10/05/2012
IHU - Meio século depois, uma grande parte da documentação do Concílio ainda
precisa ser reordenada e estudada. Inclusive, alguns documentos de
valor se extraviaram. Eis a denúncia impactante de um arquivista.
A reportagem é de Sandro Magister, publicada no sítio Chiesa, 07-05-2012. A tradução é do Cepat.
A reportagem é de Sandro Magister, publicada no sítio Chiesa, 07-05-2012. A tradução é do Cepat.
Como é sabido, Bento XVI convocou um especial Ano da Fé, que começará no próximo dia 11 de outubro, coincidindo com um duplo aniversário: dos cinquenta anos da abertura do Concílio Ecumênico Vaticano II e dos 22 anos da promulgação do Catecismo da Igreja Católica.
Nenhum destes aniversários é pacífico. O Catecismo sofreu e sofre uma extensa rejeição, também entre o episcopado e o clero. Quanto ao Concílio,
a crítica sobre sua interpretação e recepção é ainda viva e, inclusive,
deu origem a um cisma entre a Igreja de Roma e os seguidores do
arcebispo Marcel Lefebvre.
Na carta apostólica, o motu próprio “Porta fidei” pelo qual foi convocado o Ano da Fé, Bento XVI demonstra a esperança de que este se torne “uma ocasião propícia” para que os documentos do Concílio sejam
lidos e aceitos, “guiados por uma justa hermenêutica”, porque somente
assim “pode ser e tornar-se cada vez mais uma grande força para a sempre
necessária renovação da Igreja”.
Para a hermenêutica, ou seja, à interpretação do Vaticano II, o papa Joseph Ratzinger
dedicou o primeiro de seus discursos prévios, do natal, para a cúria
romana. Naturalmente, também a reconstrução do acontecimento conciliar é
essencial para a sua hermenêutica. E para que esta reconstrução esteja
fundamentada é necessário que os historiadores trabalhem sobre a base de
uma documentação exaustiva acerca desse acontecimento.
Pode
parecer incrível, mas “existe toda uma série de cartas e de documentos
ainda inexplorados e que possuem um grandioso valor para compreender
tanto o espírito do Concílio como a correta hermenêutica de seus documentos”. É o que escreve um arquivista do Arquivo Secreto Vaticano como conclusão de um impressionante relatório de sua autoria, publicado em “L’Osservatore Romano”, no dia 1 de maio de 2012.
O arquivista, Piero Doria,
trabalhou e está trabalhando precisamente na coleta e classificação –
para que se torne acessível aos estudiosos – de um enorme bloco de
documentação dos trabalhos conciliares, que com o tempo ficaram
abandonados ou, em partes, diretamente dispersos.
Por exemplo, foi descoberto que entre os relatórios perdidos está “o registro de protocolo da Comissão Teológica e da Comissão “De doctrina fidei et morum”, ou seja, de duas comissões conciliares de importância capital.
Foram encontrados e recuperados, felizmente, outros blocos de documentos na casa de alguns Padres conciliares ou de peritos.
Porém, deixemos que Piero Doria descreva
os fatos e o grau de avanço nos trabalhos de catalogação dos
documentos. Na continuação, apresentamos um amplo extrato de seu
impactante artigo, em “L’Osservatore Romano”.
Quanto do Concílio ainda existe para ser examinado (Piero Doria)
No dia 27 de setembro de 1967, pela vontade de Paulo VI, nascia o Arquivo do Concílio Vaticano II, [...] “um discatério temporário para a edição das atas do Concílio, e para a sistematização científica de todo o material de arquivo”. [...]
Ao
novo discatério tinha também a tarefa, de acordo com as intenções de
Paulo VI, de colocar à disposição dos estudiosos, de forma gradual, a
enorme gama de documentação. O papa Montini foi
consciente, tal como ensina a história dos concílios, que de imediato
era importante evitar as derivações teológicas ou interpretações
subjetivas, sobre os documentos, que pudessem falsear tanto o espírito
do Concílio, como também a correta leitura dos mesmos documentos conciliares, favorecendo o estudo dos documentos arquivados. [...]
