31 Aug 2011
Santíssima Trindade |
Numa época como a nossa, em que campeiam a impiedade, a imoralidade e a irreligião, multiplicam-se pari passu as catástrofes naturais, com elevado número de vítimas. Tal situação deveria nos levar a recorrer com mais frequência e confiança à Providência Divina, que a tudo preside, suplicando-Lhe não olhar para os nossos pecados, mas para a sua insondável misericórdia; e que nos perdoe, ainda que tenhamos de sofrer por causa de nossas faltas.
Plinio Maria Solimeo
Davi, o rei-profeta de Israel |
Davi, o rei-profeta de Israel, assim se dirige a Deus: “A Vós, Senhor, a grandeza, o poder, a honra, a majestade e a glória, porque tudo o que está no céu e na terra vos pertence. A Vós, Senhor, a realeza, porque sois soberanamente elevado acima de todas as coisas. É de Vós que vêm a riqueza e a glória, sois Vós o Senhor de todas as coisas; é em vossa mão que residem a força e o poder. E é vossa mão que tem o poder de dar a todas as coisas grandeza e solidez” (I Cr 29, 11-12). Em outras palavras, é a mão de Deus que criou, mantém, rege e governa com sua onipotência divina tudo o que está no Céu, na Terra, e nos infernos.
É o que diz São Paulo aos pagãos de Listra. Falando dessa mesma Providência, afirma ele que ela “nunca deixou de dar testemunho de si mesma, por seus benefícios: dando-vos do céu as chuvas e os tempos férteis, concedendo abundante alimento e enchendo os vossos corações de alegria” (Ats. 14, 17). E Nosso Senhor Jesus Cristo afirma que “até nossos cabelos estão contados” (Mt 10, 30; Lc 12, 7), e “que nenhum deles se perderá” (Lc 21, 18) sem o desejo ou a permissão dessa mesma Providência.
Providência no sentido comum e no religioso
Assim sendo, o que vem a ser propriamente a providência de Deus?
No sentido comum, a palavra providência decorre do vocábulo latino providentia, o qual deriva do verboprovidere, que significa ver de antemão, divisar antes, e também subministrar auxílios, prover. Diz São Tomás que a providência, em geral – ou previdência – é uma função da virtude da prudência, que diz respeito ao futuro, à obtenção de um fim, e ordena e prescreve, como é necessário, os meios para obtê-la (Suma Teológica IIa-IIae, q. 48, a. 1). A providência pode ser definida também como a razão prática adaptando os meios a um fim.
Para os antigos persas, Ormuz era o autor de tudo quanto de bom existia para o homem: luz, fogo, água, campos, animais domésticos. |
Nesse sentido, um pai de família deve prever e prover às necessidades dos seus. Um chefe de governo deve fazer o mesmo em relação a seus governados. Se isto é assim nas coisas humanas, elevando-nos para as divinas, podemos afirmar, num sentido lato, que a providência é a perfeição divina que ordena todas as coisas para a glória de Deus e o bem do universo.
A idéia de uma providência divina nas religiões antigas
Essa idéia de uma providência, acima do poder do homem, encontra-se em todas as religiões antigas, como restos da revelação primitiva, sofrendo maiores ou menores deformações segundo os diversos povos e culturas. Pois o homem sempre teve necessidade de adorar um ser superior, que estivesse acima da natureza humana. E, se O adora, é porque crê em seu poder e em sua ciência infinita. E pelo fato de crer que ninguém pode subtrair-se ao seu olhar, os seguidores de tais religiões consideram que os deuses não são indiferentes às coisas humanas.
Todos os rituais das religiões pagãs como preces, adivinhações, bênçãos e maldições, oráculos e ritos sagrados, testemunham a crença em um poder decisório divino ou com caráter quase divino. E tais fenômenos estão presentes em cada raça ou tribo, mesmo selvagem ou degradada.
Desse modo, todos os povos pagãos tinham uma idéia mais ou menos definida da providência divina. Na Babilônia, os deuses dos assírios eram considerados os donos do universo e o regiam conforme leis que se ditavam em uma assembléia anual. Os próprios elementos atmosféricos estavam sob a ação dos deuses e eram por eles dirigidos, como fazia Zeus, entre os gregos, desde o Olimpo helênico.
Como os deuses eram considerados protetores dos homens, sua ação manifestava-se inclusive na vida diária de seus protegidos. Homero, na antiga Grécia, acentuou este ofício dos deuses como benfeitores da humanidade. E os semitas concebiam seu deus como pai, amigo e protetor. Até para os yamanes, da Terra do Fogo, “tudo vem do alto”, porque criam que sua divindade era boa. Para os antigos persas, Ormuzera o autor de tudo quanto de bom existia para o homem: luz, fogo, água, campos, animais domésticos.
