[ihu]
09/01/2012
Hoje, as crianças mais velhas vão comer. Cynthia, 15, e Guellor, 13. Amanhã, será a vez das pequenas, Benedicte, Josiane e Manasse, 3, 6 e 9.
É claro, as pequenas farão escândalo. “Sim, é claro, elas pedem comida, mas nós não temos nada”, disse a mãe, Ghislaine Berbok, uma policial que ganha US$ 50 por mês. Elas terão um pouco de pão no café da manhã, mas nada além disso.
“À noite elas ficarão fracas”, disse ela. “É claro, elas reclamam. Mas não há nada que possamos fazer.”
É claro, as pequenas farão escândalo. “Sim, é claro, elas pedem comida, mas nós não temos nada”, disse a mãe, Ghislaine Berbok, uma policial que ganha US$ 50 por mês. Elas terão um pouco de pão no café da manhã, mas nada além disso.
“À noite elas ficarão fracas”, disse ela. “É claro, elas reclamam. Mas não há nada que possamos fazer.”
A reportagem é de Adam Nossiter, publicada pelo jornal The New York Times e reprodudizada pelo Portal Uol, 09-01-2012.
Os Berbok estão
praticando um ritual familiar de Kinshasa quase tão comum aqui quanto
os telhados de metal e as ruas poeirentas: o “corte de energia”, como os
moradores da capital, com quase 10 milhões de habitantes, o batizaram.
Em alguns dias, algumas crianças comem, outras não. Em outros dias,
todas as crianças comem, e os adultos não. Ou vice-versa.
O termo
“corte de energia” - em francês, delestage – é para evocar outra rotina
desagradável da vida da cidade: os blecautes rotativos que atingem
primeiro um bairro depois o outro.
A palavra delestage é usada
universalmente na África francofônica para descrever esses cortes de
energia decretados pelo Estado, mas quando aplicado ao racionamento de
comida ela ilustra um cálculo duro de sobrevivência, que o chefe de
família precisa impor dolorosamente aos demais. E diferente dos
blecautes, não é meramente um desprazer temporário vindo de cima.
“Se hoje nós comemos, amanhã bebermos chá”, disse Dieudonne Nsala,
pai de cinco filhos que ganha US$ 60 por mês como administrador no
Ministério da Educação. O aluguel é US$ 120 por mês; os números, Nsala apontou,
simplesmente não batem. Há dias em que as crianças não comem? “É
claro!” Respondeu Nsala, intrigado com a pergunta. “Pode ser dois dias
por semana”, disse ele.
Embora os moradores aqui frequentemente
se reúnam em esquinas cheias de gente para discutir política, sua luta
diária pode ajudar a explicar porque a capital não experimenta protestos
de massa depois que os resultados discutíveis das eleições foram
anunciados no mês passado. Protestos esporádicos e choques nas ruas
certamente surgiram, mas a margem de sobrevivência aqui é simplesmente
muito tênue para que as pessoas protestem por muito tempo.
“As pessoas em Kinshasa são tão pobres, que vivem da mão para a boca”, disse Theodore Trefon,
pesquisador do Royal Museum for Central Africa na Bélgica. “Elas
simplesmente não têm meios para se mobilizar por muito tempo.”
Além disso, o governo deixa pouco espaço para expressões populares de descontentamento. A Human Rights Watch
disse que os soldados congoleses haviam matado pelo menos 24 pessoas e
detido outras dezenas depois que eleições fraudulentas colocaram
novamente no poder o presidente Joseph Kabila.
Quaisquer que sejam os problemas da cidade com a votação, a vida diária já é um desafio grande o suficiente.
“No final de semana, você precisa fazer tudo o que pode para ter comida porque está em casa com seus filhos”, disse Nsala,
o administrador. “Mas tem dias, é claro, em que não comemos. Eu digo:
'não há o suficiente para comer, então você, mamãe, e as crianças, vocês
comem'”.
Nsala, que fala calmamente e com a
dicção precisa, olhou para o chão de sua modesta sala de blocos de
cimento e telhado de metal. A TV mostrava notícias ao fundo. Sua mulher
estava vendendo vegetais na frente, para complementar o magro rendimento
da família. Não pergunte a ele sobre carne.
