17/05/2012
Ludovica Eugenio |
A entrevista é de Ludovica Eugenio, publicada na revista Adista, nº. 19, 14-05-2012. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Nessa chave de leitura, as irmãs norte-americanas, postas na mira pelo Vaticano com o comissariamento do seu órgão de coordenação mais importante, a Leadership Conference of Women Religious (LCWR), tornam-se perigosas "porque, talvez, sejam o último grupo organizado a refletir o espírito conciliar do que realmente significa ser Igreja".
A Ir. Jeannine Gramick é muito decidida: desde 2001, membro da congregação das Irmãs de Loretto, desde sempre dedicada ao ministério voltado às minorias sexuais e, nesse âmbito, cofundadora, juntamente com o Pe. Robert Nugent, da associação New Ways Ministry, empenhada com a busca da justiça social para gays e lésbicas.
A Ir. Gramick aceitou compartilhar com Adista as suas opiniões e o seu ponto de vista sobre a medida tomada recentemente pelo Vaticano e sobre o futuro da LCWR.
Eis a entrevista.
Com o Vaticano II, a Igreja, povo de Deus, foi chamada a estar mais perto do mundo. As religiosas norte-americanas encarnaram esse apelo em uma ampla variedade de ministérios, vivendo profundamente no mundo e ouvindo as pessoas que, de diversos modos, se encontram em dificuldades. Pode nos dizer que tipos de ministérios vocês têm desenvolvido?
Com o Vaticano II, a Igreja, povo de Deus, foi chamada a estar mais perto do mundo. As religiosas norte-americanas encarnaram esse apelo em uma ampla variedade de ministérios, vivendo profundamente no mundo e ouvindo as pessoas que, de diversos modos, se encontram em dificuldades. Pode nos dizer que tipos de ministérios vocês têm desenvolvido?
Antes
do início dos anos 1960, as religiosas desenvolviam o seu papel
principalmente como professoras nas escolas, ou como enfermeiras ou
administradoras nos hospitais. Depois do Concílio Vaticano II,
se comprometeram com inúmeras novas formas de ministério. Por exemplo,
em atividades relacionadas à justiça e à paz, para mudar as políticas e
as estruturas da sociedade e da Igreja, em benefício dos pobres e dos
marginalizados. Esse papel foi levado adiante em um ministério de tipo
político, que visava à educação e à pressão política, trabalhando com a
mídia, com a rádio, com a TV e através de um ministério que se ocupa da
ecologia e do cuidado com a terra. Muitas religiosas começaram a
defender as pessoas gays e lésbicas e uma participação mais plena das
mulheres em todas as formas de ministério eclesial, incluindo a
ordenação. Além do tradicional ministério de serviço social, as irmãs
foram ao encontro dos divorciados em segunda união, das prostitutas, dos
presos, dos sem-teto e das mulheres maltratadas.
O Vaticano aceitou positivamente essa proximidade com o mundo e com as pessoas?
O Vaticano não
objetou ao fato de que as irmãs se fizessem mais próximas do mundo e
das pessoas, mas contestou as implicações dessa proximidade nos
ministérios não tradicionais que se ocupam de política, de sexualidade,
ou de ambos. Por exemplo, em 1983, o Vaticano obrigou a Ir. Agnes Mary Mansour a renunciar à congregação das Irmãs da Misericórdia por
causa do seu cargo como diretora do Departamento de Serviço Social do
Estado de Michigan, que financiava o aborto a mulheres pobres. No meu
caso, em 1999, o Vaticano me ordenou a interromper o meu ministério
pastoral voltado aos católicos gays e lésbicas, porque eu optara por
afirmar que eu não compartilhava a posição tradicional sobre a
moralidade da homossexualidade.
Houve inúmeros casos menos
conhecidos em que bispos diocesanos puseram em prática as posições
vaticanas. Por exemplo, as religiosas receberam a ordem de renunciar à
direção de órgãos que tivessem relação com o HIV-Aids, porque promoviam o
uso dos preservativos. Algumas religiosas foram demitidas dos seus
cargos paroquiais ou diocesanos porque apoiavam a ordenação sacerdotal
feminina.
A atual avaliação doutrinal da LCWR pela Congregação para a Doutrina da Fé constitui mais um exemplo disso. As duas objeções concretas citadas pela Congregação foram a posição da LCWR sobre a homossexualidade e sobre a ordenação feminina.
