[30giorni]
![Cardeal Walter Kasper [© Romano Siciliani]](https://lh3.googleusercontent.com/blogger_img_proxy/AEn0k_sFt1Dw7rBcbPF9ERyCwDUK0iK_5Uo6WA7QoUnxn9kWOMwmrcLWHE4CIzYEozK-hNGRpCq9hFsgtdHUR7rTB86xdAHnak5UwO0S8HHMmFkSYVHq38XLUnnrx317FEg6TTZNrnT2eD6jFQ=s0-d)
![Para descer à cripta e venerar o túmulo de Francisco, Banto XVI atravessa a Basílica Inferior de São Francisco com alguns líderes e representantes das Igrejas, das Comunidades eclesiais e das religiões do mundo, durante o Encontro de Assis, em 27 de outubro de 2011 [© Osservatore Romano]](https://lh3.googleusercontent.com/blogger_img_proxy/AEn0k_ugxBYCqh7c5uHgykB40Pp7hW3DKT521mWY2qC7n6mj2P4gcULWtobGhAO6Z-7g_k-5myLhQ48Lbp0u1skbwK6brx4CISZGnwd64y8IfzQ3YhwUVs1ArU-uOj6j57oveXG34ptWDpiR=s0-d)
![Bento XVI em oração diante do túmulo de Francisco na cripta da Basílica Inferior com alguns líderes e representantes das Igrejas, das Comunidades eclesiais e das religiões do mundo [© Osservatore Romano]](https://lh3.googleusercontent.com/blogger_img_proxy/AEn0k_s5wE4r3aqIAumcdIBMKnj29V1dd_xMVHY--xf77TnCB-h9m5B_drMJsZ-285Hz-DtjvBg2nSToyvn32_ymEPqh899gDZSt020I2ilzk5L-M5zp1uWb2G9ndHu3qRoVGuSdexf4qhpC=s0-d)
A fé tem a característica de um dom que sobrevém, que não pode ser
deduzido nem “produzido”. Não se trata de uma conquista nossa.
Entrevista com o cardeal Walter Kasper
Entrevista com o cardeal Walter Kasper por Gianni Valente
Um “ano da fé”, um “tempo de particular reflexão” convocado a exemplo
do que fez Paulo VI em 1967, com a intenção de promover “uma conversão a
Deus cada vez mais completa, para fortalecer a nossa fé nEle e para O
anunciar com alegria ao homem do nosso tempo”. A proposta de Bento XVI a
toda a Igreja, antecipada na homilia de 16 de outubro e explicada na
carta apostólica Porta fidei, encontra-se ainda na fase
germinal do anúncio e se concretizará apenas daqui a onze meses, a
partir de outubro de 2012, quando serão celebrados os cinquenta anos do
início do Concílio Ecumênico Vaticano II e os vinte da publicação do Catecismo da Igreja Católica.
No entanto, desde as preliminares – observou padre Federico Lombardi,
diretor da Rádio Vaticana e da Assessoria de Imprensa Vaticana –, a
iniciativa anunciada pelo papa Ratzinger pode ser considerada uma
daquelas que caracterizarão este pontificado.
Já as primeiras menções e a Carta apostólica de proclamação são
atravessadas por vários convites discretos e reconfortantes a deixar de
lado “eclesiocentrismos” autorreferenciais e a pedir tudo a Jesus
Cristo, “autor e consumador da fé”.
“O que de mais importante nos deveria dizer o pastor do povo de Deus em caminho?”, comentou padre Lombardi. 30Dias repassou a questão ao cardeal Walter Kasper, presidente emérito do Pontifício Conselho para a Promoção da Unidade dos Cristãos.
Cardeal Walter Kasper [© Romano Siciliani]
Bento
XVI proclamou um ano da fé. Paulo VI fez o mesmo, em 1967. Naquela
época, tanto o senhor como Joseph Ratzinger eram jovens teólogos na flor
da idade. Que lembranças o senhor tem daquela decisão do papa Montini?
