Do blog avidasacerdotal
19 Nov 2011
Sidney Silveira
Quando se diz que a metafísica, no plano natural,
é reitora de todas as demais ciências – que lhe estão fundamentalmente
subordinadas, por tomarem de empréstimo os seus princípios
universalíssimos –, está-se afirmando que sem metafísica as demais ciências são de alguma forma capengas, e é muito comum descambarem em erros primários. Isto porque, como observa Gredt no monumental Elementa Philosophiæ Aristotelico-Thomisticæ, o objeto material da metafísica é todo e qualquer ente (quodcumque ens), ao passo que o objetoformal da metafísica é o ente abstraído pelo intelecto — o ente totalmente imaterial (omnino imateriale). Ora, conhecer o que é de per si imaterial é conhecer a razão superior das coisas em suas causas íntimas e últimas; por isso, ao vermos físicos contemporâneos falar sobre a origem do universo, matemáticos palpitar sobre fenômenos qualitativos ou apressados gnosiólogos inventar modos de conhecer quiméricos, porque contrários ou alheios às potências da alma humana, constatamos de imediato a falta que faz uma sólida formação metafísica.
Não raro
o investigador, chegando ao limite do escopo de sua ciência, defrauda-a
ao querer ultrapassá-lo sem possuir elementos ou instrumentos para
tanto, e então simplesmente produz má-metafísica — gerando aberrações de
que a história da filosofia é pródiga em tantos exemplos que, por
vezes, se assemelha a um museu de bizarrices.
A propósito, a superioridade de Santo Tomás de Aquino em relação à média dos filósofos e das correntes de pensamento de todos os tempos está no fato de haver aplicado a sua metafísica do ser a
todas as ciências por ele estudadas – daí universalidade de seus
acertos em teoria do conhecimento, em antropologia, em psicologia, em
moral, no direito, em política, em teodicéia e até mesmo em teologia
sagrada, que não obstante seja ciência subalternante em relação a todas
as demais, devido ao grau de certeza que logra e ao objeto que estuda,
tem a metafísica como ancilla, como instrumento.
Daremos um exemplo disto abaixo:
Ø um trecho das Questões Disputadas Sobre a Alma, natradução de grande apuro técnico de Luiz Astorga,
que ainda não veio a lume pela editora É simplesmente porque estamos
inserindo várias notas explicativas e tomando decisões com relação a
diferenças entre os textos latinos consultados para a tradução: o da
edição leonina e do Corpus Thomisticum, do Prof. Enrique Alarcón.
Tudo em prol de uma edição final definitiva em língua portuguesa desta
obra do Aquinate copiosa e densa.
Escolhi a parte da referida obra-prima em que o Angélico se pergunta como poderiam as almas separadas do corpo que já se encontram no inferno padecer a pena do fogo corpóreo, sendo elas imateriais — indagação que também serve para o caso dos demônios. Trata-se do respondeo da questão XXI, cuja conclusão é terrificante: a maior pena do inferno, como não poderia deixar de ser, é o eterno afastamento de Deus, que os condenados experimentam com supina dor; o segundo maior tormento deles (assim como o dos demônios) é estarem submetidos, presos, subjugados por algo físico: o fogo, ente de grau ontológico muito inferior. Para sua humilhação.
Leiamos agora o mestre:
“Respondo. Deve-se dizer que, acerca da paixão da alma pelo fogo, propuseram-se muitas coisas distintas.
Alguns
disseram que a alma não padecerá pena por um fogo corpóreo, mas que sua
aflição espiritual é metaforicamente designada nas Sagradas Escrituras
sob o nome “fogo”. E foi esta a opinião de Orígenes.[1] Mas tal posição não parece ser suficiente com respeito a este assunto, porque, como diz Agostinho no livro XXI Sobre a Cidade de Deus,[2] convém
entender que é corpóreo o fogo pelo qual serão atormentados os corpos
dos condenados, e também o fogo pelo qual são atormentados tanto os
demônios quanto as almas, conforme a sentença ditada pelo Senhor.
