[do blog avidasacerdotal]
09 Oct 2011
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Hilaire Belloc |
[Tradução: Nina Batista]
Usura não
significa juros altos, e sim qualquer cobrança de juros, mesmo baixos,
sobre um empréstimo improdutivo. Não é apenas imoral (tendo sido, em
decorrência disso, condenada por todos os códigos morais – pagãos,
maometanos ou católicos), mas também, em última análise, destrutiva da
sociedade. Somente tornou-se prática usual do nosso comércio após o
colapso europeu que se seguiu à Reforma Protestante. A Usura destruirá
nossa sociedade, mas não há como escapar-lhe nesse meio-tempo.
Aproximamo-nos do final de sua ação maléfica, não devido à
conscientização sobre seus males, mas sim por ela beirar o esgotamento
de seus recursos. Os empréstimos da Grande Guerra, usurários em sua
quase totalidade, aceleraram intensamente esse processo.
O mundo
moderno se organiza segundo o princípio de que o dinheiro, por sua
própria natureza, gera dinheiro. Uma soma em dinheiro emprestada,
segundo nosso sistema atual, tem o direito intrínseco à cobrança de
juros. Trata-se de um falso princípio, tanto em termos econômicos quanto
morais. Após arruinar Roma, vem-nos conduzindo ao nosso fim.
Suponhamos
que um homem o procure e diga: “Há um terreno junto ao meu excelente
para construção. Se eu construir ali uma boa casa, conseguirei alugá-la
com lucro líquido de 100 libras esterlinas ao ano, já considerado o
pagamento de todas as taxas, impostos e reparos. Só que não disponho de
capital para construir a casa. O terreno custará 50 libras e a casa,
950. O senhor me emprestará mil libras, de forma que eu compre o
terreno, construa a casa e desfrute dessa pequena renda?” Sua provável
resposta seria: “E o que receberei em troca? Certo, o senhor ficará com
suas 100 libras ao ano. Mas só as conseguirá graças ao meu auxílio, o
que me confere o direito à participação nos lucros. Havemos de
dividi-los meio a meio. O senhor retira sua parte de 50 libras ao ano
pelo conhecimento da oportunidade e por seu trabalho e me repassa as
outras 50. Elas representam 5% do meu investimento, e ficarei
satisfeito”.
Essa
resposta, considerando-se a propriedade como direito moral, constitui
oferta perfeitamente lícita. Ao aceitá-la, o indivíduo que solicitou o
empréstimo nada tem a reclamar. Por muito tempo (teoricamente, para
sempre) seria possível continuar retirando cinco por cento do valor
emprestado sem qualquer peso na consciência.
Agora,
suponhamos que esse homem o procure e diga: “Conheço o caso de um senhor
de meia idade subitamente acometido por terrível doença. Um tratamento
médico que custa mil libras esterlinas salvará sua vida, mas ele nunca
mais poderá exercer qualquer trabalho. Ele recebe uma pensão de 100
libras ao ano, que garantirá sua subsistência após a operação e o
tratamento subsequente. O senhor emprestará as mil libras? Elas serão
devolvidas na ocasião de sua morte, por conta de um seguro de vida no
valor de mil libras.” Sua resposta: “Emprestarei as mil libras para
salvar sua vida, mas exijo metade da pensão anual, ou seja, 50 libras ao
ano, por cada ano que ele ainda venha a viver; e ele terá de sobreviver
como puder com as 50 libras restantes da pensão.” Caso ainda lhe
restasse alguma sensibilidade, essa proposta o faria sentir-se um
patife, e caso contrário – tendo-se tornado um, de fato, pela ação do
que foi chamado pelo poeta de “longas jornadas de endurecimento e
decadência da alma” – ainda assim seria uma atitude abjeta, embora não
lhe causasse a menor inquietude.
Parece,
portanto, que certas condições permitem, de forma legítima e moral,
emprestar mil libras com cinco por cento de juros mantendo perfeita paz
com a própria consciência, e outras não.
Vejamos agora a questão sob outra perspectiva.
