São Camilo de Lelis |
Reflexões de Dom João Orani Tempesta, arcebispo do Rio de Janeiro
RIO DE JANEIRO, quinta-feira, 19 de julho de 2012(ZENIT.org)
- No último dia 14 de julho comemoramos o Dia de São Camilo de Lelis,
fundador da Ordem dos Ministros dos Enfermos (Camilianos).
Neste
ano de 2012, os religiosos Camilianos Brasileiros celebram os 90 anos da
chegada dos seus pioneiros no Brasil, no porto do Rio de Janeiro, em 15
de setembro (1922-2012). Em 2014 se completarão 400 anos da morte de
São Camilo (1550-1614).
Para celebrar essas datas, a Província Camiliana Brasileira trouxe a
relíquia do coração de São Camilo ao Brasil, que percorre neste mês as
diversas cidades onde os Camilianos atuam. A Arquidiocese do Rio de
Janeiro receberá essa relíquia no dia 21de julho, sábado, e aproveitará
deste momento para celebrar o trabalho da Pastoral dos Enfermos ou da
Saúde, dentro deste ano em que aprofundamos o tema da Campanha da
Fraternidade sobre a saúde pública. Antes da Missa faremos a IIª
Peregrinação da Pastoral da Saúde da Arquidiocese ao Santuário de São
Camilo.
A inspiração da vida e missão de São Camilo pode nos ajudar em nosso
empenho tanto no trabalho de presença junto aos enfermos, como na luta
por uma saúde com mais dignidade.
Quatro séculos de distância não apagaram a atualidade da mensagem e
espiritualidade vivida e transmitida por São Camilo. Ainda mais, à
medida que o tempo passa fica sempre mais evidente a sua atualidade e
sua capacidade de atração. Sobretudo pelo caráter humano e singular de
sua pessoa e biografia, mas também, por certo, por que em sua
espiritualidade se cumprem com rigor os principais requisitos para sua
credibilidade e duração no tempo: sua clara inspiração evangélica, a resposta a um dom particular (carisma) recebido em vista da missão, sua dimensão eclesial e capacidade de conduzir seus seguidores à santidade efetiva.
No itinerário espiritual de Camilo existem experiências e momentos
que marcaram sua vida e deram também uma configuração especial à sua
espiritualidade. Algumas de suas características mais marcantes desta
espiritualidade.
Camilo chegou ao encontro decisivo com Deus pela “via da indigência”.
Desde a orfandade prematura (perde a mãe aos 13 anos e o pai, que era
um militar, aos 19 anos), desde a pobreza material, a chaga inoportuna e
crônica no peito do pé direito, a vida sem rumo e o vazio interior:
parece que tudo estava misteriosamente predisposto para um encontro que
foi adquirindo forma e gerando nova vida. Em sua indigência se tornou
palpável a misericórdia de Deus. É o itinerário de um convertido, que
deixou uma marca profunda em seus filhos: os filhos de um convertido.
A experiência de sua conversão, em 2 de fevereiro de 1575, centrou e
unificou o seu coração, centrando sua vida e sobretudo sua opção em
Cristo misericordioso de uma radicalidade permanente:
o serviço aos enfermos, concebido e praticado, ainda que com o risco da
própria vida – constitui o quarto voto dos camilianos, tão original e
essencial como a profissão dos conselhos evangélicos. A atual
Constituição da Ordem recolhe esta opção de fundo na confissão de Camilo
e dos religiosos camilianos: “Nós. Acreditamos no amor (1 Jo 4,16)
e, movidos pelo Espírito Santo, abraçamos o carisma próprio da Ordem.
Queremos viver unicamente para Deus e para Jesus Cristo misericordioso,
servindo aos enfermos na pobreza, castidade e obediência”.
Camilo bebeu e transmitiu esta radicalidade centrando sua
atenção no Evangelho da misericórdia. A inspiração bíblica de sua
espiritualidade se fundamenta basicamente em dois textos evangélicos,
nos quais encontrou a síntese vital de sua configuração com Cristo: A parábola do bom Samaritano (Lc 10) e o texto de Mateus 25,36-40: Estive enfermo e me visitastes... o que fizestes a um destes meus irmãos mais humildes, a mim o fizestes”.
Podemos fazer uma leitura “contemplativa e operativa” desses textos.
A fonte e o núcleo de sua espiritualidade, também para o cristão de
hoje, estavam justamente em ver, contemplar e servir a Cristo no
enfermo, e em ver e servir ao enfermo com os mesmos gestos, atitudes e
sentimentos de Cristo misericordioso. A sua fé se traduziaem caridade.
Com esta harmonia interior, sem divisões nem dicotomias, Camilo viveu as
experiências mais belas, uma espécie de livro inesgotável para seus
discípulos. Tratava os doentes como se fosse o próprio Cristo e, além de
lhes resgatar sua dignidade, os enlevava enquanto objeto de amor, na
mesma “categoria” de Cristo. Chegou a tal ponto, nesta perspectiva, de
pedir perdão de seus pecados e de considerar os enfermos como seus
“patrões e senhores”.
Esta configuração com Cristo misericordioso e bom samaritano
operou em Camilo uma verdadeira transformação de sua própria humanidade
com todas suas faculdades e energias. Uma transformação com uma forte dimensão estética:
o serviço como obra de arte, em que o corpo, educado na escola do bom
Samaritano, se converte em veículo da ternura de Cristo. Era todo
coração para os enfermos, e transformou em programa de educação,
transmitido de geração em geração, a expressão “mais coração nessas mãos, irmão!”, ou então aquele pensamento em que diz; “cada
um peça a Graça ao Senhor... porque queremos servir aos enfermos com o
mesmo amor com que uma mãe cuida de seu próprio filho enfermo”.
