terça-feira, 6 de setembro de 2011

DECLARAÇÃO CONJUNTA SOBRE A DOUTRINA DA JUSTIFICAÇÃO



Preâmbulo

1. A doutrina da justificação teve importância central para a Reforma luterana do século XVI. Era considerada o "primeiro e principal artigo" [1] e simultaneamente "regente e juiz sobre todas as partes da doutrina cristã" [2]. A doutrina da justificação foi particularmente sustentada e defendida em sua expressão reformatória e sua relevância especial face à teologia e à Igreja católica romana de então as quais, por sua vez, sustentavam e defendiam uma doutrina da justificação com características diferentes. Aqui, segundo a prospectiva reformatória, residia o cerne de todas as confrontações. Elas resultaram em condenações doutrinais nos escritos confessionais luteranos [3] e no Concílio de Trento da Igreja católica romana. Essas condenações vigoram até hoje e têm efeito divisor entre as Igrejas.
2. Para a tradição luterana a doutrina da justificação conservou essa relevância especial. Por isso, desde o início, ela também ocupou um lugar importante no diálogo oficial luterano-católico.

3. Remetemos em especial aos relatórios "O evangelho e a Igreja" (1972) [4] e "Igreja e justificação" (1994) [5], da Comissão Mista católica romana/evangélica luterana internacional, ao relatório "Justificação pela fé" (1983) [6], do diálogo católico-luterano nos Estados Unidos, e ao estudo "Condenações doutrinais - divisoras das Igrejas?" (1986) [7], do Grupo de Trabalho Ecumênico de teólogos evangélicos e católicos na Alemanha. Alguns destes relatórios de diálogo obtiveram recepção oficial. Exemplo importante constitui o posicionamento compromissivo emitido pela Igreja Evangélico-Luterana Unida da Alemanha, juntamente com as outras Igrejas pertencentes à Igreja Evangélica na Alemanha, com o máximo grau possível de reconhecimento eclesiástico do estudo sobre as condenações doutrinais (1994) [8].
4. Todos os relatórios de diálogo citados, bem como os posicionamentos a seu respeito, revelam em seu tratamento da doutrina da justificação, alto grau de orientação e juízos comuns. Por isso está na hora de fazer um balanço e de resumir os resultados dos diálogos sobre a justificação, de modo a informar nossas Igrejas, com a devida precisão e brevidade, sobre o resultado geral desse diálogo e de dar-lhes, ao mesmo tempo, condições de se posicionarem de modo compromissivo a respeito.
5. É isso o que pretende a presente Declaração Conjunta. Ela quer mostrar que, com base no diálogo, as Igrejas luteranas signatárias e a Igreja católica romana [9] estão agora em condições de articular uma compreensão comum de nossa justificação pela graça de Deus na fé em Cristo. Esta Declaração Comum (DC) não contém tudo o que é ensinado sobre justificação em cada uma das Igrejas, mas abarca um consenso em verdades básicas da doutrina da justificação e mostra que os desdobramentos distintos ainda existentes não constituem mais motivo de condenações doutrinais.
6. Nossa DC não é uma exposição nova e independente, ao lado dos relatórios de diálogo e documentos já existentes, nem pretende, muito menos, substitui-los. Ela se reporta, antes, a esses textos e sua argumentação.
7. Assim como os próprios diálogos, também esta DC se baseia na convicção de que uma superação de questões controversas e de condenações doutrinárias até agora vigentes não minimiza as divisões e condenações nem desautoriza o passado da própria Igreja. Repousa, porém, sobre a convicção de que no decorrer da história nossas Igrejas chegam a novas percepções e de que ocorrem desdobramentos que não só lhes permitem, mas ao mesmo tempo também exigem, que as questões e condenações divisoras sejam examinadas e vistas sob uma nova luz.