Quando a
cidade norte-americana de Boston foi fundada, há trezentos anos, um
homem de Londres que se propôs a para lá emigrar deixou uma quantidade
de ouro no valor de mil libras esterlinas aos cuidados de um ourives
londrino permitindo que fizesse uso do dinheiro até que ele ou seus
herdeiros o reclamassem, mas com a condição de que cinco por cento do
capital deveria render juros compostos até a retirada. O emigrante não retornou. Com o avanço do século XVII, o empreendimento se desenvolveu, assim como muitos outros, em uma espécie de banco. No
início do século XVIII, já era um banco em plena forma, e seu sucessor
atual faz parte de um dos maiores sistemas bancários de nossos tempos. O depósito original “rendeu frutos”, como se costuma dizer, com a dívida se acumulando sem ninguém para reivindicá-la.
Por fim, neste ano de 1931, eis que surge um herdeiro capaz de comprovar seu direito. A soma de capital alcançada pelo modesto investimento de mil libras a cinco por cento deve ser paga a ele por ordem judicial. Consegue imaginar o montante alcançado? – Mais do que o dobro da receita anual dos Estados Unidos na atualidade.
Tomemos um exemplo menos extravagante e talvez mais convincente. Supondo
que um homem tenha emprestado dez mil libras esterlinas em regime de
hipoteca, com juros de seis por cento, sobre a propriedade de um senhor
inglês no início da Guerra da Independência dos Estados Unidos, em 1776: tal propriedade renderia 600 libras por ano ao credor. A dívida não foi cobrada. O
constrangido senhor teve permissão para adicionar ao valor principal os
pagamentos anuais devidos, de forma que o total fosse acrescido da taxa
de juros compostos de seis por cento.
Não se trata de uma suposição de todo impossível. Imagina o que o credor da hipoteca poderia exigir da propriedade nos dias de hoje? Quase cinco milhões de libras ao ano!
Nenhum
desses exemplos poderia ocorrer na prática, uma vez que a lei proíbe
acumulação tão prolongada. Mas o próprio fato de que a lei viu-se
obrigada a aplicar tal proibição comprova haver algo de errado com a
noção atual, aplicada de forma generalizada, de que o dinheiro “faz jus”
a determinada taxa de juros, tendo a ela direito moral,
independentemente da forma como o capital seja empregado.
Pois o que
há de comum a todos esses exemplos é o fato evidente de que os juros
sobre um empréstimo podem constituir, sob certas circunstâncias de tempo
ou extensão, uma exigência de tributação impossível. Podem
representar em determinado contexto um tributo moralmente indevido, que
não traduz produção extra de riquezas gerada pelo investimento
original. Sob
certas condições, os valores exigidos não equivalem mais o fruto do
investimento original, não correspondendo, portanto, à remuneração de
parte dos lucros, mas sim a um pagamento a ser feito, se possível, a
partir de quaisquer outros bens que o devedor possa obter. E esse
tributo, além de certo ponto, torna-se mesmo impagável, devido à
inexistência na sociedade dos meios suficientes para tanto.
Que circunstâncias são essas? Que condições distinguem a exigência de juros moralmente legítima da ilegítima?
A distinção
se dá entre a cobrança moral de parte dos frutos de um empréstimo
produtivo e a exigência imoral de (1) juros sobre um empréstimo
improdutivo ou (2) juros superiores ao incremento anual em riquezas
efetivas geradas por um empréstimo produtivo. Tal exigência “esgota” – “consome” – “exaure” as riquezas do devedor, sendo por isso denominada “Usura”. Uma derivação imprecisa em termos filológicos, mas correta sob o ponto de vista moral, conecta o termo latino “usura” à ideia de destruir, “exaurir”, e não à idéia original do termo “usus,” “uso”.
A Usura,
portanto, é a cobrança de juros sobre um empréstimo improdutivo ou de
juros superiores ao incremento real gerado por um empréstimo produtivo. É a exigência de algo ao qual o credor não tem direito, como se eu dissesse: “Pague-me
dez sacas de trigo ao ano pelo aluguel destes campos”, após os campos
terem sido tragados pelo mar ou terem passado a produzir anualmente
muito menos do que as dez sacas de trigo.