Assim, a
outros pareceu que este fogo é corpóreo, mas que a alma não padece sua
pena imediatamente por ele, mas sim por sua semelhança, segundo uma
visão imaginária: assim como sucede aos que dormem e, pela visão de
algo terrível que parecem padecer, realmente se afligem, ainda que
aquilo por que se afligem não sejam verdadeiros corpos, mas semelhanças
de corpos.
Mas
tampouco esta posição pode sustentar-se, porque se demonstrou
anteriormente que as potências da parte sensitiva, entre as quais se
encontra a virtude imaginativa, não permanecem na alma separada.
Portanto, é necessário dizer que é pelo próprio fogo corporal que a alma separada padece;
mas de que modo padece é difícil determinar. Alguns disseram que a alma
separada padece o fogo pelo próprio fato de que o vê. Disto trata
Gregório em seus Diálogos,[3] dizendo:
“a alma padece o fogo pelo próprio fato de que o vê”. Porém, como ver é
a perfeição do vidente, toda visão é deleitável enquanto tal. Donde
nada é aflitivo apenas na medida em que é visto, mas sim na medida em
que é percebido como nocivo.
E por
isso disseram alguns que a alma que vê tal fogo e, percebendo-o como
nocivo a ela, se aflige por isso. Disto trata Gregório em seus Diálogos,[4] dizendo
que a alma, ao ver-se sendo queimada, queima-se. Mas então resta
considerar se o fogo, segundo a verdade das coisas, é ou não nocivo à
alma. Ora, se tal fogo não fosse nocivo à alma segundo a verdade das
coisas, então se seguiria que [aquele que assim opina] estaria enganado
em suas ponderações pelas quais o considera nocivo. Mas isto parece
impensável, principalmente quanto aos demônios, que, pela agudeza de seu
intelecto, excelem em conhecer as coisas naturais.
Logo, é necessário dizer que, segundo a verdade das coisas, tal fogo corpóreo é nocivo à alma. Donde diz Gregório em seus Diálogos,[5] a
título de conclusão: “Podemos coligir das sentenças evangélicas que a
alma padece um incêndio, não só olhando-o, mas também sentindo-o.
Logo,
para investigar de que modo o fogo corpóreo poderia ser nocivo à alma ou
ao demônio, deve-se considerar que o dano a algo não se lhe inflige na
medida em que ele recebe aquilo que o perfaz, mas na medida em que ele é
impedido por seu contrário. Daí que a paixão da alma pelo fogo não se
dá segundo o modo da mera recepção (como o intelecto que padece o
inteligível e o sentido que padece o sensível), mas na medida em que
algo padece outro por via da contrariedade e do obstáculo. E isto sucede
de dois modos. De um modo, enquanto uma coisa é impedida por seu
contrário no que tange ao ser que ela possui mediante uma forma que lhe é
inerente; e assim algo padece seu contrário mediante alteração e
corrupção, como a madeira que é consumida pelo fogo. Mas uma coisa
também é impedida de outro modo, a saber, por algo que a obstaculiza ou
contraria no que se refere à sua inclinação: assim como a inclinação
natural da pedra é que seja levada para baixo, pode ser impedida por
algum obstáculo ou força, de modo que por violência se a faça repousar
ou mover-se.
Ora, nenhum destes dois modos de padecer é
verdadeiramente penoso num ente desprovido de conhecimento, pois, onde
não pode haver dor nem tristeza, não há a razão de aflição nem de pena.