1. A mensagem bíblica da justificação
8. Fomos levados a essas novas percepções por nossa maneira conjunta de escutar a palavra de Deus nas Escrituras Sagradas. Juntos ouvimos o evangelho de que "Deus amou o mundo de tal maneira que deu Seu Filho unigênito, para que todo o que nele crê não pereça, mas tenha a vida eterna" (Jo 3, 16). Esta Boa Nova é exposta de diferentes maneiras nas Escrituras Sagradas. No Antigo Testamento ouvimos a palavra de Deus sobre a pecaminosidade humana (cf. Sl 51, 1-5; Dn 9, 5 s.; Ecl 8, 9 s.; Esd 9, 6 s.) e sobre a desobediência humana (cf. Gn 3, 1-19; Ne 9, 16 s.26), bem como sobre a justiça (cf. Is 46, 13; 51, 5-8; 56, 1 [cf. 53, 11]; Jr 9, 24) e o juízo de Deus (cf. Ecl 12, 14; Sl 9, 5 s.; 76, 7-9).
9. No Novo Testamento os temas "justiça" e "justificação" são abordados de maneira diferenciada em Mateus (cf. 5, 10; 6, 33; 21, 32), em João (cf. 16, 8-11), na Epístola aos Hebreus (cf. 5, 13; 10, 37 s.) e na Epístola de Tiago (cf. 2, 14-26). [10] Também nas cartas paulinas o dom da salvação é descrito de diferentes modos, entre outros como "libertação para a liberdade" (Gl 5, 1-13; cf. Rm 6, 7), como "reconciliação com Deus" (2 Cor 5, 18-21; cf. Rm 5, 11), como "paz com Deus" (Rm 5, 1), como "nova criação" (2 Cor 5, 17), como "vida para Deus em Cristo Jesus" (Rm 6, 11-23) ou como "santificação  em  Cristo Jesus"  (cf.  1  Cor  1, 2; 1, 30; 2 Cor 1, 1). Salienta-se entre esses conceitos a descrição como "justificação" do pecador pela graça de Deus na fé (cf. Rm 3, 23-25), que foi destacada de maneira especial no tempo da Reforma.
10. Paulo descreve o evangelho como poder de Deus para a salvação do ser humano caído sob o poder do pecado:  como mensagem que proclama a "justiça de Deus de fé em fé" (Rm 1, 16 s.) e que presenteia a "justificação" (Rm 3, 21-31). Ele anuncia Cristo como "nossa justiça" (1 Cor 1, 30) ao aplicar ao Senhor ressuscitado o que Jeremias disse acerca do próprio Deus (cf. 23, 6). Na morte e na ressurreição de Cristo estão enraizadas todas as dimensões de sua obra redentora, porque "nosso Senhor foi entregue por causa de nossas transgressões e ressuscitou por causa de nossa justificação" (Rm 4, 25). Todos os seres humanos necessitam da justiça de Deus, "pois todos pecaram e carecem da glória de Deus" (Rm 3, 23; cf. Rm 1, 18-3.22; 11, 32; Gl 3, 22). Nas cartas aos Gálatas (cf. 3, 6) e aos Romanos (cf. 4, 3-9) Paulo entende a fé de Abraão (cf. Gn 15, 6) como fé no Deus que justifica o pecador (cf. Rm 4, 5) e invoca o testemunho do Antigo Testamento para sublinhar seu evangelho de que aquela justiça será imputada a todos os que, como Abraão, confiam na promessa de Deus. "O justo viverá pela fé" (Hab 2, 4; cf. Gl 3, 11; Rm 1, 17). Nas cartas paulinas a justiça de Deus é simultaneamente o poder de Deus para cada crente (cf. Rm 1, 16 s.). Em Cristo ele faz com que ela seja nossa justiça (cf. 2 Cor 5, 21). Recebemos a justificação por Cristo Jesus, "a quem Deus propôs, em seu sangue, como propiciação [eficaz] mediante a fé" (Rm 3, 25; cf. 3, 21-28). "Porque pela graça sois salvos, mediante a fé; e isto não vem de vós, é dom de Deus; não de obras" (Ef 2, 8 s.).
11. Justificação é perdão dos pecados (cf. Rm 3, 23-25; At 13, 39; Lc 18, 14), libertação do poder dominante do pecado e da morte (cf. Rm 5, 12-21) e da maldição da lei (cf. Gl 3, 10-14). Ela significa acolhida na comunhão com Deus, já agora, mas de forma plena no reino vindouro de Deus (cf. Rm 5, 1 s.). Une com Cristo e sua morte e ressurreição (cf. Rm 6, 5). Acontece no recebimento do Espírito Santo no batismo como incorporação no corpo uno (cf. Rm 8, 1 s., 9 s.; 1 Cor 12, 12 s.). Tudo isso provém somente de Deus, por amor de Cristo, por graça, pela fé no "evangelho de Deus com respeito a seu Filho" (cf. Rm 1, 1-3).