O
seu ministério levou a sua congregação, a das Irmãs Escolares de Notre
Dame, a excluí-la porque a senhora tinha optado por não obedecer ao
silêncio imposto e, em 2001, entrou na Congregação das Irmãs de Loretto
que, ao contrário, a apoiaram em seu ministério. Desde então, não teve
mais problemas com o Vaticano?
Entre 2001 e 2009, o Vaticano enviou nove cartas à presidente das Irmãs de Loretto referentes
ao meu ministério. Em cada uma delas, substancialmente, se afirmava que
eu tinha que interromper o meu ministério em favor das pessoas LGBTQ ou
seria afastada da vida religiosa. As minhas coirmãs optaram por não me
afastar e, neste momento, nem o Vaticano o fez.
Desde
1956, a LCWR representa a maioria das congregações religiosas femininas
dos EUA. Quais foram as suas maiores conquistas, atividades e
interesses?
A LCWR oferece uma vasta
gama de atividades e de programas que são de apoio às superioras e visam
a reforçar as relações entre os componentes da LCWR com
os outros grupos importantes. Entre essas atividades, há uma oficina
anual, que inclui um retiro, para as novas líderes e um manual que ajuda
a desenvolver as competências importantes para a Leadership. Ela também
produz regularmente materiais escritos, como uma publicação trimestral
sobre justiça social, um livrinho de oração e reflexão, um jornal
chamado Occasional Papers e e informações sobre justiça e paz.
Acredito que a conquista mais importante da LCWR foi
a de ter conscientizado todas as religiosas que a ela aderem, mas
também a um público mais amplo, de todos os tipo de temas que envolvem a
justiça. Ela oferece reflexões teológicas, análises sociais e sugestões
para a ação sobre muitas questões, como a justiça econômica, a defensa
dos pobres, o diálogo com o Islã e inter-religioso, a
pena de morte, a reforma das políticas de imigração, as mudanças
climáticas e as questões ambientais, a reforma da saúde, as armas
nucleares, o testemunho contra a tortura, o cancelamento da dívida para
os países empobrecidos, o tráfico de órgãos e a militarização do espaço,
e muitos outros assuntos ligados à justiça. A lista é praticamente
inesgotável.
Nos últimos anos, as religiosas estiveram no
alvo do Vaticano. Além de casos individuais, as congregações religiosas
femininas sofreram uma visitação apostólica. O mesmo aconteceu com a
LCWR. Há uma relação entre as duas visitas apostólicas? Do que Roma tem
medo?
Eu não fui demitida porque a Congregação para a Doutrina da Fé não
é a minha chefe e nunca me apoiou financeiramente nesse ministério. A
Congregação, em 1999, afirmou que eu não deveria me envolver nesse
ministério, mas, depois de um discernimento aprofundado, eu concluí que
Deus continuava me chamando a ele, e então decidi não cooperar com a
opressão do silêncio. Eu continuo me ocupando das pessoas gays e
lésbicas.
Quanto ao resto, sim, acredito que haja uma ligação
entre as visitas às congregações religiosas individuais e a avaliação
doutrinal (ou inquisição doutrinal) da LCWR, ambas
iniciadas no início de 2009. Muitas pessoas consideram que ambos os
projetos de investigação foram iniciados para eliminar a discordância e
varrer os últimos vestígios da renovação trazida pelo Vaticano II.
No documento que apresenta o processo da visitação, uma das perguntas
feitas às líderes das comunidades era: "Qual é o processo posto em
prática para responder às coirmãs que expressam pública ou privadamente a
sua discordância com relação ao ensino de autoridade da Igreja?".
A meu ver, a Cúria vaticana e o Papa Bento XVI têm medo do significado dado pelo Concílio Vaticano II ao
que significa ser católico. Eles têm medo da liberdade de expressão que
isso implica. Eles tem medo de permitir que vozes críticas sejam
ouvidas, porque algumas dessas vozes poderiam legitimamente levar à
mudança. As personalidades autoritárias têm medo da mudança e de perder
poder e controle.
Ken Briggs, autor de Double Crossed: Uncovering the Catholic Church’s Betrayal of American Nuns
[Traídas: Revelando a traição das irmãs norte-americanas pela Igreja
Católica], considera que as irmãs conservaram, mais do que qualquer
outro grupo da Igreja, a ética e o espírito conciliar, apesar da
vigorosa oposição dos últimos dois papas. As irmãs norte-americanas são
perigosas porque são, talvez, o último grupo organizado a refletir o
espírito conciliar do que realmente significa ser Igreja.
