[bibliacatolica]
17 setembro 2011Fonte: Deus lo Vult!
Durante muito tempo as pessoas souberam a diferença entre o início e o
fim do sistema digestório humano. Desde tempos imemoriais as crianças
aprendiam – na escola e no dia-a-dia – que uma coisa era a comida que
elas botavam para dentro e, outra coisa, os dejetos que elas botavam
para fora. Em hipótese alguma era permitido confundir essas duas coisas.
Também desdes tempos imemoriais, contudo, alguns indivíduos pareciam
não se adaptar àquele exigente estilo de vida. Sempre houve aquelas
pessoas que, por razões quaisquer, desenvolviam uma compulsão por
ingerir os próprios dejetos ou os de outras pessoas. O hábito, nojento e
repugnante, sempre foi repudiado com veemência pela sociedade. Ser
papa-bosta era um sinal de infâmia e de vergonha, e os que padeciam de
tão estranho prazer queriam se libertar dele mais do que qualquer outra
coisa no mundo. Havia também, contudo, aqueles que não conseguiam se
libertar de seus hábitos alimentares; estes, comiam fezes somente às
escondidas, às escuras, sozinhos, como quem comete uma espécie de crime
do qual as demais pessoas não podem tomar ciência.
Um dia isso mudou. Não se sabe bem por qual motivo, um dia os
papa-bostas cismaram que tinham o direito de comer bosta mesmo e ai de
quem não gostasse. Pior: todos tinham que gostar. Disseram que tinham
direito de escolher o que comiam, que a boca era deles mesmo e, nela,
eles colocavam o que melhor entendessem. Disseram que com isso não
estavam fazendo mal a ninguém, e era um absurdo injustificável que, em
pleno século XXI, os degustadores de detritos (o primeiro dos nomes
pomposos que se auto-atribuíram) fossem discriminados.
As pessoas normais reagiram com estranheza. Como alguém poderia se
orgulhar de ser um papa-bosta?! No entanto, toleraram. Pensavam: “eles
que comam a bosta deles para lá!”. Não sabiam, no entanto, que eles
queriam muito mais do que isso.
Por serem olhados com estranheza, passaram a dizer que eram vítimas
de preconceito e de tratamento desumano pelo simples fato de terem
gostos alimentícios diferenciados. Passaram a combater com virulência a
comidanormatividade alimentícia! E mais: a injustiça era ainda mais
gritante porque o gosto por fezes, como é óbvio, não era uma escolha e
sim uma condição. A pessoa nascia gostando (ou não) de comer detritos!
Não era justo discriminar uma pessoa por aquilo que ela é: mulher, negro
ou papa-bosta… Aliás, este termo passou a ser rapidamente considerado
ofensivo e indigno de uma sociedade civilizada. Os degustadores de
detritos, agora, queriam ser chamados escatófagos.
Muitos reagiram: “Sim, é verdade que cada um come o que quiser, mas
eu não quero passar pela experiência desagradável de estar num
restaurante e ver alguém comendo bosta na mesa ao lado, nem quero que
meu filho adquira estes hábitos por conviver com gente assim”. Os
papa-bostas urraram: escatofagofobia! Escatofagofobia! O termo
(recém-cunhado) designava, segundo os seus inventores, o ódio irracional
pelas pessoas que, ao fim e a cabo, gostavam de comer bosta. Era
inadmissível que os seus gostos alimentares fossem considerados
inferiores aos dos demais. Era intolerável existir alguém que não
tolerasse um escatófago.
Rapidamente, jurisprudências em favor dos papa-bostas foram
estabelecidas. Se alguém entrasse em um estabelecimento qualquer comendo
bosta e fosse maltratado, o dono do estabelecimento era punido. A
escatofagofobia, argumentavam os papa-bostas, matava centenas de
milhares de escatófagos por ano. Se um pai descobria que a babá
contratada por ele para tomar conta do seu filho era papa-bosta, e a
demitia, os tribunais o condenavam a pagar pesadas indenizações. Ninguém
podia nem mesmo recusar-se a contratar um candidato para um emprego
pelo fato dele ser um papa-bosta. Os hábitos alimentares, diziam, não
influenciavam nada na capacidade de exercer a sua função. O resto era
puro preconceito.