12. As pessoas justificadas vivem a partir da fé que provém da palavra de Cristo (cf. Rm 10, 17) e que atua no amor (cf. Gl 5, 6), o qual é fruto do Espírito (cf. Gl 5, 22 s.). Mas, visto que poderes e ambições atribulam as pessoas crentes por fora e por dentro (cf. Rm 8, 35-39; Gl 5, 16-21) e elas caem em pecado (cf. 1 Jo 1, 8.10), precisam repetidamente ouvir as promissões de Deus, confessar seus pecados (cf. 1 Jo 1, 9), participar do corpo e do sangue de Cristo e ser exortadas a viver uma vida justa em conformidade com a vontade de Deus. Por isso o apóstolo diz às pessoas justificadas:  "Desenvolvei vossa salvação com temor e tremor; porque Deus é quem efetua em vós tanto o querer quanto o realizar, segundo a sua vontade" (Fl 2, 12 s.). Permanece, porém, a Boa Nova:  "Já nenhuma condenação há para os que estão em Cristo Jesus" (Rm 8, 1) e nos quais Cristo vive (cf. Gl 2, 20). Por intermédio da obra justa de Cristo haverá justificação que dá vida para todos os seres humanos (cf. Rm 5, 18).

2. A doutrina da justificação como problema ecumênico

13. No século XVI, a interpretação e aplicação contrastantes da mensagem bíblica da justificação constituíram uma das causas principais da divisão da Igreja ocidental, o que também se expressou em condenações doutrinais. Por isso, para superar a divisão na Igreja, uma compreensão comum da justificação é fundamental e indispensável. Acolhendo resultados da pesquisa bíblica e percepções da história da teologia e dos dogmas, desenvolveu-se no diálogo ecumênico desde o Concílio Vaticano II uma nítida aproximação no que diz respeito à doutrina da justificação, de modo que a presente DC pode formular um consenso em verdades básicas da doutrina da justificação a cuja luz as correspondentes condenações doutrinais do século XVI não mais se aplicam ao parceiro de hoje.
3. A compreensão comum da justificação
14. O ouvir comum da Boa Nova proclamada nas Sagradas Escrituras e, não por último, os diálogos teológicos de anos recentes entre as Igrejas luteranas e a Igreja católica romana levaram a uma concordância na compreensão da justificação. Ela abarca um consenso nas verdades básicas; os desdobramentos distintos nas afirmações específicas são compatíveis com ela.
15. É nossa fé comum que a justificação é obra do Deus uno e trino. O Pai enviou seu Filho ao mundo para a salvação dos pecadores. A encarnação, a morte e a ressurreição de Cristo são fundamento e pressuposto da justificação. Por isso justificação significa que o próprio Cristo é nossa justiça, da qual nos tornamos participantes através do Espírito Santo segundo a vontade do Pai. Confessamos juntos:  somente por graça, na fé na obra salvífica de Cristo, e não por causa de nosso mérito, somos aceitos por Deus e recebemos o Espírito Santo, que nos renova os corações e nos capacita e chama para as boas obras [11].
16. Todas as pessoas são chamadas por Deus para a salvação em Cristo. Somos justificados somente por Cristo ao recebermos essa salvação na fé. A própria fé, por sua vez, é presente de Deus através do Espírito Santo, que atua na palavra e nos sacramentos na comunhão dos crentes e que, ao mesmo tempo, conduz os crentes àquela renovação de sua vida que Deus consuma na vida eterna.
17. Compartilhamos a convicção de que a mensagem da justificação nos remete de forma especial ao centro de testemunho neotestamentário da ação salvífica de Deus em Cristo:  ela nos diz que como pecadores devemos nossa vida nova unicamente à misericórdia perdoadora e renovadora de Deus, misericórdia esta com a qual só podemos ser presenteados e que só podemos receber na fé, mas que nunca - de qualquer forma que seja - podemos fazer por merecer.
