juízo de Deus, sendo por si só
incapaz de se voltar a Deus em busca de salvamento, ou de merecer sua
justificação perante Deus, ou de alcançar a salvação pela própria força.
Justificação acontece somente por graça. Porque católicos e luteranos confessam
isso conjuntamente, deve-se dizer:
20. Quando católicos dizem que o ser humano "coopera"
no preparo e na aceitação da justificação por assentir à ação justificadora de
Deus, eles vêem mesmo nesse assentimento pessoal um efeito da graça, e não uma
ação humana a partir de forças próprias.
21. Segundo a concepção luterana o ser humano é incapaz de
cooperar em sua salvação, porque como pecador ele resiste ativamente a Deus e à
sua ação salvadora. Luteranos não negam que o ser humano possa rejeitar a
atuação da graça. Quando sublinham que o ser humano pode tão-somente receber (mere
passive) a justificação, rejeitam com isso qualquer possibilidade de uma
contribuição própria do ser humano para sua justificação, mas não negam sua
plena participação pessoal na fé, que é operada pela própria palavra de Deus.
4.2. Justificação como perdão de pecados e ato de tornar justo
22.
Confessamos juntos que Deus, por graça, perdoa ao ser humano o pecado, e o
liberta ao mesmo tempo do poder escravizador do pecado em sua vida e lhe
presenteia a nova vida em Cristo. Quando o ser humano tem parte em Cristo na
fé, Deus não lhe imputa seu pecado e, pelo Espírito Santo, opera nele um amor
ativo. Ambos os aspectos da ação graciosa de Deus não devem ser separados. Eles
estão correlacionados de tal maneira que o ser humano, na fé, é unido com
Cristo que em sua pessoa é nossa justiça (cf. 1 Cor 1, 30): tanto
o perdão dos pecados quanto a presença santificadora de Deus. Porque católicos
e luteranos confessam isso conjuntamente, deve-se dizer:
23. Quando luteranos enfatizam que a justiça de Cristo é nossa
justiça, querem sobretudo assegurar que ao pecador, pelo anúncio do perdão, é
representada a justiça perante Deus em Cristo e que sua vida é renovada somente
em união com Cristo. Quando dizem que a graça de Deus é amor que perdoa ("favor
de Deus") [12], não negam com isso a renovação da vida do cristão, mas
querem expressar que a justificação permanece livre de cooperação humana,
tampouco dependendo do efeito renovador de vida que a graça produz no ser
humano.
24. Quando católicos enfatizam que ao crente é presenteada a
renovação da pessoa interior pelo recebimento da graça, [13] querem assegurar
que a graça perdoadora de Deus sempre está ligada ao presente de uma nova vida,
que no Espírito Santo se torna efetiva em amor ativo; mas não negam com isso
que o dom da graça divina na justificação permanece independente de cooperação
humana.
4.3. Justificação por fé e por graça
25. Confessamos
juntos que o pecador é justificado pela fé na ação salvífica de Deus em Cristo;
essa salvação lhe é presenteada pelo Espírito Santo no batismo como fundamento
de toda a sua vida cristã. Na fé justificadora o ser humano confia na promessa
graciosa de Deus; nessa fé estão compreendidos a esperança em Deus e o amor a
Ele. Essa fé atua pelo amor; por isso o cristão não pode e não deve ficar sem
obras. Mas tudo o que, no ser humano, precede ou se segue ao livre presente da
fé não é fundamento da justificação nem a faz merecer.
26. Segundo a compreensão luterana, Deus justifica o pecador somente na
fé (sola fide). Na fé o ser humano confia inteiramente em seu Criador e
Redentor e está assim em comunhão com ele. Deus mesmo é quem opera a fé ao
produzir tal confiança por sua palavra criadora. Porque essa ação divina
constitui uma nova criação, afeta todas as dimensões da pessoa e conduz a uma
vida em esperança e amor. Assim, na doutrina da "justificação somente pela
fé", a renovação da conduta de vida que necessariamente se segue à
justificação, e sem a qual não pode haver fé, é distinguida da justificação,
mas não é separada dela. Com isso é indicado, antes, o fundamento do qual
provém tal renovação. Do amor de Deus, que é presenteado ao ser humano na
justificação, provém a renovação da vida. A justificação e a renovação estão
ligadas pelo Cristo presente na fé.