O Arquivo do Concílio Vaticano II, que teve como destino final, a partir da sua institucionalização, o Arquivo Secreto Vaticano, é a soma de muitos arquivos particulares. [...] Por Pancrazio Pfeiffer foi efetuada a primeira sistematização da seção de Arquivo. [...] Em julho de 1975 o escritório foi transferido para o Palácio das Congregações, na Praça Pio XII, [...] onde permaneceu até 9 de março de 2000, [...] quando o cardeal Jorge María Mejía, arquivista e bibliotecário da Santa Igreja de Roma, o padre Sergio Pagano, prefeito do Arquivo Secreto Vaticano
e, também, estando presente quem escreve estas linhas, como encarregado
da redação do inventário, tomaram oficialmente posse do Arquivo do Concílio Vaticano II.
A mudança da documentação para os locais do Arquivo Secreto Vaticano terminou nos dias posteriores, sob a supervisão do prefeito, com a minha colaboração e a de alguns empregados do Arquivo Secreto Vaticano. No momento da mudança, o Arquivo do Concílio contava com 2001 pastas não numeradas.
Ao
concluir as operações de mudança e da reconstituição fiel da ordem dada
pela Seção dependente, começaram-me a chamar para estudar a monumental
documentação, para estabelecer os critérios e o tipo de inventário que
deveria ser feito, e [...], imediatamente, tornou-se evidente a
complexidade de sua natureza. [...]
Uma complexidade também confirmada por algumas memórias, como as de dom Emilio Governatori, arquivista, conservadas no Arquivo do Concilio,
em que [...] escreveu fazendo referência à fase antepreparatória e
preparatória: “Durante dois anos todos os documentos referidos às
respostas dos bispos, que constituíam o núcleo primeiro e maior do Arquivo, serviram para a redação dos volumes ‘Acta et documenta’:
por isso, foram manipulados os mesmos originais, dado que não existia
máquina eficiente para fotocópias. Com frequência a ordem do coletado
era manipulada e restabelecida muitas vezes, enquanto os encarregados da
correção dos rascunhos retiravam os documentos necessários, sem
advertir em absoluto ao arquivista”.
E ainda mais: “Não existiu
jamais um único e específico encarregado do Arquivo e do Protocolo.
Muitíssimos documentos, entre os mais importantes, eram guardados pelo
mesmo secretário em seu arquivo particular: somente em 1962, pouco antes
do Concílio, o secretário pôde revisar seu arquivo e
muitos documentos passaram para o arquivo geral. Muitos documentos
jamais foram protocolizados, ou foram muito tardiamente, razão pela qual
pode acontecer que muitos documentos não estejam na ordem cronológica
correta”. [...]
Estes testemunhos, infelizmente, encontrados, e
também outros (como a presença excessiva de fotocópias, a utilização de
textos originais ou cópias originais como rascunhos para a imprensa; os
votos dos bispos selecionados e colocados sobre temas diferentes; cartas
de acompanhamento e votos adjuntos, às vezes não assinados, sem datas e
número de protocolo, conservadas em lugares diferentes; ausência de
alguns registros de protocolo) induziram o prefeito do Arquivo Secreto Vaticano
a colocar-se de acordo na decisão [...] se fazer um inventário
analítico – ou seja, documento por documento – em toda a documentação do
Arquivo do Concílio, consciente de que um inventário
desse tipo alargaria, sem dúvida, os tempos de trabalho, mas que
ofereceria, em compensação, tanto um instrumento útil para a pesquisa
dos estudiosos, como também [...] um índice completo e total dessa
importantíssima documentação.
No momento atual de trabalho, foram
inventariadas 1.465 pastas de um total de 2.153, para um número geral
de outras 7.200 páginas de documentos, subdivididas em 18 volumes, dos
quais o XVIII ainda está em curso de elaboração, mas já abarca 408
páginas. [...]