18. Por isso a doutrina da justificação, que assume e desdobra essa mensagem, não é apenas um aspecto parcial da doutrina cristã. Ela se encontra numa relação essencial com todas as verdades da fé, as quais devem ser vistas numa conexão interna entre si. Ela é um critério indispensável que visa orientar toda a doutrina e prática da Igreja incessantemente para Cristo. Quando luteranos acentuam a importância singular desse critério, não negam a conexão e a importância de todas as verdades da fé. Quando católicos se sentem comprometidos com vários critérios, não negam a função especial da mensagem da justificação. Luteranos e católicos compartilham o alvo comum de confessar em tudo a Cristo, ao qual unicamente importa confiar, acima de todas as coisas, como mediador uno (cf. 1 Tm 2, 5 s.) pelo qual Deus, no Espírito Santo, dá a si mesmo e derrama seus dons renovadores.
4. O desdobramento da compreensão comum da justificação
4.1. Incapacidade e pecado humanos face à justificação
19. Confessamos juntos que o ser humano, no concernente à sua salvação, depende completamente da graça salvadora de Deus. A liberdade que ele possui para com as pessoas e coisas do mundo não é liberdade com relação à salvação. Isto quer dizer que, como pecador, ele se encontra sob o juízo de Deus, sendo por si só incapaz de se voltar a Deus em busca de salvamento, ou de merecer sua justificação perante Deus, ou de alcançar a salvação pela própria força. Justificação acontece somente por graça. Porque católicos e luteranos confessam isso conjuntamente, deve-se dizer: 
20. Quando católicos dizem que o ser humano "coopera" no preparo e na aceitação da justificação por assentir à ação justificadora de Deus, eles vêem mesmo nesse assentimento pessoal um efeito da graça, e não uma ação humana a partir de forças próprias.
21. Segundo a concepção luterana o ser humano é incapaz de cooperar em sua salvação, porque como pecador ele resiste ativamente a Deus e à sua ação salvadora. Luteranos não negam que o ser humano possa rejeitar a atuação da graça. Quando sublinham que o ser humano pode tão-somente receber (mere passive) a justificação, rejeitam com isso qualquer possibilidade de uma contribuição própria do ser humano para sua justificação, mas não negam sua plena participação pessoal na fé, que é operada pela própria palavra de Deus.
4.2. Justificação como perdão de pecados e ato de tornar justo
22. Confessamos juntos que Deus, por graça, perdoa ao ser humano o pecado, e o liberta ao mesmo tempo do poder escravizador do pecado em sua vida e lhe presenteia a nova vida em Cristo. Quando o ser humano tem parte em Cristo na fé, Deus não lhe imputa seu pecado e, pelo Espírito Santo, opera nele um amor ativo. Ambos os aspectos da ação graciosa de Deus não devem ser separados. Eles estão correlacionados de tal maneira que o ser humano, na fé, é unido com Cristo que em sua pessoa é nossa justiça (cf. 1 Cor 1, 30):  tanto o perdão dos pecados quanto a presença santificadora de Deus. Porque católicos e luteranos confessam isso conjuntamente, deve-se dizer: 
23. Quando luteranos enfatizam que a justiça de Cristo é nossa justiça, querem sobretudo assegurar que ao pecador, pelo anúncio do perdão, é representada a justiça perante Deus em Cristo e que sua vida é renovada somente em união com Cristo. Quando dizem que a graça de Deus é amor que perdoa ("favor de Deus") [12], não negam com isso a renovação da vida do cristão, mas querem expressar que a justificação permanece livre de cooperação humana, tampouco dependendo do efeito renovador de vida que a graça produz no ser humano.
24. Quando católicos enfatizam que ao crente é presenteada a renovação da pessoa interior pelo recebimento da graça, [13] querem assegurar que a graça perdoadora de Deus sempre está ligada ao presente de uma nova vida, que no Espírito Santo se torna efetiva em amor ativo; mas não negam com isso que o dom da graça divina na justificação permanece independente de cooperação humana.