Devo, com relutância, introduzir aqui um significado coloquial do termo “Usura” que confunde o raciocínio. As pessoas falam de “juros usurários” referindo-se a juros muito elevados. A forma como surgiu essa confusão é elementar. Juros
muito elevados são geralmente superiores à riqueza real produzida até
mesmo por um empréstimo produtivo, e cobrá-los significa, de fato,
cobrar mais do que a produção do empréstimo original; mas não há nada na
taxa de juros per se que a torne usurária. É possível cobrar juros de cem por cento sobre um empréstimo e estar em pleno exercício de seus direitos morais.
Por exemplo,
uma pequena área de mineração que produzia 15 kg de ouro por ano tem a
súbita oportunidade de produzir 200 vezes essa quantidade – 3.000 kg –
com a obtenção do capital equivalente a apenas 30 kg para
desenvolvimento. O credor desse novo capital não tem a obrigação moral de ceder ao devedor, como presente, os lucros imensamente maiores. É
legítimo que reivindique sua parte; ele poderia muito bem exigir metade
da nova produção, ou seja, 1.500 kg ao ano, 500 por cento sobre o
empréstimo, pois esses juros altos corresponderiam apenas à metade da
nova riqueza produzida. A
demanda desses 500 por cento não representaria cobrança de tributo
sobre riqueza inexistente, nem sobre riqueza que não foi criada pelo
capital investido.
Portanto, a
rigor a Usura nada tem a ver com a quantidade de juros cobrados, mas sim
com o fato de haver ou não um incremento produzido pelo capital
investido que seja pelo menos igual ao tributo exigido.
Caso seja
necessário avalizar uma posição moral tão evidente, esse aval pode ser
encontrado em todos os principais sistemas morais sancionados pelas
filosofias religiosas e sociais permanentes adotadas pela humanidade. Aristóteles[1] a proíbe, assim como São Tomás de Aquino. O
sistema ético maometano a condena [e, na prática, faz uma condenação
ininteligível, ao proibir muitos empréstimos que seriam úteis].[2]
Temos, em particular, a brilhante decisão do Quarto Concílio de Latrão
[1215].
Tudo certo até este ponto. Vejamos
agora o desenvolvimento muito interessante que se deu nos tempos
modernos, desde o rompimento de nosso sistema moral e religioso comum
europeu, com a Reforma Protestante. Após esse desastre, a Usura passou a ser gradualmente admitida. Tornou-se prática comum sancionada pela legislação, com pagamento imposto pela magistratura civil. Na
Inglaterra, foi sob o reinado de Cecil, no ano de 1571, que os juros,
embora limitados a dez por cento, tornaram-se legais, independentemente
da utilização do empréstimo. O
ano de nascimento do que se pode chamar “Usura Indiscriminada” foi
1609, quando, sob o Calvinismo, o Banco de Amsterdã iniciou sua próspera
carreira em estimular a capacidade dos afortunados e arruinar os
desafortunados. De
forma geral, os governos que se desligaram da unidade representada pela
Cristandade introduziram, um após o outro, a Usura legalizada, obtendo
vantagem sobre as nações conservadoras que se empenhavam em manter o
antigo código moral. Às
novas ideias morais, ou melhor, imorais assim introduzidas, devemos o
rápido desenvolvimento do sistema bancário nas nações “reformadas”, bem
como o controle financeiro que adquiriram e mantiveram por três séculos. Por
fim, todos se adequaram ao novo sistema, e hoje a Usura atua lado a
lado com o lucro legítimo e, confundida com ele, universalizou-se no que
já foi a civilização Cristã. É ponto pacífico que todo empréstimo deve produzir juros, sem questionamento quanto ao seu caráter produtivo ou improdutivo. Todo o aspecto financeiro de nossa civilização ainda se baseia nesse falso conceito.
Seria possível escrever um ensaio muito interessante sobre os mais recentes frutos de tal concepção em nossos tempos. Se porventura viesse a ser escrito, um bom título seria “O fim do reinado da Usura”. Afinal,
vem-se tornando muito claro que o vício inerente ao sistema
responsável, tempos atrás, pela derrocada da estrutura social do Império
Romano começa a fazer ruir também nossas transações financeiras
internacionais. Contudo, com a seguinte diferença: eles foram arruinados pela Usura particular e nós, pela pública.
