08/07/2012
UNISINOS - Publicamos a seguir a resenha de Rodrigo Coppe Caldeira, doutor em Ciências da Religião e professor da PUC Minas, autor do livro Os baluartes da tradição: o conservadorismo católico brasileiro no Concílio Vaticano II (Curitiba: CRV, 2011), sobre o livro Vatican II: the battle for meaning [Vaticano II: A batalha pelo significado], de Massimo Faggioli. Para Coppe Caldeira, “a obra de Faggioli é
uma oportunidade de adentramos, nesse início da segunda década do novo
milênio, nos meandros historiográficos, teológicos e hemenêuticos dos
debates em torno do Concílio Vaticano II e seus inúmeros desafios”.
Massimo Faggioli é doutor em história da religião e professor de história do cristianismo da University of St. Thomas, em Minneapolis-St. Paul, nos EUA.
As citações em inglês, que estão nas notas publicadas no final do texto, foram traduzidas por Moisés Sbardelotto.
Eis o artigo.
Nestes quase cinqüenta anos de inicio do Concílio Vaticano II, cresce e aprofunda-se a discussão em torno dos seus significados, transparecido nos debates em torno da procura de adequada interpretação dos documentos promulgados. Neste início de século, estes debates foram perpassados por um novo vigor, especialmente pela elevação de Joseph Ratzinger ao sólio papal, deixando claro, desde seus primeiros discursos, que a recepção do Vaticano II seria uma das preocupações centrais de seu papado. De fato, está sendo, já que, além da presença do tema em inúmeros de seus discursos, o seu movimento em vista de finalizar o cisma pós-conciliar de 1988, levado a cabo pela radicalização de Marcel Lefebvre e Antônio de Castro Mayer, pisa no terreno da hermenêutica do concílio. Alguns analistas vêem a situação atual como uma verdadeira "batalha".
Nestes quase cinqüenta anos de inicio do Concílio Vaticano II, cresce e aprofunda-se a discussão em torno dos seus significados, transparecido nos debates em torno da procura de adequada interpretação dos documentos promulgados. Neste início de século, estes debates foram perpassados por um novo vigor, especialmente pela elevação de Joseph Ratzinger ao sólio papal, deixando claro, desde seus primeiros discursos, que a recepção do Vaticano II seria uma das preocupações centrais de seu papado. De fato, está sendo, já que, além da presença do tema em inúmeros de seus discursos, o seu movimento em vista de finalizar o cisma pós-conciliar de 1988, levado a cabo pela radicalização de Marcel Lefebvre e Antônio de Castro Mayer, pisa no terreno da hermenêutica do concílio. Alguns analistas vêem a situação atual como uma verdadeira "batalha".
É o caso da obra publicada nos Estados Unidos por Massimo Faggioli intitulada Vatican II: the battle for meaning. Faggioli busca, em seis capítulos, apresentar o ponto em que nos encontramos nesta "quaestio disputata",
tentando demonstrar as forças em jogo, reconstruindo, mesmo que
brevemente, os principais momentos e desafios da recepção conciliar.
Certamente, refletir sobre o catolicismo atual sem referenciar a
realidade do Vaticano II seria incorrer em erro. Como Faggioli afirma,
"a melhor forma de refletir sobre o estado do catolicismo no mundo
global do século XXI é recuperar a posse do evento que moldou a Igreja
de uma forma que só é comparável ao impacto do Concílio de Trento no
catolicismo europeu" (p. 2) [1].