4.3. Justificação por fé e por graça
25. Confessamos juntos que o pecador é justificado pela fé na ação salvífica de Deus em Cristo; essa salvação lhe é presenteada pelo Espírito Santo no batismo como fundamento de toda a sua vida cristã. Na fé justificadora o ser humano confia na promessa graciosa de Deus; nessa fé estão compreendidos a esperança em Deus e o amor a Ele. Essa fé atua pelo amor; por isso o cristão não pode e não deve ficar sem obras. Mas tudo o que, no ser humano, precede ou se segue ao livre presente da fé não é fundamento da justificação nem a faz merecer.
26. Segundo a compreensão luterana, Deus justifica o pecador somente na fé (sola fide). Na fé o ser humano confia inteiramente em seu Criador e Redentor e está assim em comunhão com ele. Deus mesmo é quem opera a fé ao produzir tal confiança por sua palavra criadora. Porque essa ação divina constitui uma nova criação, afeta todas as dimensões da pessoa e conduz a uma vida em esperança e amor. Assim, na doutrina da "justificação somente pela fé", a renovação da conduta de vida que necessariamente se segue à justificação, e sem a qual não pode haver fé, é distinguida da justificação, mas não é separada dela. Com isso é indicado, antes, o fundamento do qual provém tal renovação. Do amor de Deus, que é presenteado ao ser humano na justificação, provém a renovação da vida. A justificação e a renovação estão ligadas pelo Cristo presente na fé.
27. Também segundo a compreensão católica a fé é fundamental para a justificação, pois sem fé não pode haver justificação. Como ouvinte da palavra e crente o ser humano é justificado por meio do batismo. A justificação do pecador é perdão dos pecados e ato que torna justo através da graça justificadora, que nos torna filhos e filhas de Deus. Na justificação as pessoas justificadas recebem de Cristo fé, esperança e amor e são assim acolhidas na comunhão com Ele. [14] Essa nova relação pessoal com Deus se baseia inteiramente na graciosidade divina e fica sempre dependente da atuação criadora de salvação do Deus gracioso, que permanece fiel a si mesmo e no qual o ser humano pode por isso confiar. Por esta razão a graça justificadora nunca se converte em posse do ser humano, à qual ele pudesse apelar diante de Deus. Quando, segundo a compreensão católica, se acentua a renovação da vida através da graça justificadora, essa renovação em fé, esperança e amor sempre depende da graça inescrutável de Deus e não representa qualquer contribuição para a justificação da qual pudéssemos orgulhar-nos diante de Deus (cf. Rm 3, 27).
4.4. A  pessoa  justificada  como  pecadora
28. Confessamos juntos que no batismo o Espírito Santo une a pessoa com Cristo, a justifica e realmente a renova. Não obstante, a pessoa justificada durante toda a vida permanece incessantemente dependente da graça de Deus que justifica de modo incondicional. Também ela está continuamente exposta ao poder do pecado e suas investidas (cf. Rm 6, 12-14), não estando isenta da luta vitalícia contra a oposição a Deus em termos de cobiça egoísta do velho Adão (cf. Gl 5, 16; Rm 7, 7.10). Também a pessoa justificada precisa pedir, como no Pai Nosso, a cada dia, o perdão de Deus (cf. Mt 6, 12; 1 Jo 1, 9), é chamada constantemente à conversão e ao arrependimento e recebe continuamente o perdão.
29. Luteranos entendem isso no sentido de que a pessoa cristã é "ao mesmo tempo justa e pecadora":  ela é totalmente justa porque Deus, por palavra e sacramento, lhe perdoa o pecado e lhe concede a justiça de Cristo, da qual ela se apropria pela fé e a qual em Cristo a torna justa diante de Deus. Olhando, porém, para si mesma através da lei, ela reconhece que continua ao mesmo tempo totalmente pecadora, que o pecado ainda habita nela (cf. 1 Jo 1, 8; Rm 7, 17.20):  porque reiteradamente confia em falsos deuses e não ama a Deus com aquele amor indiviso que Deus como seu criador dela exige (cf. Dt 6, 5; Mt 22, 36-40). Essa oposição a Deus é, como tal, verdadeiramente pecado. Não obstante, graças ao mérito de Cristo, o poder escravizante do pecado está rompido:  já não é pecado que "domina" a pessoa cristã por estar "dominado" por Cristo, com o qual a pessoa justificada está unida na fé; assim a pessoa cristã, enquanto vive na terra, pode ao menos em parte viver uma vida em justiça. E, a despeito do pecado, não está mais separada de Deus, porque no retorno diário ao batismo ela, que renasceu pelo batismo e pelo Espírito Santo, tem seu pecado perdoado, de sorte que seu pecado já não lhe acarreta condenação e morte eterna. [15] Portanto, quando luteranos dizem que a pessoa justificada é também pecadora e que sua oposição a Deus é verdadeiramente pecado, não negam que, a despeito do pecado, ela está inseparada de Deus em Cristo e que seu pecado é pecado dominado. Neste último aspecto estão em concordância com os católicos romanos, apesar das diferenças na compreensão do pecado da pessoa justificada.