Mas essas são digressões; voltemos ao assunto. Sendo
a Usura uma demanda por dinheiro inexistente (um tributo cobrado não
sobre a produção de capital, mas sobre uma margem superior a tal
produção, ou mesmo sem que haja produção alguma) e, uma vez admitida em
caráter universal, constituindo, de início, um mecanismo para a total
concentração das riquezas nas mãos dos credores e, por fim, para a
redução do restante da comunidade à servidão econômica; sendo a Usura,
em última análise, um sistema fadado a ruir sob seu próprio peso –
quando a demanda gerada for superior a toda a capacidade produtiva –
surge o questionamento: por que vem sendo praticada com sucesso há tanto
tempo? Por que parece estar nas origens de um progresso produtivo tão vasto em todo o mundo?
Ninguém
poderá negar seu uso bem-sucedido ao longo de tantas gerações, desde o
sólido estabelecimento como prática generalizada durante o século XVII. Nem seria possível negar que vem acompanhando (e acredito ter, em ampla medida, causado) a grande expansão moderna da produção. E
surge aqui uma daquelas aparentes contradições entre uma verdade
matemática direta e os resultados de sua negação na prática, tão comuns
na vida real. Convencida
por tais aparências (pois se trata apenas de aparências, e
enganadoras), a maioria dos homens abandona a reflexão abstrata e se
satisfaz com o resultado prático. É
por conta disso que, mesmo após tanto tempo, a simples menção da
palavra “Usura” e o debate de sua ética traz em si a impressão de algo
ridículo.
Há não muito tempo, qualquer pessoa diria que a atitude adotada aqui significaria escrever o próprio atestado de loucura. As
conclusões de qualquer raciocínio lógico sobre o assunto simplesmente
não eram levadas em conta, mas sim repelidas como noções imperfeitas,
características de épocas primitivas e acríticas, quando o homem ainda
não dominava a economia ou qualquer outra ciência.
O número
crescente, embora ainda restrito, de homens instruídos que passam a
suspeitar de tal desprezo pelo passado imemorial e pelas tradições
morais da Cristandade retira dessas objeções parte do peso que tinham na
geração anterior; ainda assim, elas exercem peso esmagador sobre a
maioria. Diante
da afirmação de que “a Usura é errada” ou mesmo de que “a Usura é
perigosa”, ou apenas de que “a Usura, a longo prazo, entrará em
colapso”, a grande maioria, ainda hoje, se recusará a discutir o
assunto. A maioria dos desatentos e todos os tolos o incluirão entre os defensores da teoria de que a Terra é plana.
O erro é
deles, e não nosso; ainda assim, o erro deles, como afirmei, possui
sólido embasamento prático, pois a Usura tem funcionado. A produtividade aumentou consideravelmente desde seu estabelecimento. Os três últimos séculos foram de imensa expansão, liderada precisamente pelos primeiros a abolir a moral Cristã.
Como explicar esse fato? A
explicação consiste em três reflexões: primeiro, quando a Usura é
permitida e aplicada em caráter universal, torna-se simples parte de uma
atividade geral de acumulação de capital para fins de investimento. Na época em que a Usura era ilegal e passível de punição, esse tipo de acumulação não era possível. Por
acaso, era também uma época em que a produção de riqueza em escala
crescente não representava a finalidade última da existência humana. De
qualquer modo, sob o ponto de vista exclusivamente econômico, o fim dos
questionamentos sobre a forma como o capital seria usado e o
estabelecimento da regra de que todo o capital faz jus ao recebimento de
juros, independentemente de como seja investido, logicamente criaram a
tendência de acúmulo mais rápido e, incidentalmente, a avidez dos homens
pela busca de oportunidades para fazer empréstimos, tanto produtivos
quanto improdutivos.