27. Também segundo a compreensão católica a fé é fundamental para
a justificação, pois sem fé não pode haver justificação. Como ouvinte da
palavra e crente o ser humano é justificado por meio do batismo. A justificação
do pecador é perdão dos pecados e ato que torna justo através da graça
justificadora, que nos torna filhos e filhas de Deus. Na justificação as
pessoas justificadas recebem de Cristo fé, esperança e amor e são assim
acolhidas na comunhão com Ele. [14] Essa nova relação pessoal com Deus se baseia
inteiramente na graciosidade divina e fica sempre dependente da atuação
criadora de salvação do Deus gracioso, que permanece fiel a si mesmo e no qual
o ser humano pode por isso confiar. Por esta razão a graça justificadora nunca
se converte em posse do ser humano, à qual ele pudesse apelar diante de Deus.
Quando, segundo a compreensão católica, se acentua a renovação da vida através
da graça justificadora, essa renovação em fé, esperança e amor sempre depende
da graça inescrutável de Deus e não representa qualquer contribuição para a
justificação da qual pudéssemos orgulhar-nos diante de Deus (cf. Rm 3,
27).
4.4. A pessoa justificada como pecadora
28. Confessamos juntos que no batismo o Espírito Santo une a pessoa com
Cristo, a justifica e realmente a renova. Não obstante, a pessoa justificada
durante toda a vida permanece incessantemente dependente da graça de Deus que
justifica de modo incondicional. Também ela está continuamente exposta ao poder
do pecado e suas investidas (cf. Rm 6, 12-14), não estando isenta da
luta vitalícia contra a oposição a Deus em termos de cobiça egoísta do velho
Adão (cf. Gl 5, 16; Rm 7, 7.10). Também a pessoa justificada
precisa pedir, como no Pai Nosso, a cada dia, o perdão de Deus (cf. Mt 6,
12; 1 Jo 1, 9), é chamada constantemente à conversão e ao arrependimento
e recebe continuamente o perdão.
29. Luteranos entendem isso no sentido de que a pessoa cristã é
"ao mesmo tempo justa e pecadora": ela é totalmente justa
porque Deus, por palavra e sacramento, lhe perdoa o pecado e lhe concede a
justiça de Cristo, da qual ela se apropria pela fé e a qual em Cristo a torna
justa diante de Deus. Olhando, porém, para si mesma através da lei, ela
reconhece que continua ao mesmo tempo totalmente pecadora, que o pecado ainda
habita nela (cf. 1 Jo 1, 8; Rm 7, 17.20): porque
reiteradamente confia em falsos deuses e não ama a Deus com aquele amor
indiviso que Deus como seu criador dela exige (cf. Dt 6, 5; Mt 22,
36-40). Essa oposição a Deus é, como tal, verdadeiramente pecado. Não obstante,
graças ao mérito de Cristo, o poder escravizante do pecado está rompido:
já não é pecado que "domina" a pessoa cristã por estar
"dominado" por Cristo, com o qual a pessoa justificada está unida na
fé; assim a pessoa cristã, enquanto vive na terra, pode ao menos em parte viver
uma vida em justiça. E, a despeito do pecado, não está mais separada de Deus,
porque no retorno diário ao batismo ela, que renasceu pelo batismo e pelo
Espírito Santo, tem seu pecado perdoado, de sorte que seu pecado já não lhe
acarreta condenação e morte eterna. [15] Portanto, quando luteranos dizem que a
pessoa justificada é também pecadora e que sua oposição a Deus é
verdadeiramente pecado, não negam que, a despeito do pecado, ela está
inseparada de Deus em Cristo e que seu pecado é pecado dominado. Neste último
aspecto estão em concordância com os católicos romanos, apesar das diferenças
na compreensão do pecado da pessoa justificada.