Dessa forma, a preocupação de Faggioli é
contextualizar o evento conciliar a partir dos significados advindos de
sua recepção, ou seja, desde seu desenvolvimento entre o anúncio por
parte de João XXIII e,
particularmente, as fases posteriores, que serão fundamentais no
processo dinâmico de sua receptio. Para tanto, o historiador italiano
divide este período entre 1960-65 (“What Vatican II said about Vatican
II”), apontando para a realidade do Vaticano II como
aquele primeiro concílio realmente global, assinalado por pendor
ecumênico e pela renovação patrística; 1965-80 (“Vatican II:
acknowledged received, refused”), no qual aponta para os debates que
surgem sobre o concílio, e que tem entre os seus principais comentadores
Yves Congar, Henri de Lubac, Joseph Ratzinger, Edward Schillebeeckx; os sínodos nacionais (por exemplo, o de Medellín em 1968); a fundação das revistas Concilium (Hans Küng, Yves Congar, Karl Rahner, Edward Schillebeeckx) e Communio (Joseph Ratzinger, Hans Urs von Balthasar, Henri de Lubac)
sinalizando para o fato de que as interpretações em torno do concílio
não seriam unânimes; 1980-90, marcado por cada vez menos contribuições
da academia e mais influência da política doutrinária da Santa Sé,
especialmente com a recodificação da lei canônica, o Sínodo dos Bispos de 1985, que oferecia as diretizes para se interpretar o Vaticano II, além da publicação do livro-entrevista de grande impacto, publicado no Brasil com o título “A fé em crise? O cardeal Ratzinger se interroga”; 1990-2000, no qual a preocupação com a historicização do concílio aparece no projeto de envergadura encabeçado por Giuseppe Alberigo, assinalado por uma perspectiva hermenêutica que afirma o concílio como “evento”.
De 2000 até hoje, Faggioli pergunta: "Rumo a uma nova luta em torno do Vaticano II?". A morte de João Paulo II e a eleição de Bento XVI constituem dois elementos importantes no campo teológico e eclesiástico na paisagem dos debates sobre o Vaticano II nos últimos anos. Faggioli cita o documento “Responses to Some Questions Regarding Certain Aspects of the Doctrine on the Church” (29 de junho de 2007), que tratou de como deve ser interpretado o “subsist in” (Lumen Gentium, 8), o moto próprio Summorum Pontificum (2007),
que permitiu o uso da missa tridentina de forma ampla e, em 2009, o
levantamento das excomunhões dos quatro bispos ordenados por Marcel Lefebvre como momentos da última década que vão dar novo impulso aos debates em torno da hermenêutica do concílio.
Faggioli levanta três posições interpretativas no pós-concílio que partiam da ideia do Vaticano II como um concílio de reforma: a primeira em torno da revista Concilium,
que tinha como palavra de ordem a expressão “beyond the council”,
entendendo o concílio como um início e não simplesmente um fim; a
segunda representatada pela ideia de uma recepção reformista dos
documentos conciliares; e a terceira que marca a importância dos
documentos conciliares para que seja colocada em andamento as reformas,
como aquela da Cúria Romana, a litúrgica, a da colegialidade. Faggioli também aponta para os tradicionalistas, que rejeitam o concílio, entendido por eles como heresia, o que leva ao cisma de 1988.
Momento interessante da obra é aquela que traz a situação da teologia
no período pós-conciliar, marcada pelas posições das mais importantes
revistas teológicas do mundo, Concilium e Communio. Segundo Faggioli, a divisão do que foi a “maioria conciliar” nos tempos da assembleia demonstrou as tensões que existiam no campo hermenêutico: "O assunto polêmico era a ideia da Communio sobre o Vaticano II de validar o ressourcement como um método para favorecer o trabalho na teologia versus a ideia da Concilium sobre o Vaticano II como o incipit de uma reformatio, uma atualização mais abrangente da Igreja Católica em sua teologia e estruturas" (p. 52) [2].
Faggioli, assim, vê duas tendências no pós-concílio,
que irão refletir, sem sombra de dúvida, nas linhas interpretativas dos
significados do concílio: a primeira representada pelos
neo-agostinianos (filosoficamente próximos do platonismo); a segunda, a
dos neo-tomistas (filosoficamente próximos de Aristóteles).
Segundo o historiador, estas duas linhas já estavam delineadas no
próprio concílio, não sendo assim resultado da dinâmica pós-conciliar. A
escola agostiniana, como afirma Ormond Rush, citado por Faggioli, "está
querendo definir a Igreja e o mundo em uma situação de rivais; ela vê o
mundo em uma luz negativa; o mal e o pecado abundam de tal forma no
mundo que a igreja deve sempre suspeitar e desconfiar dele. Qualquer
abertura ao mundo seria um 'otimismo ingênuo'" (p. 68-69) [3].
Esta tendência teria atraído inúmeros teólogos, não só aqueles ligados à
orbe conservadora e/ou tradicionalista, mas também aqueles ligados à nouvelle theologie, como Henri de Lubac, Jean Daniélou, Hans Urs von Balthasar, Louis Bouyer e Joseph Ratzinger.