WALTER KASPER: Aqueles eram os anos logo após o Concílio. Passado o
grande entusiasmo, parecia que estávamos vivendo uma espécie de colapso
na Igreja. Parecia que a fé estava desfalecendo, justamente quando nos
ambientes eclesiásticos eram discutidas reformas necessárias à Igreja,
para reapresentar o anúncio cristão na realidade do nosso tempo.
Ratzinger escreveu naquela época a Introdução ao cristianismo. Eu escrevi a Introdução à fé. Naquele contexto, Paulo VI teve a intuição de promulgar o ano da fé, que se concluiu com a proclamação do Credo do povo de Deus.
Ele queria indicar a todos que o coração de tudo é a fé. Até mesmo as
reformas são úteis e necessárias quando promovem a vida da fé e a
salvação de todos os fiéis. Nos últimos dias reli Bernardo de Claraval:
sua grande reforma também era apenas uma retomada da fé. Como escrevia
Yves Congar, “as reformas bem-sucedidas na Igreja são aquelas que são
feitas para atender às necessidades concretas das pessoas”.
Por que proclamar um ano da fé justamente agora?
Vivemos uma crise. É visível sobretudo na Europa. É evidente na
Alemanha. Mas, se eu conversar com os bispos italianos, eles me contarão
as mesmas coisas. Muitos dos jovens, sobretudo, não têm nenhum contato
real com a vida da Igreja e com os sacramentos. Se falamos em nova
evangelização, não podemos deixar de tomar consciência disso. Do
contrário, acabamos por fazer coisas acadêmicas.
No entanto, Bento XVI começa a Carta de promulgação deste ano
particular dizendo que “a porta da fé está sempre aberta para nós”. O
que indica esse incipit?
É Deus quem mantém a porta da fé aberta, para nós e para todos. Não
somos nós que podemos ou devemos nos preocupar em abri-la. Por isso, o
início da fé é sempre possível. Não se trata de uma conquista nossa. A
fé tem a característica de um dom que sobrevém, que não pode ser
deduzido, que não pode ser “produzido”. Também por isso foi importante o
convite que o Papa dirigiu aos agnósticos no recente Encontro de Assis.
Em meio à secularização, Deus tem seus caminhos para tocar o coração de
cada homem. O coração daqueles que buscam e também o daqueles que não
buscam. E são caminhos que nós não conhecemos.
Em Assis, Bento XVI falou dos agnósticos em termos que certamente não são de confronto.
O Papa disse que os agnósticos ajudam os crentes “a não considerar Deus
sua propriedade”. Deus não é uma posse de quem crê. Não podemos dizer a
respeito da fé: eu a possuo, outros não... Os crentes, que receberam o
dom da fé, também estão em peregrinação. E nunca podemos pretender
antecipar esse dom, como a compreensão que tenhamos de um saber
conceitual. Às vezes, na Igreja, diante da incredulidade e do
agnosticismo, as pessoas acabam por se entrincheirar e dão a impressão
de considerar a fé como uma posse. Como se o problema fosse disputar e
lutar com quem não crê... Quase perdem de vista que Cristo morreu por
todos.
Nas primeiras linhas da Porta fidei é salientado que
muitas vezes mesmo na Igreja prevalece a preocupação com as
consequências sociais, culturais e políticas do engajamento dos
cristãos, continuando a pensar na fé “como um pressuposto óbvio da sua
vida diária”. O senhor também nota esse modo de entender a fé como algo
óbvio?