Ao mesmo
tempo, embora as causas fossem outras, veio o aumento do poder do homem
sobre a natureza, com uma curva de crescimento cada vez mais acentuada e
talvez ainda em progressão – embora haja sinais de fadiga e
interferência de causas externas ao campo da economia nesse processo, a
despeito da rápida escalada do conhecimento científico e da sua
aplicação econômica. Esse aumento em nosso poder sobre a natureza é o
segundo fator de mascaramento da falsa ação da Usura por tanto tempo. O
mal econômico da Usura estimulou e acompanhou a grande vantagem
econômica da acumulação para Produção, e a oportunidade para esse uso
legítimo do dinheiro originou-se de um afluxo de descobertas geográficas
e de novas conquistas das Ciências da Natureza. O
terceiro motivo pelo qual a Usura ainda não concretizou seu total
efeito nefasto é que, há tempos, vem sendo detida automaticamente por
repetidos colapsos que anularam as reivindicações usurárias. O capital de empréstimos improdutivos deixou de receber seus tributos, que tiveram de ser cancelados. Verdade
seja dita, a Usura sobre esse tipo de capital é geralmente a última a
ser cancelada;[3] ainda assim, tal cancelamento se dá de forma contínua,
promovendo a restrição intermitente dos tributos imerecidos e impedindo
que o verdadeiro caráter de tais tributos se mostre em sua máxima
potência.
O século
XIX, especificamente, e ainda mais o início do século XX, estão repletos
de exemplos desses colapsos – um sem-número deles. Uma soma em dinheiro é investida em determinada empresa. A empresa não atende às expectativas. Embora o dinheiro não produza mais juros legítimos, são emitidas debêntures, com garantia de juros estritamente usurários. Esses
juros são pagos por algum tempo, até que, por fim, chega-se a um ponto
em que nem mesmo os juros da debênture podem ser pagos.Todo o negócio se desfaz e o tributo usurário não pode mais ser exigido. É possível ver esse processo em funcionamento hoje em muitos setores da indústria têxtil. A
fábrica está em dificuldade; o banco concede um empréstimo com a
atribuição de juros, embora não haja superávit de riqueza em relação ao
custo da produção. Os
juros são pagos a partir de fontes externas; mas o processo não pode
continuar eternamente e, em dado momento, o banco tem de cancelar o
empréstimo como dívida incobrável.Como
o banco continua a extrair recursos de outros investimentos
bem-sucedidos e lucrativos, prossegue próspero a gerar dinheiro, sua
receita aumenta, e a parte perdida por conta do colapso da Usura é
ocultada no esquema produtivo geral. Não se faz distinção entre o
caráter usurário de determinados recebimentos e o caráter legítimo da
maioria. Mas,
quando uma sociedade exibe sinais de decadência econômica, a verdadeira
natureza da Usura, submersa e oculta nos tempos de prosperidade,
fatalmente emerge acima da superfície.
Há muitos anos, o Sr. Orage, escrevendo em seu jornal, The New Age,
traçou a esse respeito um dos muitos quadros ilustrativos vívidos da
questão, com o talento para a exposição que o tornou famoso. Ele partiu do exemplo de um oásis de palmeiras no deserto com um suprimento de água alcançado por meios bastante primitivos. Eis que surge um financiador disposto a emprestar dinheiro para o desenvolvimento. O
capital é empregado de forma produtiva; poços artesianos são
perfurados; o suprimento de água aumenta em grande escala; instaura-se
maior organização do cultivo de palmeiras; a produção do oásis cresce
com rapidez de um ano para outro; a demanda legítima de lucros pelo
financiador faz parte do total de riqueza extra anual, cuja existência
se deve ao seu empreendimento. Todos participam da prosperidade geral.
Então, seja
devido a desgaste, guerra, epidemia, variações no mercado externo ou
alguma calamidade climática, as coisas começam a dar errado. A riqueza produzida anualmente pelo oásis decai. Contudo, ainda é preciso pagar os juros sobre o dinheiro emprestado. À
medida que aumenta o constrangimento dos agricultores, eles contraem
empréstimos para pagar os juros até um ponto de “sobreposição” em que,
paradoxalmente, o banqueiro parece cada vez mais próspero, embora a
comunidade que o sustenta o seja cada vez menos. Mas, pela simples aritmética, o processo precisa ter um fim. Chegará
o momento em que o agricultor não mais conseguirá obter dinheiro para
pagar os juros, que há muito deixaram de ser moralmente devidos. A mera coerção, sob um sistema policial todo-poderoso, já lhe arrancou até os últimos centavos. A
“sobreposição” entre prosperidade real e aparente – apenas financeira
ou burocrática – deixa de existir; e a riqueza temporária desfrutada
pelo credor chega ao fim, tal como ocorrera com a prosperidade real do
devedor.