“Talvez, se fizermos um sacrifício”, diz ele, observando que a carne custa US$ 2,20 o quilo.
No lar dos Berbok – onde o marido de Ghislaine, que é professor, ganha US$ 42 por mês, acrescentando ao salário dela como policial – ninguém comeu peixe durante um ano.
“Delestage.
Isso significa: 'hoje nós comemos. Amanhã não'. Os congoleses, no
espírito de ironia, adotaram esse termo”, disse Nsala. Ele acrescentou
que a família havia comido no dia anterior. “Então, hoje, não tem
comida.”
O delestage de alimentos não é novo no Congo, um país
rico em minérios e paisagens verdejantes, mas ainda assim um dos mais
famintos da terra, de acordo com os especialistas. Ele ficou em último
lugar no Índice Global da Fome de 2011, uma métrica da
má nutrição e nutrição infantil compilada pelo Instituto de Pesquisa em
Política Alimentar Internacional, e a situação ficou pior. O Congo foi o
único país em que a situação alimentar caiu de “alarmante” para
“extremamente alarmante”, reportou o instituto no ano passado. Metade do
país é considerada subnutrida.
Há dez anos, até os congoleses
pobres poderiam esperar comer uma refeição substancial por dia – talvez
mandioca, com algum óleo de palmeira, e um pouco de peixe congelado
importado que faz parte da alimentação básica aqui. Mas nos últimos três
anos, até essa certeza se foi, disse o Dr. Eric Tollens,
especialista em nutrição no congo pela Universidade Católica de Leuven
na Bélgica, onde ele é professor emérito do Centro para Economia
Alimentar e Agricultura.
Tollens culpou a “total
negligência do governo em relação à agricultura”, dizendo que o país
está mais concentrado na lucrativa extração de minérios valiosos como o
cobre e o cobalto. Menos de 1% do orçamento nacional congolês vai para a
agricultura, diz. Doadores estrangeiros financiam “todos os projetos de
agricultura”, diz ele, e “quantidades massivas de comida” são
importadas para esta terra rica, então a comida é cara.
“A
produção agrícola simplesmente desapareceu”, disse ele numa entrevista,
acrescentando que não havia motivo para que um país fértil como o Congo
importe 20 mil toneladas de feijão por ano.
“É pior do que no
Níger ou Somália”, disse ele, citando duas nações subsaarianas que vivem
perenemente à beira da fome. “Vamos lá, vamos lá. Com tantos recursos, o
que está acontecendo?”
Metade da população come apenas uma vez por dia, escreveu Tollens num ensaio há vários anos, enquanto um quarto come apenas a cada dois dias.
“Antes, nós comíamos três vezes por dia; agora, nós comemos por delestage”, diz Cele Bunata-Kumba, um técnico de tênis que vive no bairro de Matongele em Kinshasa com sua mulher e 12 filhos.
“Hoje,
são as crianças que vão comer”, disse ele. “Nós, os adultos, podemos
nos sacrificar. Nós, os adultos, podemos ficar sem comida”, disse ele,
com o rosto angustiado. E acrescentou: “sim, sim, é claro, o dia todo.
Sem nada para comer. Nem pão. Claro, isso acontece”.
Em termos
imediatos, os kinois – como são conhecidos os moradores de Kinshasa –
que conhecem as ruas, conhecidos por viver correndo e ser adeptos da
arte da sobrevivência num ambiente duro, precisam se virar. Eles
precisam alimentar seus filhos, a maior prioridade, dizem várias
famílias.
No lar administrado por Elisa Luzingu e sua cunhada Marie Bumba
– o marido de Luzingu está sem trabalho – as crianças têm entre 7 e 17
anos. O delestage significa nenhuma refeição, três dias por semana.
“Meus filhos estão estudando, então, é muito difícil”, disse Luzingu.
Nos dias sem comida, disse Bumba, as crianças “ficam muito cansadas e famintas”.
Num
recente domingo cinzento, pelo menos, “todos comeram”, disse Bumba, do
lado de fora do quintal perto de uma panela fervente de matembele:
batata-doce, óleo de palmeira, verduras e um pouco de peixe. Havia
sorrisos por toda parte. A comida estava quase pronta.
“Para o kinois, comer é uma batalha diária”, disse Bunata-Kumba, o técnico de tênis.

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