30. Segundo a concepção católica, a graça de Jesus Cristo concedida no batismo apaga tudo o que é "realmente" pecado, o que é "digno de condenação" (Rm 8, 1),[16] mas que permanece na pessoa uma inclinação (concupiscência) proveniente do pecado e tendente ao pecado. Uma vez que, conforme a convicção católica, o surgimento dos pecados humanos sempre implica um elemento pessoal, e como este elemento falta naquela inclinação contrária a Deus, católicos não vêem nela pecado em sentido autêntico. Com isso não querem negar que essa inclinação não corresponde ao desígnio original de Deus para a humanidade nem que é objetivamente oposição a Deus e que permanece objeto de luta vitalícia; em gratidão pela redenção por intermédio de Cristo querem destacar que a inclinação contrária a Deus não merece o castigo de morte eterna [17] e não separa a pessoa justificada de Deus. Quando, porém, a pessoa justificada se separa voluntariamente de Deus, não basta voltar a observar os mandamentos, mas ela precisa receber, no sacramento da reconciliação, perdão e paz pela palavra do perdão que lhe é conferida por força da obra reconciliadora de Deus em Cristo.
4.5. Lei e evangelho
31. Confessamos juntos que o ser humano é justificado na fé no evangelho "independentemente de obras da lei" (Rm 3, 28). Cristo cumpriu a lei e, por sua morte e ressurreição, a superou como caminho para a salvação. Confessamos ao mesmo tempo que os mandamentos de Deus permanecem em vigor para a pessoa justificada e que Cristo, em sua palavra e sua vida, expressa a vontade de Deus, que constitui padrão de conduta também para a pessoa justificada.
32. Os luteranos sustentam que a distinção e a correta correlação de lei e evangelho é essencial para a compreensão da justificação. A lei, em seu uso teológico, é exigência e acusação às quais está sujeita durante a vida inteira toda pessoa, também pessoa cristã, na medida em que é pecadora; e a lei põe a descoberto seu pecado para que na fé no evangelho, ela se volte inteiramente para a misericórdia de Deus em Cristo, a qual unicamente a justifica.
33. Uma vez que a lei como caminho de salvação foi cumprida e superada pelo evangelho, católicos podem dizer que Cristo não é um legislador à maneira de Moisés. Quando católicos acentuam que a pessoa justificada é obrigada a observar os mandamentos de Deus, não negam com isso que a graça da vida eterna é misericordiosamente prometida aos filhos e filhas de Deus por Jesus Cristo [18].
4.6. Certeza de salvação
34. Confessamos  juntos  que  as pessoas  crentes  podem  confiar  na  misericórdia e nas promissões de Deus. Também em face de sua própria fraqueza e de muitas ameaças para sua fé, podem basear-se - graças à morte e ressurreição de Cristo - na promessa eficaz da graça de Deus em palavra e sacramento e, assim, ter certeza desta graça.
35. Isto foi acentuado de maneira especial pelos reformadores:  em meio à tribulação a pessoa crente não deve olhar para si mesma, mas inteiramente para Cristo e confiar somente nele. Assim, na confiança na promissão de Deus, ela tem certeza de sua salvação, mesmo que, olhando para si mesma, nunca esteja segura.