Em outras
palavras, a grande prosperidade bancária em determinado período pode
ser, e geralmente é, prova da prosperidade geral naquele período; mas
não necessariamente, e nem sempre é assim. Uma não é o complemento inevitável da outra.
A essas conclusões gerais, há outra objeção que será feita prontamente por qualquer pessoa com razoável conhecimento histórico:
“O senhor
afirma” [diz o objetor] “que em outros tempos, quando a Fé tinha alcance
universal – época que talvez o senhor considere mais sadia, embora
houvesse certamente muito menos riqueza e fosse preciso lidar com uma
população, além de mais simples, muito menor – a Usura era proibida. Isso é verdade. Porém,
o senhor erra ao argumentar que existe uma diferença essencial entre
aquela época e a nossa, mais exatamente em relação ao passado recente,
que o senhor denomina “o reino da Usura”, com a prevalência de uma ética
diferenciada em cada um desses períodos. O senhor confunde o que é proibido com o que não é feito. É verdade que o código moral da Cristandade em tempos Católicos proibia a Usura e a punia; até mesmo na época das Cartas Provinciais de
Pascal, os homens sentiam indignação moral para com a Usura e, até o
final do século XVIII, a punição continuava a ser exercida nos tribunais
e a vigorar nos códigos legais onde quer que a Igreja detivesse poder. Mas, a bem da verdade, a Usura sempre existiu, pois sempre deverá existir. É impossível traçar uma linha divisória entre os empréstimos produtivos e os improdutivos. O
dinheiro emprestado a um doente pode criar as condições para que ele
volte a ser produtivo, sendo considerado, portanto, um empréstimo
indiretamente produtivo, apesar da intenção originalmente improdutiva. O
valor de um empréstimo contraído por um perdulário para seus prazeres
pode, no evento de sua morte antes que tivesse tempo de gastá-lo, ser
transferido a um herdeiro econômico, que irá investi-lo de forma
produtiva. Tais considerações sempre exerceram forte influência sobre a mente humana. Por isso encontramos a Usura amplamente disseminada, mesmo em épocas e sociedades que a condenavam sob o ponto de vista moral.
“Além do
mais, mesmo naqueles casos onde é possível [o que certamente não é a
regra] traçar uma linha exata entre os empréstimos produtivos e os
improdutivos, há inúmeras formas de se burlar a proibição de cobrar
juros sobre um empréstimo improdutivo, evadindo-se
ao dever de descobrir se o empréstimo é produtivo ou não. Por exemplo,
os governos Católicos, tanto quanto os Protestantes, emitiam os que os
franceses denominaram “Rentes” – compromissos governamentais de pagamento de renda anual. Henrique IV da França, após sua conversão, era especialmente ativo nesse tipo de empréstimo. Filipe
II da Espanha, o grande defensor do Catolicismo, afundou-se até o
pescoço em constrangimento por tomar empréstimos a juros altos –
ironicamente, das mesmas pessoas que vinham destruindo sua renda. Um
governo preparando-se para ir à guerra – ou seja, prestes a gastar
dinheiro em uma atividade normalmente improdutiva – implorava aos
financiadores que comprassem direitos anuais sobre sua receita; e não
existe qualquer diferença entre isso e a prática moderna de emissão de
títulos da dívida pública. Havia ainda o óbvio método de assinar uma nota promissória em troca de dinheiro e receber uma soma menor do que a mencionada. Thomas
Cromwell, de piedosa memória, foi adepto incondicional dessa prática,
em uma época na qual toda a moralidade Católica em relação à Usura ainda
era incontestável. Muito
antes, em plena Idade Média, os príncipes tomavam empréstimos
constantes para suas guerras – principalmente do recém-surgido sistema
bancário italiano; e ainda antes, quando a Usura era privilégio
excepcional, mas concedido legalmente aos judeus, e fonte de imensa
renda para os príncipes Cristãos sob os quais viviam, a prática era
admitida abertamente. Assim, a Usura sempre ocorreu na sociedade humana. E sempre ocorrerá; toda discussão sobre o assunto é meramente acadêmica e fútil.”