As pessoas ficaram perplexas, mas pouco fizeram. Os papa-bostas
passaram a se organizar em grandes manifestações de ruas, chamadas
paradas, onde as pessoas lambuzavam-se publicamente com as fezes umas
das outras. Faziam uma grande festa, atraíam muitas pessoas, dançavam e
bebiam e papavam bosta e diziam que isso era tudo muito natural.
Reivindicavam a criminalização da escatofagofobia, i.e., que nenhum
papa-bosta fosse tratado como um ser humano inferior. Que fossem presos
os que pensassem diferente.
Grupos mais conservadores rapidamente começaram a dizer que isto era
errado. Os papa-bostas reagiram chamando-os de escroques
fundamentalistas e retrógrados, escatofagofóbicos calhordas, dizendo que
a única base que eles possuíam para dizer que era errado degustar
detritos era um livro velho escrito há milhares de anos que continha um
monte de proibições absurdas que, hoje, não eram levadas a sério por
ninguém. A violência da reação foi tão grande que os conservadores, no
primeiro momento, se retraíram. Os papa-bostas comemoram publicamente.
Foi iniciada uma campanha de inclusão cidadã da escatofagia. Nas
escolas, as crianças eram apresentadas a materiais educativos que diziam
ser normal comer fezes. A experiência escatofágica era estimulada. Os
papa-bostas eram apresentados como pessoas de bem, modelos famosas,
executivos de sucesso, bons pais de família, excelentes cidadãos. A
figura da mãe obrigando o filho a comer verduras era pintada como se
fosse o supra-sumo da opressão alimentar, uma violência sem precedentes e
que não podia ser tolerada. Psicólogos renomados subscreviam esta tese.
Um escatófago – diziam – não ia deixar de sentir vontade de comer fezes
porque sua mãe lhe forçara a comer verduras. Ao contrário, o que ele
devia fazer era se assumir, sair do banheiro e ser feliz.
Os conservadores, percebendo as dimensões que a loucura estava
tomando, resolveram se manifestar. Mas a tropa dos papa-bostas já tinha
tomado grande parte das estruturas de poder social, da imprensa aos
órgãos de governo. Quando um conservador dizia que comer bosta fazia
mal, rapidamente diziam que isto era puro preconceito dele. Quando ele
mostrava a maior incidência de infecções intestinais em pessoas que
tinham o hábito de comer bosta, os escatófagos rapidamente diziam que
isto era justamente devido ao preconceito social que os papa-bostas
sofriam – que os forçava a praticarem a escatofagia em ambientes e
condições pouco adequados. Quando um conservador dizia que a boca foi
feita para alimentar o corpo, os papa-bostas o ridicularizavam dizendo
que as pessoas já há muito comiam para ter prazer, e não somente para se
nutrir. Ousaram dizer que era anti-natural comer bosta, só para ouvirem
os escatófagos listarem as inúmeras ocorrências de animais que comiam
as próprias fezes, provando assim que a escatofagia era, na verdade, uma
exigência da natureza.
No fim, foram vencidos. Humilhados impiedosamente, foram se tornando
cada vez mais odiados pelas novas gerações. Muitos se renderam aos
“novos tempos” e passaram até mesmo a gostar dos papa-bostas. De vez em
quando, para não serem olhados com muita estranheza, aceitavam
participar de uma degustação fecal. Outros tantos foram presos por
escatofagofobia, e não se sabe ao certo o que aconteceu com eles. Alguns
outros simplesmente foram embora, buscando algum rincão do mundo onde
pudessem simplesmente se estabelecer e viver em paz; onde pudessem
educar os seus filhos ensinando-lhes que é errado comer bosta, da forma
como eles próprios foram ensinados. A verdade é que, no fim, quase
nenhuma voz dissidente restou. E eles deixaram para trás um mundo sem
preconceitos: onde ninguém era tratado como um inferior por gostar de
comer detritos. Deixaram para trás um mundo moderno e civilizado, de
ruas fétidas, pessoas de mau hálito e doentes. E todos se julgavam
felizes por terem conseguido dar mais este importante passo na
erradicação do preconceito da humanidade.
Este texto é de ficção.
Qualquer semelhança com fatos reais é mera coincidência.
Qualquer semelhança com fatos reais é mera coincidência.
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