36. Católicos podem compartilhar da preocupação dos reformadores de basear a fé na realidade objetiva da promessa de Cristo, desconsiderando a própria experiência e confiando somente na palavra promitente de Cristo (cf. Mt 16, 19; 18, 18). Com o Concílio Vaticano II os católicos sustentam:  crer significa confiar-se inteiramente a Deus, [19] que nos liberta das trevas do pecado e da morte e nos desperta para a vida eterna. [20] Neste sentido não se pode crer em Deus e, ao mesmo tempo, não considerar confiável a promessa divina. Ninguém deve duvidar da misericórdia de Deus e do mérito de Cristo. Mas toda pessoa pode estar preocupada com sua salvação quando olha para suas próprias fraquezas e insuficiências. Mesmo inteiramente consciente de seu próprio fracasso, contudo, a pessoa crente pode ter certeza de que Deus quer sua salvação.
4.7. As boas obras da pessoa justificada
37. Confessamos juntos que boas obras - uma vida cristã em fé, esperança e amor - se seguem à justificação e são frutos da justificação. Quando a pessoa justificada vive em Cristo e atua na graça recebida produz, biblicamente falando, bom fruto. Essa conseqüência da justificação é ao mesmo tempo uma obrigação a ser cumprida pelo cristão, na medida em que luta contra o pecado durante a vida toda; por isso Jesus e os escritos apostólicos admoestam os cristãos a realizar obras de amor.
38. De acordo com a concepção católica, as boas obras, tornadas possíveis pela graça e pela ação do Espírito Santo, contribuem para um crescimento na graça de tal modo que a justiça recebida de Deus é conservada e a comunhão com Cristo, aprofundada. Quando católicos sustentam o caráter "meritório" das boas obras, querem dizer que, segundo o testemunho bíblico, essas obras têm a promessa de recompensa no céu. Querem destacar a responsabilidade do ser humano por seus atos, mas não contestar com isso o caráter de presente das boas obras nem, muito menos, negar que a justificação como tal permanece sendo sempre presente imerecido da graça.
39. Também entre os luteranos existe a idéia de uma preservação da graça e de um crescimento em graça e fé. Acentuam, contudo, que a justiça como aceitação da parte de Deus e participação na justiça de Cristo, sempre é perfeita; mas dizem ao mesmo tempo que seu efeito na vida cristã pode crescer. Quando vêem as boas obras da pessoa cristã como "frutos" e "sinais" da justificação, não como "méritos" próprios, não deixam, no entanto, de entender a vida eterna, conforme o Novo Testamento, como "galardão" imerecido no sentido do cumprimento da promessa divina aos crentes.
5. O significado e o alcance do consenso obtido
40. A compreensão da doutrina da justificação exposta nesta DC mostra que entre luteranos e católicos existe um consenso em verdades básicas da doutrina da justificação. À luz desse consenso as diferenças remanescentes na terminologia, na articulação teológica e na ênfase da compreensão da justificação descritas nos parágrafos 18 a 39 são aceitáveis. Por isso as formas distintas pelas quais luteranos e católicos articulam a fé na justificação estão abertas uma para a outra e não anulam o consenso nas verdades básicas.
41. Com isso também as condenações doutrinais do século XVI, na medida em que dizem respeito à doutrina da justificação, aparecem sob uma nova luz:  a doutrina das Igrejas luteranas apresentada nesta Declaração não é atingida pelas condenações do Concílio de Trento. As condenações contidas nos escritos confessionais luteranos não atingem a doutrina da Igreja católica romana exposta nesta Declaração.
42. Com isso não se tira nada da seriedade das condenações doutrinais referentes à doutrina da justificação. Algumas delas não eram simplesmente infundadas; elas conservam para nós "o significado de advertências salutares", que devemos observar na doutrina e na prática [21].
43. Nosso consenso em verdades básicas da doutrina da justificação precisa surtir efeitos e comprovar-se na vida e na doutrina das Igrejas. A respeito existem ainda questões de importância diversificada que exigem ulteriores esclarecimentos. Entre outras, por exemplo, a relação entre a palavra de Deus e doutrina eclesiástica, bem como a doutrina a respeito da Igreja, da autoridade na Igreja, de sua unidade, do ministério e dos sacramentos, e finalmente a doutrina da relação entre justificação e ética social. Temos a convicção de que a compreensão comum obtida oferece uma base sólida para esse esclarecimento. As Igrejas luteranas e a Igreja católica romana continuarão se empenhando por aprofundar a compreensão comum e fazê-la frutificar na doutrina e na vida eclesiais.