Aqui estão colocados os valores fundamentais de qualquer programa de
humanização de serviços de saúde, hoje sempre mais técnicos, frios e sem
alma! Urge transformar esta cultura.
A espiritualidade camiliana aparece profundamente radicada no Carisma da Ordem e na experiência do Espírito transmitida pelo fundador, e é expressa como “o dom de reviver e testemunhar no mundo o amor sempre presente de Cristo para com os enfermos
“(C 1). Dito de uma forma direta e sem matizes, o dom que alimenta e dá
conteúdo à espiritualidade consiste no presente de uma nova
experiência: a possibilidade de apropriar-se dos sentimentos, gestos e
atitudes de Cristo misericordioso (o que ele sentiu e fez).
Resulta transparente a centralidade do ministério/serviço.
Trata-se do serviço ao próprio Cristo (aqui seu valor), do que Ele fez e
do significado de sua ação solidária, terapêutica e salvífica em favor
dos enfermos. Este ministério acolhido e realizado é obra da Graça, a
qual edifica sobre a fraqueza humana, se integra no seguimento de
cristo, constitui um modo novo de viver a relação com Deus. Nós,
cristãos de hoje, precisamos estar conscientes de que o serviço nos
remete sempre ao Cristo misericordioso como referência existencial e
contempla em Jesus não somente um exemplo a ser seguido, mas também a
razão que orienta e reorienta sua vida.
Na vivência do ministério, o cristão se coloca na mesma perspectiva de Cristo. O
cristão e, especialmente o Camiliano, está consciente de que, com sua
consagração a serviço da saúde e aos enfermos, prolonga no mundo a
missão salvífica e terapêutica de Cristo. Sabe, portanto, que tem a
oferecer a mesma saúde que Jesus ofereceu: uma saúde integral, que
compreende todas as dimensões da pessoa (física, psíquica, social e
espiritual), uma saúde orientada para a salvação. Para ele, para além do
horizonte final de sua ação, é importante explicitar o “a partir de onde”.
Como em Cristo, a partir de “baixo”, a partir de sua atitude vital que
leva a sério todo o humano, que descende ao centro das periferias, que
encontra e serve a Cristo no caminho samaritano (a “liturgia dos gestos”) e traduz a caridade em sensibilidade, num sexto sentido e num terceiro ouvido.
Este serviço se inspira no mistério mesmo da Encarnação.
Nele, aprende a olhar com olhos diferentes todo o humano, alimenta sua “paixão pela vida”, especialmente a mais ameaçada, frágil e indefesa; aprende a viver saudavelmente e santamente seu próprio corpo. Da Encarnação parte e se expande o plano salvífico de Cristo. Uma de suas expressões mais significativas está em Jo 10,10: “Eu vim para que todos tenham vida e a tenham em abundância”.
Da vocação, a identificar-se com Cristo e sua paixão pela vida, brota espontaneamente uma associação indissolúvel entre o serviço da vida e a vida de oração.
Para São Camilo, como vimos, o serviço aos enfermos era uma Graça a
ser pedida e, ao mesmo tempo, a expressão mais perfeita da
caridade.
Algumas características específicas que convém ressaltar: esta espiritualidade de oração tão rente ao chão da vida, significa orar diante da realidade da vida. Para
o cristão este é “o espaço”, sempre com rostos, de sua relação com
Deus. Sabedor de sua missão de dar vida, o cristão percorre o mesmo
caminho de Cristo: situa-se a partir dos sofrimentos do homem, em suas
pequenas expectativas e em suas grandes esperanças. Torna-se um expert
em humanidade, acolhe e respeita todo o humano, acompanha os processos
de perto, ajuda a curar as feridas e a abrir novos horizontes...
Outro aspecto fundamental, embora nem sempre explicitado: espiritualidade da comunhão, em
todos os níveis. Para entendermos melhor precisamos partir das
referências fundamentais. A primeira é Bíblica: a saúde e o serviço aos
enfermos foram encomendados à Igreja como dom e como missão. Além
disso, situados por Cristo, no mesmo nível que o anúncio do Reino: curar e anunciar
(Lc 10,9). Outro referencial: a saúde remete sempre a um lugar, a uma
comunidade, a um tecido relacional. Pois bem, a espiritualidade
camiliana tem uma de suas expressões mais relevantes em sua capacidade de gerar alianças (aliança
terapêutica), de semear solidariedade e de buscar efeitos
multiplicadores. Nascidos segundo o dom do Espírito, para cuidar e
ensinar a cuidar da vida e saúde da humanidade ferida e sofrida.
Não foi por acaso que São Camilo foi proclamado como sendo o
padroeiro dos doentes e dos profissionais da saúde e dos hospitais. Foi
seguindo este itinerário espiritual que ele se santificou e transformou
a realidade dos cuidados de saúde de então. Necessitamos hoje de mais
“Camilos”, como agentes da pastoral da saúde, profissionais da saúde
conscientes do seu dever de servir com amor e competência científica,
para viabilizar nosso sistema público de saúde, o SUS que queremos.
São Camilo de Lélis, rogai por nós!
† Orani João Tempesta, O. Cist.
Arcebispo Metropolitano de São Sebastião do Rio de Janeiro, RJ
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