Em contrapartida, naquele que tem conhecimento, pode dar-se aflição e
pena de ambos os modos, mas de maneira diversa. Pois a paixão que se dá segundo a alteração por um contrário produz aflição e pena segundo a dor sensível (como quando um sensível muito intenso corrompe a harmonia do sentido), e por isso a intensidade dos sensíveis, principalmente os do tato, causa dor sensível; seu abrandamento é causa de deleite por ser conveniente ao sentido. A segunda classe de paixão, porém, não provoca pena segundo a dor sensível, mas segundo a tristeza interior que se origina no homem ou no animal pelo fato de que algo, mediante certa virtude interior, é apreendido como repugnante para a vontade ou
para qualquer apetite. Daí que as coisas que são contrárias à vontade e
ao apetite também aflijam, e às vezes mais do que as que causam dor
sensível; de fato, alguém antes quereria ser golpeado ou gravemente
afligido em seus sentidos do que suportar vitupérios ou coisas do tipo,
que são repugnantes para a vontade.
Pois bem, a alma não pode padecer o fogo corpóreo segundo o primeiro tipo de paixão:
pois não é possível que a alma seja por ele alterada ou destruída; daí
que não seja afligida pelo fogo de modo que por ele padeça uma dor
sensível. Mas a alma pode padecer o fogo corpóreo de acordo com o segundo tipo de paixão, na medida em que este fogo obstaculiza sua inclinação ou vontade.
E isto
se evidencia da seguinte maneira: a alma – e qualquer substância
incorpórea –, no que lhe compete por natureza, não está atada a nenhum
lugar, senão que transcende toda a ordem corporal. Assim, que ela esteja
ligada a algo, e determinada a um lugar por alguma necessidade, é
contrário à sua natureza e contrário ao seu apetite natural; exceto
quando está unida a seu próprio corpo, do qual é forma natural e com o
qual obtém certa perfeição.
Que
uma substância espiritual esteja ligada a um corpo não é algo que sucede
pela virtude que teria o corpo de deter a substância incorpórea, mas pela virtude de certa substância superior que liga a substância espiritual a tal corpo –
assim como também, mediante artes mágicas, com permissão divina, e pela
virtude de demônios superiores, alguns espíritos estão atados a certos
objetos, sejam anéis, imagens ou coisas deste tipo. E é pelo referido modo, mas por virtude divina, que as almas e os demônios são atados ao fogo corpóreo para sua pena. Donde dizer Agostinho no livro XXI Sobre a Cidade de Deus:[6] “Por
que não diríamos que também os espíritos incorpóreos – de modo
admirável, mas não obstante verdadeiro – podem sofrer pena do fogo
corpóreo, se os espíritos humanos, que de fato são igualmente
incorpóreos, tanto puderam agora ser encerrados em seus membros
corporais quanto poderão então ser atados a seus corpos por laços
indissolúveis? Logo, os espíritos aderirão, ainda que incorpóreos, ao fogo corporal para ser atormentados; recebendo do fogo pena, e não dando vida ao fogo.
Assim, é
verdade que este fogo, na medida em que retém a alma ligada a ele por
virtude divina, age na alma como instrumento da justiça divina. E, uma
vez que a alma apreende tal fogo como nocivo a ela, aflige-se com uma
tristeza interior – a qual é ainda maior quando a alma considera o fato
de que, nascida para unir-se a Deus desfrutando-o, está submetida às
coisas mais baixas.
Por
conseguinte, a maior aflição dos condenados provirá do fato de que
estarão separados de Deus; e a segunda, do fato de estarem submetidos a
uma coisa corporal, justamente no lugar mais baixo e abjeto”.
Santo Tomás dixit. Consideremos, pois, atentamente.
A propósito, o
lançamento desta obra do Aquinate — com a qualidade com que está sendo
preparada — será em breve o grande acontecimento editorial do país.
___________________________________
1- Orígenes, De Principiis, II, 10 (PG 11, 236).
2- Santo Agostinho, De Civitate Dei, XXI, 10 (PL 41, 724-725).
3- São Gregório Magno, Dial., IV, 29 (PL 77, 368).
4- São Gregório Magno, Dial., IV, 30 (PL 77, 368).
5- São Gregório Magno, Dial., IV, 30 (PL 77, 368).
6- Santo Agostinho, De Civitate Dei, XXI, 10 (PL 41, 724-725).
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