A íntima conexão entre os deuses e as atividades humanas era mais acentuada na religião dos romanos, que cultuavam um deus especial para zelar por cada detalhe de sua vida diária, seus trabalhos no campo e até para os negócios do Estado. Eles tinham, por isso, deuses protetores do lar, como os Lares e osPenates.
Quando apareceu a agricultura, os homens passaram a rogar aos deuses que lhes enviassem a chuva, o sol e a boa colheita.
Também era comum a todos os povos antigos a convicção de que a divindade atuava na História e se revelava nos acontecimentos.
Deus fez brilhar suas obras para que o homem O conhecesse por elas: “Narram os céus a glória de Deus, e o firmamento anuncia a obra de suas mãos” (Sl 18, 20) |
Entretanto, estes vestígios da religião natural primitiva estavam infelizmente mesclados com deturpações diabólicas como o politeísmo, práticas antinaturais e magia. Daí a já mencionada advertência do Apóstolo São Paulo.
A Providência no Antigo Testamento
Se bem que o termo providência seja aplicado a Deus somente três vezes no Antigo Testamento (Eclesiastes 5, 5; Sabedoria 14, 3 e Judite 9, 5), e uma vez à Sabedoria (Sabedoria 6, 17), a doutrina geral da Providência é ensinada de modo consistente tanto através do Antigo quanto do Novo Testamento.
A Bíblia tem o objetivo de mostrar esse governo do mundo, e especialmente da humanidade, pela Providência divina. Esse é, por exemplo, o papel dos livros históricos do Antigo e do Novo Testamento ao narrar-nos os sucessivos empreendimentos divinos com relação aos homens. Do mesmo modo, os livros proféticos anunciam com antecipação esses empreendimentos. E os livros sapienciais ou doutrinários constituem sua apologia.
Quer Deus entretanto a cooperação do homem, o qual deve saber que depende inteiramente do Criador: “Se o Senhor não edificar a casa, em vão trabalham os que a constroem. Se o Senhor não guardar a cidade, debalde vigiam as sentinelas”, diz o Salmista (Sl 126, 1). Por isso mesmo é Deus que toma a iniciativa de instruir seus filhos: “Meu filho, ouve-me, adquire uma instrução sadia, torna o teu coração atento às minhas palavras. Dar-te-ei um ensino muito exato, vou tentar explicar-te o que é a sabedoria; torna o teu coração atento às minhas palavras, pois vou descrever-te com exatidão as maravilhas que Deus, desde o início, fez brilhar nas suas obras, e vou expor, com toda a veracidade, o conhecimento de Deus. Por decreto de Deus suas obras existem desde o começo; desde a criação distinguiu-as em partes. Colocou as principais em suas épocas, adornou-as para sempre; elas não sentiram necessidade nem fadiga, e nunca interromperam seu trabalho” (Cfr. Eco. 16, 24 e ss.).
Quer dizer, Deus fez brilhar suas obras para que o homem O conhecesse por elas: “Narram os céus a glória de Deus, e o firmamento anuncia a obra de suas mãos” (Sl 18, 20). E o sofrido Jó acrescenta: “Entre todos esses seres, quem não sabe que a mão de Deus fez tudo isso, Ele que tem em mãos a alma de tudo o que vive, e o sopro de vida de todos os humanos?” (12, 9-10).
Pode-se a isso acrescentar o que diz o Livro da Sabedoria (13, 1): “São insensatos por natureza todos os que desconheceram a Deus, e, através dos bens visíveis, não souberam conhecer Aquele que é, nem reconhecer o Artista, considerando suas obras”.
Dos vários livros do Antigo Testamento podemos extrair as seguintes afirmações: Deus ama os homens (Sb 11, 25), deseja a salvação de todos (Is 45, 22), e sua Providência estende-se a todas as nações (Dt 2, 19). Ele não deseja a morte do pecador, mas que se arrependa (Ez 18, 20), porque o Criador, acima de todas as coisas, é um Deus misericordioso, e um Deus de muita compaixão (Ex 34, 6).