A isso, respondo que o raciocínio lógico sobre assuntos práticos jamais é fútil. Se
eu afirmar que o consumo excessivo de álcool faz mal à constituição
física do ser humano, especialmente após certa idade, não é resposta
satisfatória apresentar-me exemplos de alcoólatras que viveram até os
noventa anos. O efeito danoso do excesso de álcool é algo demonstrável e, para qualquer pessoa de mente honesta, inquestionável. É uma simples questão de submeter à razão a experimentação e a experiência. Nos
casos em que a experiência parece contradizer conclusões verdadeiras, o
que de fato contradiz tais conclusões são outras forças, que não
esvaziam seu caráter de verdade.
O mesmo se dá com a verdade sobre a Usura. Seus efeitos empobrecedores, enquanto mascarados ou contrabalançados pela atuação de forças mais potentes, são negligenciados. No entanto, continuam a existir e estão sempre em atividade. Há
grande utilidade prática em saber da existência de uma verdade, mesmo
que oculta. Esse conhecimento é algo a ser mantido como um trunfo para
permitir a ação quando chegar o momento crítico de sua aplicação.
Em
seguida, é preciso apontar que existe toda a diferença do mundo entre um
sistema que admite um princípio imoral e outro que nega tal princípio,
embora a imoralidade seja praticada.
Estão presentes na sociedade, e provavelmente sempre estarão, inúmeros
casos de adultério, assassinato, fraude e tudo o mais; contudo, existe
enorme diferença entre a sociedade onde os direitos à propriedade são
admitidos, o casamento é sagrado e tirar uma vida humana é abominável, e
outra onde as relações sexuais são promíscuas, o Comunismo prevalece ou
o assassinato para fins de vingança particular ou por mero impulso
constitui passatempo aceitável. Assassinar
um desafeto, fugir com a esposa do vizinho e até mesmo bater a carteira
de alguém ainda estão entre as anomalias da nossa sociedade: anomalias
que nós, pessoas antiquadas, atribuímos à Queda do Homem, mas cuja
ocorrência nem o mais entusiástico pelagiano poderá negar. Existe
toda a diferença do mundo entre uma sociedade onde esses lapsos
continuam a existir, ou mesmo são tolerados, e outra onde são
considerados positivos. [ênfase acrescentada]
O homem se sustenta sobre duas pernas, mas pode apoiar-se em uma ou em outra.Assim
(para utilizar um exemplo que desenvolvo em outro ensaio), a sociedade,
no que se refere à lei, precisa insistir tanto na justiça quanto na
ordem; e, sem dúvida, em qualquer sociedade civilizada a justiça tende a
ser sacrificada em benefício da ordem.Mas
existe toda a diferença do mundo entre o ambiente e o caráter de uma
sociedade onde a injustiça é considerada mais abominável do que a
desordem e outra onde a desordem é considerada mais abominável do que a
injustiça. Duas partes de um elemento químico para quatro partes de outro resultarão em determinado produto.Alterando-se as proporções, surgirá um produto inteiramente diferente. Uma
sociedade em que a Usura, embora praticada, é considerada imoral (não
totalmente, admito, para benefício do desenvolvimento econômico) é muito
diferente de outra onde é considerada moral. Uma
sociedade onde o credor considera seu dever moral examinar o objetivo
de um empréstimo antes de levar em conta seu lucro pessoal é diferente
de outra onde não se espera que faça tal coisa. Um
mundo onde os juros sobre empréstimos improdutivos são repudiados e o
Usurário é um malfeitor constitui sociedade muito distinta de outra onde
os homens deixaram de questionar se um empréstimo irá ou não gerar
lucro; e, ademais, é diferente de outra como a nossa, onde juros sobre
qualquer empréstimo são exigidos como uma espécie de direito moral
sagrado, sem qualquer relação com a produtividade do empréstimo – ou a
ausência dela.
Bem, como para todo mal deve haver um remédio, o que podemos dizer da Usura nos tempos atuais? Como insisto em tratar-se de uma discussão de caráter prático, e quanto à prática?