No que se refere ao Arquivo,
[...] devo dizer [...] que por parte do discatério não foi dado
particular atenção ao seu reordenamento e que, pelo contrário, o
trabalho de publicação dos volumes da “Acta Synodalia”
absorveu por inteiro, ou quase em sua totalidade, as energias dos
empregados do discatério, sobretudo, depois que, em dezembro de 1968,
foram encarregados de outro trabalho, por Emilio Governatori,
que até esse momento tinha sido o arquivista da secretaria geral. [...]
Posso dizer que com sua mudança [...] interrompeu-se o reordenamento e
que seus imediatos sucessores já não prosseguiram como o mesmo
“entusiasmo”.
Somente tais razões podem justificar uma ordenação
tão abeirada, desta documentação, sobretudo no que se refere à
secretaria geral [do Concílio]. Nesta seção, as pastas
foram ordenadas exteriormente, de forma muitas vezes confusa,
lamentavelmente sem fazer referência particular [...], nem a uma ordem
cronológica, nem a uma ordem temática e, sobretudo, sem nenhum tipo de
numeração externa das pastas, o qual pode ter causado, em parte, que
fossem colocadas fora do lugar, depois consultadas. [...]
Também é
necessário levar em conta que nem sempre as pessoas chamadas para
cumprir o papel de arquivista tiveram a capacidade necessária. [...]
Aqui, um exemplo que é válido para todos: o registro de protocolo. Seus
critérios de redação são, geralmente, bem observados; mas algumas vezes
estes mesmos critérios são demasiadamente personalizados, com resultados
por vezes contraditórios, como no caso dos registros de protocolos pelo
Secretariado para a Unidade dos Cristãos. [...]
Outro
aspecto a destacar é a dispersão da documentação, verificada durante os
trabalhos conciliares, mas que não significa necessariamente perda dos
relatórios. Infelizmente aconteceu, sobretudo, por parte dos secretários
das comissões, que levaram o trabalho para casa e, em consequência, os
relatórios do escritório. Em alguns casos, perderam-se estes papéis,
outras vezes, felizmente, foram recuperados.
Limito-me a destacar dois casos. O primeiro se refere ao registro de protocolo da Comissão Teológica e da Comissão “De doctrina fidei et morum”.
Lamentavelmente, neste caso é necessário falar, ao menos no estado
atual, da perda deste valioso instrumento de pesquisa. Com efeito, em
2006, assinalei este extravio ao prefeito do Arquivo Secreto Vaticano, que escreveu ao subsecretário da Congregação para a Doutrina da Fé. Infelizmente, a resposta foi negativa, como também a pesquisa efetuada pelos padres jesuítas, da Pontifícia Universidade Gregoriana, onde residia o padre Sebastiano Tromp.
Por sua parte, o segundo exemplo, felizmente, ao contrário, se refere ao arquivo da Comissão preparatória “De sacra liturgia”, que, como escreveu o cardeal Pericle Felici ao cardeal Ferdinando Antonielli, em 4 de março de 1967, estava com dom Annibale Bugnini.
Algumas
recentes e excelentes publicações me permitem, neste ponto, introduzir o
assunto referido às novas perspectivas de pesquisa.
Efetivamente,
é necessário perguntar-se se para reconstruir as dinâmicas conciliares
são ainda suficientes os documentos editados na “Acta et documenta” e na “Acta Synodalia”,
também importantíssimos, como muitas vezes acontece também com
publicações muito recentes, embora ao menos uma destas é lamentavelmente
de duvidoso valor científico, ou se não são necessárias profundas
pesquisas de arquivo, tal como demonstram, por exemplo, o livro de Mauro Velati e de outros estudiosos.
É
evidente que a resposta, no que a mim diz respeito, reside totalmente
na segunda parte da afirmação anterior. Neste sentido, desejo recordar
que no Arquivo do Concílio Vaticano II existe toda uma
série de relatórios e de documentos ainda inexplorados e que possuem um
grandioso valor para se compreender tanto o espírito do Concílio,
como a correta hermenêutica dos documentos, tal como foram aprovados
para a assembleia dos bispos, reunidos na basílica vaticana, e por Paulo VI.
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