44. Damos graças ao Senhor por este passo decisivo rumo à superação da divisão da Igreja. Rogamos ao Espírito Santo que nos conduza adiante para aquela unidade visível que é a vontade de Cristo.


Notas
 1) Os artigos de Esmalcalde II, 1 (Livro de concórdia:  as confissões da Igreja Evangélica Luterana, 3ª ed., São Leopoldo, Sinodal, Porto Alegre:  Concórdia, 1983, pág. 312).
 2) "Rector et iudex omnia genera doctrinarum" (Edição de Weimar das obras de Lutero, 39/I, 205).
 3) Note-se que uma série de Igrejas luteranas adotaram como base doutrinária compromissiva somente a Confissão de Ausburgo e o Catecismo Menor de Lutero. Estes escritos confessionais não contêm condenações doutrinais referentes à doutrina da justificação em relação à Igreja católica romana.
 4) COMISSÃO MISTA NACIONAL CATÓLICO-LUTERANA, O evangelho e a Igreja, s.d.
 5) GEMEINSAME RÖMISCH-KATHOLISCHE/EVANGELISCH-LUTHERISCHE KOMMISSION (ed.), Kirche und rechtfertigung:  Das Verständnis der Kirche im Licht der Rechtfertigungslehre, Paderborn/Frankfurt, 1994.
 6) Lutherish/Römisch-Katholischer Dialog in den USA:  Rechtfertigung durch den Glauben (1983), in:  Harding MEYER, Günther GASSMAN (eds.), Rechtfertigung im ökumenischen Dialog:  Dokumente und Einführung, Frankfurt, 1987, pp. 107-200. Em ingles:  Lutherans and Catholics in Dialogue, Minneapolis, 1985, vol. VIII.
 7) Lehrverurteilungen - Kirchentrennend?:  vol. I:  Karl LEHMANN, Wolfhart PANNENBERG (eds.), Rechtfertigung, Sakramente und Amt im Zeitalter der Reformation und heute, Friburgo/Göttingen, 1986.
 8) Gemeinsame Stellungnahme der Arnolshainer Konferenz, der Vereinigten Kirche und des Deutschen Nationalkomitees des Lutherischen Weltbundes zum Dokument "Lehrverteilungen - kirchentrennend?", Ökumenische Rundschau, v. 44, pp. 99-102, 1995; incluindo os posicionamentos que servem de base a essa resoluçao, cf. Lehrveruteilungen im Gespräch:  Die ersten ofiziellen Stellungnahmen aus den evangelischen Kirchen in Deustschland, Göttingen, 1983.
 9) Na presente DC a palavra "Igreja" reproduz a respectiva autocompreensao das Igrejas participantes, sem que com isso se queira considerar resolvidas todas as questoes eclesiológicas a ela associadas.
10) Cf. Relatório de Malta nn. 26-30; Rechtfertigung durch den Glauben, nn. 122-147. Por incumbencia do diálogo sobre a justificaçao nos EUA, os testemunhos neotestamentários nao-paulinos foram examinados por John REUMANN, Righteousness in the New Testament, com reaçoes de Joseph A. FITZMEYER e Jerome D. QUINN (Filadélfia/Nova Iorque, 1982), pp. 124-180. Os resultados deste estudo estao compilados no relatório de diálogo Justification by Faith [em alemao:  Rechtfertigung durch den Glauben], nos nn. 139-142.
11) Cf. "Alle unter einem Christus", n. 14, in:  Dokumente wachsender Übereinstimmung, vol. I, pp. 323-328.
12) Cf. WA 8, 106.
13) Cf. DS 1528.
14) Cf. DS 1530.
15) Cf. Apologia da Confissao de Ausburgo II, 38-45.
16) Cf. DS 1515.
17) Cf. DS 1515.
18) Cf. DS 1545.
19) Cf. DV 5.
20) Cf. DV 4.
21) Lehrverurteilungen - Kirchentrennend?, 32.

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