Em primeiro lugar, a fé é uma relação pessoal com Deus, que se expressa
na oração e na confiança de sermos carregados nos braços por Deus em
qualquer situação, ou, como Jesus diz: amar a Deus de todo o coração. Os
teólogos falam de uma virtude teologal. Porém, nesse primeiro
mandamento o amor de Deus está imediatamente conectado com o amor ao
próximo como a nós mesmos. Assim, a fé tem consequências sociais,
culturais e políticas sem as quais não seria sincera. Por outro lado,
essas consequências devem ser animadas e motivadas pelo amor a Deus,
senão se tornam uma forma de ideologia humanista, que fica sem
fundamento firme. Penso na pregação nas igrejas, no domingo. Nenhuma
outra realidade humana tem essa oportunidade de alcançar tantas pessoas
que vêm ouvir espontaneamente. Mas às vezes as homilias parecem apenas
instruções sobre o que os cristãos devem e não devem fazer em nível
moral, cultural, político; falta frequentemente a mensagem cheia de
alegria de que Deus sempre nos precede com a sua graça.
Para
descer à cripta e venerar o túmulo de Francisco, Banto XVI atravessa a
Basílica Inferior de São Francisco com alguns líderes e representantes
das Igrejas, das Comunidades eclesiais e das religiões do mundo, durante
o Encontro de Assis, em 27 de outubro de 2011 [© Osservatore Romano]
Há quem diga: hoje é preciso apostar mais na fé e menos nas obras sociais. Essa é a “solução”?
Não podemos contrapor fé e caridade. Seria um intelectualismo ou uma
espécie de misticismo mal interpretado. São Paulo disse que a fé se
torna operante na caridade. E sempre se expressou nas obras de
misericórdia corporal e espiritual: ajudar os pobres, os encarcerados,
os oprimidos, os doentes... Essa é simplesmente a vida cristã.
Pessoalmente, vi os testemunhos mais convincentes da fé justamente nas
viagens que fazia quando era responsável na Igreja alemã pela ajuda às
Igrejas dos países em via de desenvolvimento. Nós íamos a esses países
levando alguns recursos materiais para ajudar aquelas pessoas a
sobreviverem e, na miséria das aldeias e das favelas, nos deparávamos
com a alegria e a confiança de uma vida escolhida e consolada pelo
Senhor. O mesmo me aconteceu olhando para a fé de muitos irmãos que
encontrei no diálogo ecumênico. Por meio de relações fraternais, damos
testemunho da fé católica.
Agora que o Ano da Fé foi proclamado, o que é preciso fazer?
Bento XVI pediu apenas que refletíssemos sobre o Credo em todas as dioceses. Não basta rezá-lo, é preciso conhecê-lo e compreendê-lo em sua profundidade. Pois o Credo
expressa os artigos fundamentais da fé, que são comuns a todos os
cristãos e correspondem às promessas batismais. Portanto, são
constitutivos para a existência cristã. Mas me parece importante o fato
de a simples confissão de fé não exprimir uma pretensão de posse
conceitual da verdade. Muitas vezes cantamos o Credo durante a missa dominical. Um sistema dogmático-conceitual não pode ser cantado. Mas nós cantamos o Credo, e o cantamos como oração. É uma doxologia, um louvor e um reconhecimento que dá graças.
Há quem diga que é preciso fazer mais para tornar crível a visão antropológica cristã.
Sim, sem dúvida isso também é importante. A fé não é apenas um ato
intelectual, mas um modo de ser e de viver nas mãos de Deus e sob a sua
providência. Isso implica também a bem entendida liberdade cristã. A
confissão de fé é oração porque pedido a Deus que revele seu mistério.
Como dizia Santo Tomás, actus fidei non terminatur ad enuntiabile, sed ad rem.
O ato de fé não termina na repetição verbal de fórmulas verdadeiras. A
fé permanece aberta a reconhecer a realidade viva que essas palavras
indicam. E para Tomás a “res” é o próprio Deus. É ele que age, não somos nós que temos de “demonstrá-lo”. Além disso, o Credo
é também a síntese da fé das outras gerações. Na fé não estamos só
diante de Deus. Estamos numa comunhão que abraça todos os séculos. Em
tempos como os nossos, percebemos ainda mais o quanto é importante
encontrar conforto e gozar na companhia dos santos e dos Padres da
Igreja, e de todas as grandes testemunhas que nos precederam.
“Os crentes fortificam-se acreditando”, escreve o Papa, citando
Santo Agostinho. Como as pessoas crescem e progridem no caminho da fé?