30. Segundo a concepção católica, a graça de Jesus Cristo
concedida no batismo apaga tudo o que é "realmente" pecado, o que é
"digno de condenação" (Rm 8, 1),[16] mas que permanece na
pessoa uma inclinação (concupiscência) proveniente do pecado e tendente ao
pecado. Uma vez que, conforme a convicção católica, o surgimento dos pecados
humanos sempre implica um elemento pessoal, e como este elemento falta naquela
inclinação contrária a Deus, católicos não vêem nela pecado em sentido
autêntico. Com isso não querem negar que essa inclinação não corresponde ao
desígnio original de Deus para a humanidade nem que é objetivamente oposição a
Deus e que permanece objeto de luta vitalícia; em gratidão pela redenção por
intermédio de Cristo querem destacar que a inclinação contrária a Deus não
merece o castigo de morte eterna [17] e não separa a pessoa justificada de
Deus. Quando, porém, a pessoa justificada se separa voluntariamente de Deus,
não basta voltar a observar os mandamentos, mas ela precisa receber, no
sacramento da reconciliação, perdão e paz pela palavra do perdão que lhe é
conferida por força da obra reconciliadora de Deus em Cristo.
4.5. Lei e evangelho
31. Confessamos juntos que o ser humano é justificado na fé no
evangelho "independentemente de obras da lei" (Rm 3, 28).
Cristo cumpriu a lei e, por sua morte e ressurreição, a superou como caminho
para a salvação. Confessamos ao mesmo tempo que os mandamentos de Deus
permanecem em vigor para a pessoa justificada e que Cristo, em sua palavra e
sua vida, expressa a vontade de Deus, que constitui padrão de conduta também
para a pessoa justificada.
32. Os luteranos sustentam que a distinção e a correta correlação
de lei e evangelho é essencial para a compreensão da justificação. A lei, em
seu uso teológico, é exigência e acusação às quais está sujeita durante a vida
inteira toda pessoa, também pessoa cristã, na medida em que é pecadora; e a lei
põe a descoberto seu pecado para que na fé no evangelho, ela se volte
inteiramente para a misericórdia de Deus em Cristo, a qual unicamente a
justifica.
33. Uma vez que a lei como caminho de salvação foi cumprida e superada
pelo evangelho, católicos podem dizer que Cristo não é um legislador à maneira
de Moisés. Quando católicos acentuam que a pessoa justificada é obrigada a
observar os mandamentos de Deus, não negam com isso que a graça da vida eterna
é misericordiosamente prometida aos filhos e filhas de Deus por Jesus Cristo
[18].
4.6. Certeza de salvação
34.
Confessamos juntos que as pessoas crentes podem
confiar na misericórdia e nas promissões de Deus. Também em
face de sua própria fraqueza e de muitas ameaças para sua fé, podem basear-se -
graças à morte e ressurreição de Cristo - na promessa eficaz da graça de Deus
em palavra e sacramento e, assim, ter certeza desta graça.
35. Isto foi acentuado de maneira especial pelos reformadores: em
meio à tribulação a pessoa crente não deve olhar para si mesma, mas
inteiramente para Cristo e confiar somente nele. Assim, na confiança na
promissão de Deus, ela tem certeza de sua salvação, mesmo que, olhando para si
mesma, nunca esteja segura.
36. Católicos podem compartilhar da preocupação dos reformadores
de basear a fé na realidade objetiva da promessa de Cristo, desconsiderando a
própria experiência e confiando somente na palavra promitente de Cristo (cf. Mt
16, 19; 18, 18). Com o Concílio Vaticano II os católicos sustentam:
crer significa confiar-se inteiramente a Deus, [19] que nos liberta das trevas
do pecado e da morte e nos desperta para a vida eterna. [20] Neste sentido não
se pode crer em Deus e, ao mesmo tempo, não considerar confiável a promessa
divina. Ninguém deve duvidar da misericórdia de Deus e do mérito de Cristo. Mas
toda pessoa pode estar preocupada com sua salvação quando olha para suas
próprias fraquezas e insuficiências. Mesmo inteiramente consciente de seu
próprio fracasso, contudo, a pessoa crente pode ter certeza de que Deus quer
sua salvação.