Suponhamos que nosso oponente tenha sido convencido; deixemo-lo replicar:“Concordo que a Usura seja um mal. E
mais, estou inclinado a concordar que, por fim, começamos a perceber
seus efeitos nefastos em todo o mundo – principalmente pelo assustador
exemplo dos empréstimos da Grande Guerra. Então, o que devemos fazer a respeito?”
A isso, respondo, por minha vez, que não se pode fazer nada de imediato. Não se pode eliminar uma parte essencial de qualquer estrutura social existente. Todo
o mundo de hoje se assenta sobre a estrutura bancária, e todo o sistema
de investimentos considera normalmente impossível qualquer consulta
sobre o caráter produtivo ou improdutivo de um investimento.
Há casos
especiais, de cunho particular, onde se pode fazer a distinção
claramente, e nesses casos verifica-se a ação dos homens de bem (como no
caso dos empréstimos a indivíduos do nosso círculo de conhecimentos),
pois a consciência humana atua em todos os momentos, ainda que na
sociedade mais corrupta e complexa. Mas, em noventa e nove por cento dos casos, é impossível fazer essa distinção. Um homem se sacrifica para economizar. Ele
precisa aplicar suas economias em um sistema que considera normal a
cobrança de juros sem qualquer análise, e onde todos os infinitos
detalhes de um sistema mundial de produção, distribuição e intercâmbio
se baseiam há tanto tempo na aceitação da Usura – bem como no cálculo
muito mais amplo dos lucros legítimos – que, na prática, não é mais
possível distingui-los, assim como seria impossível separar as cores no
tonel de um tintureiro. Se
eu me ausentar por seis meses e deixar dinheiro depositado no banco,
dificilmente poderei perguntar o que o banco fará com ele; e, mesmo que o
fizesse, eles não me poderiam dizer. Ninguém poderia afirmar qual a
parte destinada a alimentar animais em uma fazenda de extração de peles
no Canadá; quanto se destinaria a um jovem que vem fazendo grandes
retiradas com suas ações e gastando tudo em uma vida desregrada; e
quanto contribuiria para o desenvolvimento de uma mina produtiva nos
Andes. Que
homem, em sã consciência, hesitaria em depositar o resultado de sua
abnegação cotidiana em um título de renda fixa, ou suas modestas mil
libras esterlinas em um Empréstimo de Guerra – esse exemplo gritante de
Usura? O sistema precisa prosseguir até seu colapso, e mesmo a palavra “colapso” é imprecisa. Se a história servir como guia, o termo certo será “decadência”. Um pensamento animador.
Fiz bem em chamar este livro de Ensaios de um Católico, em vez de Ensaios Católicos. Pois,
caso se tornasse uma questão de disciplina Católica que os homens de
hoje não se envolvessem nessa prática impura – o empréstimo improdutivo
com cobrança de juros – tal disciplina já nasceria condenada. Não seria possível obedecer à ordem eclesiástica. Se,
ao propor tal análise, eu envolvesse também meus companheiros Católicos
nas conclusões peculiares alcançadas, causaria prejuízo não apenas ao
senso comum de meus confrades, mas também ao seu senso de humor.
Todavia, como já previu um perfumista ao batizar sua fragrância, “Un jour viendra” – “Chegará um dia”.
__________________
Notas
1. Quando
eu, ainda garoto em Oxford, começava a articular minhas ideias, um
sábio professor nos assegurou em sua preleção que o texto de Aristóteles
deve ter sido adulterado, pois ele jamais poderia ter dito algo tão
tolo como chamar a usura de errada. Do que São Tomás de Aquino a chamou, aposto que ele nunca soube.
2. Descobri
em Túnis, há três anos, que um plantador de oliveiras muçulmano com o
propósito de contrair empréstimo para o desenvolvimento de sua
propriedade não podia obter o dinheiro de outros muçulmanos, mas
precisava pedi-lo aos europeus.
3. Vide os
juros continuados ainda pagos sobre créditos bancários por nossas
indústrias falidas. Outro excelente exemplo de cancelamento de juros
usurários é a redução das dívidas da França e da Itália para com os
Estados Unidos.
[Extraído de Essays of a Catholic, Tan Books, publicado originalmente em 1931.]

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