Na fé, as pessoas são levadas, quer no início, quer ao longo do caminho
da vida. Nas experiências da vida descobrimos cada vez mais as riquezas
da fé. Não somos nós que conservamos a fé, como uma propriedade
adquirida. Nós somos preservados na fé. Escreveu Santo Tomás:
“A graça cria a fé não apenas quando a fé nasce numa pessoa, mas por
todo o tempo que a fé dura”. Usamos essa definição no quadro do acordo
com os luteranos, quando reconhecemos a identidade fundamental existente
entre a teologia de Lutero sobre a justificação pela fé e aspectos
essenciais da doutrina do Concílio de Trento definida no decreto De iustificatione.
Isso significa que o dom da fé não é uma espécie de impulso, um
empurrão que alguém nos dá no início, e depois prosseguimos sozinhos. E
também não é como os sistemas de iluminação das pistas dos aeroportos:
luzes cimentadas no asfalto para iluminar todo o percurso. A fé se
assemelha muito mais a uma lanterna que carregamos na mão, e se move
conosco iluminando o breve trecho de caminho que temos à nossa frente. A
sua luz é necessária e suficiente para dar o próximo passo.
Bento
XVI em oração diante do túmulo de Francisco na cripta da Basílica
Inferior com alguns líderes e representantes das Igrejas, das
Comunidades eclesiais e das religiões do mundo [© Osservatore Romano]
Se a fé, no início e em cada passo, é um dom e um reconhecimento da obra gratuita do Senhor, o que é a Igreja?
A Igreja é – como diz uma antiga definição – a comunhão dos fiéis. Tertuliano disse: Unus christianus, nullus christianus.
Um só cristão, nenhum cristão. Como cristãos, nunca estamos sozinhos,
mas sempre numa comunidade de fiéis de todos os tempos e de todos os
lugares. Todavia, a Igreja não é termo de fé. A Igreja é sacramento, ou
seja, sinal e instrumento. No Credo nós confessamos crer em Deus Pai, em Jesus Cristo, no Espírito Santo, mas não confessamos ter fé na
Igreja. Cremos em Deus, e é ele que nos revela a Igreja como Corpo de
Cristo e como Seu povo. A Igreja é como a lua, que não tem luz própria
mas reflete apenas a luz do sol, que é Cristo. Se não remete a Cristo,
não manifesta nenhuma beleza própria. A beleza que se encontra nela –
por exemplo, nas liturgias – é apenas um reflexo da glória de Deus.
No entanto, às vezes parece que a Igreja quer ocupar a cena, pensando que dessa forma dá testemunho do Senhor.
Talvez seja útil recordar que os Padres da Igreja não sentiram a
necessidade de elaborar nenhuma eclesiologia sistemática. Refletir sobre
a Igreja não era um problema para eles; bastava uma ou outra menção. O
cerne de seus interesses e de suas preocupações não era certamente a
instituição eclesiástica. A eclesiologia começa apenas no final da Idade
Média, em reação ao conciliarismo e, depois, a Lutero. E, como disse
Yves Congar, começa como “hierarcologia”, para expor as razões
teológico-doutrinais da função e da supremacia das hierarquias na
estrutura eclesial. Dali partiu também a tentação e a armadilha de um
certo “eclesiocentrismo”. O Concílio Vaticano II, com seu ressourcement
nos Padres, retomou também a imagem usada por muitos deles sobre a
Igreja como simples reflexo da luz e da obra de Cristo, o que se
encontra também no título da constituição sobre a Igreja do Concílio
Vaticano II: Lumen gentium.
A propósito de hierarcologia, também hoje, ao menos na mídia, fala-se muito dos bispos e dos cardeais.
É claro que os bispos e os cardeais têm seu papel na vida da Igreja.
Mas Bento XVI não para de repetir que a questão central não é a Igreja,
mas Deus. Se a fé em Deus se enfraquece, podemos até deixar a Igreja de
lado e esquecê-la.
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