4.7. As boas obras da pessoa justificada
37. Confessamos juntos que boas obras - uma vida cristã em fé, esperança
e amor - se seguem à justificação e são frutos da justificação. Quando a pessoa
justificada vive em Cristo e atua na graça recebida produz, biblicamente
falando, bom fruto. Essa conseqüência da justificação é ao mesmo tempo uma
obrigação a ser cumprida pelo cristão, na medida em que luta contra o pecado
durante a vida toda; por isso Jesus e os escritos apostólicos admoestam os
cristãos a realizar obras de amor.
38. De acordo com a concepção católica, as boas obras, tornadas
possíveis pela graça e pela ação do Espírito Santo, contribuem para um
crescimento na graça de tal modo que a justiça recebida de Deus é conservada e
a comunhão com Cristo, aprofundada. Quando católicos sustentam o caráter
"meritório" das boas obras, querem dizer que, segundo o testemunho
bíblico, essas obras têm a promessa de recompensa no céu. Querem destacar a
responsabilidade do ser humano por seus atos, mas não contestar com isso o
caráter de presente das boas obras nem, muito menos, negar que a justificação
como tal permanece sendo sempre presente imerecido da graça.
39. Também entre os luteranos existe a idéia de uma preservação
da graça e de um crescimento em graça e fé. Acentuam, contudo, que a justiça
como aceitação da parte de Deus e participação na justiça de Cristo, sempre é
perfeita; mas dizem ao mesmo tempo que seu efeito na vida cristã pode crescer.
Quando vêem as boas obras da pessoa cristã como "frutos" e
"sinais" da justificação, não como "méritos" próprios, não
deixam, no entanto, de entender a vida eterna, conforme o Novo Testamento, como
"galardão" imerecido no sentido do cumprimento da promessa divina aos
crentes.
5. O significado e o alcance do consenso obtido
40. A
compreensão da doutrina da justificação exposta nesta DC mostra que
entre luteranos e católicos existe um consenso em verdades básicas da doutrina
da justificação. À luz desse consenso as diferenças remanescentes na
terminologia, na articulação teológica e na ênfase da compreensão da
justificação descritas nos parágrafos 18 a 39 são aceitáveis. Por isso as
formas distintas pelas quais luteranos e católicos articulam a fé na
justificação estão abertas uma para a outra e não anulam o consenso nas
verdades básicas.
41. Com isso também as condenações doutrinais do século XVI, na medida
em que dizem respeito à doutrina da justificação, aparecem sob uma nova
luz: a doutrina das Igrejas luteranas apresentada nesta Declaração não é
atingida pelas condenações do Concílio de Trento. As condenações contidas nos
escritos confessionais luteranos não atingem a doutrina da Igreja católica romana
exposta nesta Declaração.
42. Com isso não se tira nada da seriedade das condenações doutrinais
referentes à doutrina da justificação. Algumas delas não eram simplesmente
infundadas; elas conservam para nós "o significado de advertências
salutares", que devemos observar na doutrina e na prática [21].
43. Nosso consenso em verdades básicas da doutrina da
justificação precisa surtir efeitos e comprovar-se na vida e na doutrina das
Igrejas. A respeito existem ainda questões de importância diversificada que
exigem ulteriores esclarecimentos. Entre outras, por exemplo, a relação entre a
palavra de Deus e doutrina eclesiástica, bem como a doutrina a respeito da
Igreja, da autoridade na Igreja, de sua unidade, do ministério e dos
sacramentos, e finalmente a doutrina da relação entre justificação e ética
social. Temos a convicção de que a compreensão comum obtida oferece uma base
sólida para esse esclarecimento. As Igrejas luteranas e a Igreja católica
romana continuarão se empenhando por aprofundar a compreensão comum e fazê-la
frutificar na doutrina e na vida eclesiais.