O que não exclui o fato de que Ele premia os homens de acordo com suas obras (Jó 34, 10). De sua cólera não se pode escapar (Jó 9, 13), e ninguém pode prevalecer contra Ele (Sb 11, 22). Se o mau é poupado por um tempo (Jr 12, 1), receberá finalmente sua punição se não se arrepender (Jr 12, 13), enquanto que o bom, ainda que sofra por um momento, será confortado por Deus (Sl 90, 15). Deus usa o sofrimento como instrumento pelo qual treina os homens como um pai treina seus filhos (Dt 8, 1-6); de modo que verdadeiramente o mundo luta pelo justo (Sb 16:17).1
“Dar-vos-ei um coração e um espírito novo”
“Olhai as aves do céu: não semeiam nem ceifam, nem recolhem nos celeiros, e vosso Pai celeste as alimenta. Não valeis vós muito mais que elas?” (Mateus 6, 26) |
O Antigo Testamento marca bem, como vimos, sempre no plano sobrenatural, as soberanas iniciativas da ação divina em relação à vontade humana, que se revela, no entanto, a mais autônoma das causas criadas neste mundo. Deus facilita de todos os modos, quase que constrange o homem a seguir suas vias, mas não lhe tira o livre arbítrio.
Assim, o Altíssimo diz pela boca de Ezequiel:“Dar-vos-ei um coração novo, e em vós porei um espírito novo; tirar-vos-ei do peito o coração de pedra e dar-vos-ei um coração de carne. Dentro de vós meterei meu espírito, fazendo com que obedeçais às minhas leis e sigais e observeis os meus preceitos”(36, 26-27).
Pois, como acrescenta o autor dos Provérbios: “O coração do rei é uma água fluente nas mãos do Senhor: ele o inclina para qualquer parte que quiser” (21, 1).
Era também desse modo que a Providência divina dirigia o povo eleito do Antigo Testamento: “Israel, porém, foi visivelmente o quinhão do próprio Deus. Todas as suas obras lhe são claras como o sol, e seus olhos observam sem cessar o seu proceder. As leis de Deus não são eclipsadas pela iniqüidade deles, e todos os pecados que cometem estão diante do Senhor” (Eclo 17, 13 ss.).
Sendo isso assim, o homem sente necessidade de invocar o auxílio do Altíssimo para bem agir. Foi o que fez Judite quando determinou matar o ímpio Holofernes: “Lembrai-vos, Senhor, de vossa promessa; inspirai as palavras de minha boca e dai firmeza à resolução de meu coração, para que a vossa casa vos permaneça (para sempre) consagrada e que todos os povos reconheçam que só vós sois Deus e que não há outro fora de vós” (11, 18).
O mesmo pensamento exprime o Salmista: “Cada uma de minhas ações vossos olhos viram, e todas elas foram escritas em vosso livro; cada dia de minha vida foi prefixado, desde antes que um só deles existisse”. E, diante da pequenez do homem face à imensidade do Altíssimo, ele exclama: “Ó Deus, como são insondáveis para mim vossos desígnios! E quão imenso é o número deles! Como contá-los? São mais numerosos que a areia do mar; se pudesse chegar ao fim, seria ainda com vossa ajuda”, pois o homem nada é sem Deus (Sl 138, 16 e ss.).
São Paulo, quando se dirige aos atenienses no Areópago, explica-lhes que há um Deus previdente que criou e mantém o Céu e a Terra |
A Providência no Novo Testamento
“Considerai como crescem os lírios do campo; não trabalham nem fiam. Entretanto, eu vos digo que o próprio Salomão, no auge de sua glória, não se vestiu como um deles” (Mateus 6, 28). |
No Novo Testamento, Nosso Senhor Jesus Cristo estende-se bastante sobre a Providência divina. Ele não podia ser mais claro do que em Mateus (6, 25 e ss.): “Eis que vos digo: não vos preocupeis por vossa vida, pelo que comereis, nem por vosso corpo, pelo que vestireis. A vida não é mais do que o alimento e o corpo não é mais que as vestes? Olhai as aves do céu: não semeiam nem ceifam, nem recolhem nos celeiros, e vosso Pai celeste as alimenta. Não valeis vós muito mais que elas? Qual de vós, por mais que se esforce, pode acrescentar um só côvado à duração de sua vida? E por que vos inquietais com as vestes? Considerai como crescem os lírios do campo; não trabalham nem fiam. Entretanto, eu vos digo que o próprio Salomão, no auge de sua glória, não se vestiu como um deles. Se Deus veste assim a erva dos campos, que hoje cresce e amanhã será lançada ao fogo, quanto mais a vós, homens de pouca fé? Não vos aflijais, nem digais: Que comeremos? Que beberemos? Com que nos vestiremos? São os pagãos que se preocupam com tudo isso. Ora, vosso Pai celeste sabe que necessitais de tudo isso. Buscai em primeiro lugar o Reino de Deus e a sua justiça e todas estas coisas vos serão dadas em acréscimo”.