Como a senhora vê o futuro da LCWR à luz da nomeação de um comissário que irá rever seus estatutos e programas?
Penso que a LCWR tem duas opções: submeter-se ao controle do Vaticano ou dissolver a LCWR e reconstituí-la como órgão sem vínculos com o Vaticano.
Acredito que a primeira escolha seria um repúdio dos mais de 40 anos de
renovação nos quais as comunidades religiosas se comprometeram.
Precisamos lembrar que foi pedido que as religiosas reavaliassem e
atualizassem as suas comunidades para atender às exigências dos tempos.
As religiosas levaram a sério esse pedido, e agora os resultados não
agradam ao Vaticano. O Vaticano quer que as irmãs voltem à vida
religiosa do passado.
A história tem demonstrado que a política de apaziguamento de Neville Chamberlain [primeiro-ministro do Reino Unido de 1937 a 1940] não satisfez os desejos de um ditador como Hitler.
A Igreja Católica institucional, da forma como é atualmente, é um
Estado totalitário religioso que, desde a época do papado de Pio IX, viveu uma centralização sempre crescente. O Concílio Vaticano II tentou
trazer a Igreja de volta aos trilhos de uma comunidade de fiéis no
caminho de Cristo, mas as forças curiais tentaram desviar a renovação
nos últimos 30 anos ou mais.
A segunda opção, acredito eu,
respeitaria a honra e a integridade das congregações religiosas que
tentaram, com a sua fidelidade, manter vivos os valores de uma Igreja
como comunidade de discípulos fiéis de Cristo. A reconstituição da LCWR como
órgão que respeita o Vaticano, mas não abandona nada da sua autonomia,
representaria uma aplicação do valor conciliar da subsidiariedade. Essa
reconstituição seria uma vantagem para as religiosas, mas também para a
Igreja como um todo. Isso afirmaria a necessidade de abandonar uma
atitude de obediência cega em favor de uma capacidade de decisão moral
moral.
Desde o Papa Pio IX, a Igreja deu provas
de uma atmosfera de infalibilidade crescente, por força da qual se
partia do pressuposto de que toda decisão, por parte de qualquer líder,
aceita muitas vezes como infalível, devia ser obedecida sem discussão. O
Vaticano II tentou mudar essa atitude, enfatizando a
liberdade de consciência. Uma reconstituição mostraria que a Igreja
consiste em muitos ramos enxertados em Cristo, a videira. O Vaticano é
um dos ramos. As dioceses, congregações religiosas apostólicas, ordens
monásticas e contemplativas, e movimentos leigos individuais são outros
ramos. Devemos sempre nos lembrar de que Cristo, e não o Vaticano, é a
videira.
Não sei por qual escolha a LCWR vai optar. Ela já cooperou com a Congregação para a Doutrina da Fé na
sua investigação doutrinal, portanto não sei se a organização vai
continuar colaborando na sua opressão, ao invés de resistir à tomada de
posse por parte do Vaticano. Eu continuo alimentando a esperança de que
as novas lideranças da LCWR sejam mais realista ao
constatar que tudo isso tem a ver com o totalitarismo religioso e que
rejeitarão a medida como invasão indevida e como afronta à natureza
profética da vida religiosa.
Em que medida esse passo do Vaticano vai tocar na vida, no ministério e no papel das religiosas na Igreja dos EUA no futuro?
A intervenção vaticana terá efeitos enormes sobre a vida, o ministério e o papel das religiosas dos EUA e da Igreja mundial. Os efeitos irão depender do curso que a LCWR irá optar por tomar. Eu gostaria de ser otimista e acreditar que a decisão da LCWR irá
fortalecer não só as religiosas, mas também a Igreja inteira. Rejeitar
gentilmente o fato de serem dominadas por um sistema patriarcal que não
compreende a natureza comunitária da Igreja será demonstrar que um
cristão maduro não obedecem cegamente aos homens, mas segue o chamado de
Deus na oração.
Essa escolha significará que não há necessidade
de pessoas controladoras da ortodoxia ou de inquisições. Essa escolha
significará que Cristo, e não o Vaticano, é a videira, e nós somos os
ramos. Essa escolha significará que o Espírito de Deus guia a Igreja e
que, com esse guia, não temos medo. Com esse guia, temos fé e confiança.
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