44. Damos graças ao Senhor por este passo decisivo rumo à
superação da divisão da Igreja. Rogamos ao Espírito Santo que nos conduza
adiante para aquela unidade visível que é a vontade de Cristo.
Notas
1) Os artigos de Esmalcalde II, 1 (Livro de concórdia: as
confissões da Igreja Evangélica Luterana, 3ª ed., São Leopoldo, Sinodal, Porto
Alegre: Concórdia, 1983, pág. 312).
2) "Rector et iudex omnia genera doctrinarum" (Edição de
Weimar das obras de Lutero, 39/I, 205).
3) Note-se que uma série de Igrejas luteranas adotaram como base
doutrinária compromissiva somente a Confissão de Ausburgo e o Catecismo Menor
de Lutero. Estes escritos confessionais não contêm condenações doutrinais
referentes à doutrina da justificação em relação à Igreja católica romana.
4) COMISSÃO MISTA NACIONAL CATÓLICO-LUTERANA, O evangelho e a
Igreja, s.d.
5) GEMEINSAME RÖMISCH-KATHOLISCHE/EVANGELISCH-LUTHERISCHE
KOMMISSION (ed.), Kirche und rechtfertigung: Das Verständnis der Kirche im Licht der
Rechtfertigungslehre, Paderborn/Frankfurt, 1994.
6) Lutherish/Römisch-Katholischer Dialog in den USA:
Rechtfertigung durch den Glauben (1983), in: Harding MEYER, Günther
GASSMAN (eds.), Rechtfertigung im ökumenischen Dialog: Dokumente
und Einführung, Frankfurt, 1987, pp. 107-200. Em ingles: Lutherans and
Catholics in Dialogue, Minneapolis, 1985, vol. VIII.
7) Lehrverurteilungen - Kirchentrennend?: vol.
I: Karl LEHMANN, Wolfhart PANNENBERG (eds.), Rechtfertigung,
Sakramente und Amt im Zeitalter der Reformation und heute, Friburgo/Göttingen, 1986.
8) Gemeinsame Stellungnahme der Arnolshainer Konferenz, der
Vereinigten Kirche und des Deutschen Nationalkomitees des Lutherischen
Weltbundes zum Dokument "Lehrverteilungen - kirchentrennend?", Ökumenische
Rundschau, v. 44, pp. 99-102, 1995; incluindo os posicionamentos que servem
de base a essa resoluçao, cf. Lehrveruteilungen im Gespräch: Die
ersten ofiziellen Stellungnahmen aus den evangelischen Kirchen in Deustschland,
Göttingen, 1983.
9) Na presente DC a palavra "Igreja" reproduz a
respectiva autocompreensao das Igrejas participantes, sem que com isso se
queira considerar resolvidas todas as questoes eclesiológicas a ela associadas.
10) Cf. Relatório de Malta nn. 26-30; Rechtfertigung durch den Glauben,
nn. 122-147. Por incumbencia do diálogo sobre a justificaçao nos EUA, os
testemunhos neotestamentários nao-paulinos foram examinados por John REUMANN,
Righteousness in the New Testament, com reaçoes de Joseph A. FITZMEYER e Jerome
D. QUINN (Filadélfia/Nova Iorque, 1982), pp. 124-180. Os resultados deste
estudo estao compilados no relatório de diálogo Justification by Faith [em
alemao: Rechtfertigung durch den Glauben], nos nn. 139-142.
11) Cf. "Alle unter einem Christus", n. 14, in: Dokumente
wachsender Übereinstimmung, vol. I, pp. 323-328.
12) Cf. WA 8, 106.
13) Cf. DS 1528.
14) Cf. DS 1530.
15) Cf. Apologia da Confissao de Ausburgo II, 38-45.
16) Cf. DS 1515.
17) Cf. DS 1515.
18) Cf. DS 1545.
19) Cf. DV 5.
20) Cf. DV 4.
21) Lehrverurteilungen - Kirchentrennend?, 32.
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