Ainda em São Mateus (10, 20 a 31), nosso Divino Mestre insiste: “Não se vendem dois passarinhos por um asse? No entanto, nenhum cai por terra sem a vontade de vosso Pai. Até os cabelos de vossa cabeça estão todos contados. Não temais, pois! Bem mais que os pássaros valeis vós”.
São Paulo, quando se dirige aos atenienses no Areópago, explica-lhes que há um Deus previdente que criou e mantém o Céu e a Terra: “O Deus, que fez o mundo e tudo o que nele há, é o Senhor do céu e da terra, e não habita em templos feitos por mãos humanas. Nem é servido por mãos de homens, como se necessitasse de alguma coisa, porque é Ele quem dá a todos a vida, a respiração e todas as coisas. Ele fez nascer de um só homem todo o gênero humano, para que habitasse sobre toda a face da terra. Fixou aos povos os tempos e os limites da sua habitação. Tudo isso para que procurem a Deus e se esforcem por encontrá-lo como que às apalpadelas, pois na verdade ele não está longe de cada um de nós. Porque é nele que temos a vida, o movimento e o ser, como até alguns dos vossos poetas disseram: Nós somos também de sua raça” (At 17, 24 e ss.).
O pensamento sobre a Providência divina na Igreja primitiva
Na Igreja dos primeiros tempos, para os Padres da Igreja grega, a existência dessa Providência divina que tudo dirige, ordena e mantém, é apresentada como uma verdade fundamental que a Revelação pressupõe, e da qual ela constitui a mais brilhante testemunha. Para eles, a negação dessa Providência levaria consigo a recusa de aceitar toda a economia cristã, e contradiria mesmo uma das conclusões mais seguras da filosofia helênica.2
Já entre os Padres apostólicos (assim chamados porque tiveram alguma relação direta ou indireta com os Apóstolos), não há um que faça tão freqüente menção da divina providência quanto São Clemente de Roma, terceiro sucessor de São Pedro, em sua célebre Epístola aos Coríntios.
Nela ele afirma: “Os céus, girando sob seu governo, estão sujeitos a Ele em paz. O dia e a noite seguem o curso estipulado por Ele, sem de nenhum modo atrapalhar-se mutuamente. O sol e a lua, em companhia das estrelas, giram com harmonia de acordo com sua ordem, dentro dos limites prescritos, e sem nenhum desvio. A terra frutuosa produz alimentos em abundância de acordo com sua vontade, em estações estabelecidas, para homens, bestas e todos os seres vivos que há nela, nunca hesitando nem mudando nenhuma das ordenações por Ele fixadas [...] Tudo isso o grande Criador e Senhor de todas as coisas determinou que existisse em paz e harmonia. Enquanto Ele faz bem a todos, contudo mais abundantemente a nós, que procuramos como refúgio suas compaixões através de Jesus Cristo, Nosso Senhor, a quem seja dada glória e majestade por todos os séculos”. Por isso, acrescenta ele, é-nos necessário imitar a Deus, que não cessa de fazer o bem. E imitar a ordem e a harmonia que reinam em suas obras.
Tirando depois uma aplicação prática desse ensinamento, esse Papa dos primeiros séculos afirma aos coríntios que, desse modo, os cristãos devem respeitar também a ordem eclesiástica, que foi estabelecida por Deus tanto na antiga aliança quanto na nova. E, nessa mesma ordem de idéias, na qual o governo divino e o governo eclesiástico se juntam, afirma ele que Deus é chamado “o Criador e o bispo de todo espírito”, e Nosso Senhor Jesus Cristo, no qual se consumam todos os dons de Deus, é “o grande padre de nossas oblações”.3
São Justino Mártir, que nasceu por volta do ano 100 e foi martirizado em Roma em 165, julga que a questão da providência e a da unidade de Deus e de sua “monarquia” deve ser o objeto principal das pesquisas filosóficas. Como apologista, ele dá um valor particular ao argumento profético: não somente as condutas de Deus são ordenadas, mas Ele as revelou antecipadamente, a fim de que, vindo o momento, possamos reconhecer com certeza sua ação.
O santo explica como a Providência divina dirige o universo por meio de intermediários angélicos, e põe em relevo também o papel dos demônios nos acontecimentos, por permissão de Deus.4
Já para Santo Irineu, bispo de Lyon, na França, no século II, certos pagãos, menos dominados pelas voluptuosidades culpáveis e pelo culto dos ídolos, puderam conhecer alguma coisa de Deus Pai, Criador de todas as coisas, que governa o mundo.
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