Importante afimar com o autor que "a biografia intelectual de muitos
neoagostinianos críticos do Vaticano II tem sido muito mais complexa do
que a defesa de uma agenda meramente conservadora" (p. 69) [4]. Von Balthasar, por exemplo, em seu Razing the Bastions, publicado dez anos antes do concílio, "expressou a necessidade de a Igreja não se 'entrincheirar' mais contra o mundo" (p. 69) [5].
Depois do concílio, o teólogo compreenderá os vários aspectos da
teologia pós-conciliar como o resultado do casamento entre o deísmo
inglês (Herbet of Cherbury), o historicismo alemão e o idealismo (Hegel) às custas de Tomás de Aquino. Henri de Lubac, por seu turno, já deixa transparecer no próprio Vaticano II, de acordo com Faggioli, ao analisar seu diário do concílio, seu ceticismo em relação à antropologia do evento conciliar, e a Gaudium et spes especialmente. Em sua Augustinisme et théologie moderne, de 1971, escreve: “Hoje
somos testemunhas de um esforço que quer dissolver a Igreja no mundo...
A maré de imanentismo está crescendo irresistivelmente" (p. 71) [6].
Para o teólogo, "o equilíbrio teológico entre natureza e graça foi
interrompido em favor de uma confiança ingênua na natureza e no mundo
contra a necessidade da graça e da fé, e contra a ideia de
transcendência" (p. 71) [7].
Joseph Ratzinger, por seu turno, concorda com a tese de fundo sobre a situação pós-conciliar de De Lubac, e como prefeito para a Sagrada Congregação para a Doutrina da Fé
entre 1981 e 2005 – e como papa depois de sua eleição em abril de 2005 –
teve várias oportunidades de reforçar seus posicionamentos. Segundo Faggioli, o agostinismo de Ratzinger data de seus anos na escola secundária, na Alemanha nazista,
quando a ideia da obra “Cidade de Deus” era pensada como um antídoto
para o totalitarismo. Porém, para o historiador, o seu trabalho
pós-doutoral sobre São Boaventura ajuda a compreender a avaliação de Ratzinger da antropologia e eclesiologia do Vaticano II
e sua evolução no pós-concílio. O então Cardeal salientou desde o
início deste período a importância de uma correta interpretação do
concílio.
Sempre segundo Faggioli, Ratzinger dizia que as afirmações da Gaudium et spes "'respiram
um otimismo surpreendente', resultando em nada mais do que 'uma revisão
do Syllabus de Pio IX, uma espécie de contra-syllabus', que se
destinava a inverter a posição negativa adotada por Pio IX contra os
'erros' políticos e doutrinais da modernidade listados no Syllabus de
1864" (p. 74) [8]. Para o historiador, o agostinismo de Ratzinger está na base de sua compreensão, não só da Gaudium et spes, mas também, por exemplo, da Teologia da Libertação e das teologias de Jürgen Moltmann e de Johann Baptist Metz. Faggioli adjetiva como “áspera” a opinião sobre o Vaticano II de Raztinger, que segundo o autor, está ligada à sua defesa do agostinismo.
A segunda tendência fundamental de interpretação do concílio é a
chamada pelo historiador como “‘progressistas’ neo-thomistas”. Entre
eles estariam Yves Congar, Marie-Dominique Chenu, Edwad Schillebeeckx, Karl Rahner e Bernad Lonergan. Utilizando-se da análise de Gerald McCool, Faggioli afirma
que a partir do tomismo estes teólogos defendiam o lugar da história e
do pluralismo na teologia, olhando para eles como fatores positivos. Chenu (1895-1990),
por exemplo, "propôs uma historicização fundamental da teologia de
Tomás de Aquino - que a teologia católica do século XX deveria fazer com
a filosofia moderna e as ciências sociais o que Thomas havia feito com
Aristóteles no século XIII" (p. 76) [9].
Para Chenu, a interpretação do Vaticano II deve
estar ligado inextrincavelmente com a percepção do “fim da era
constantiniana”, o fim do acordo entre o Altar e o Trono, entre a Igreja
e o Estado. Tal mudança, segundo o teólogo, é um fenômeno que aponta
para as mudanças não só históricas e culturais do Ocidente cristão, mas
também requer uma mudança nas relações entre história e teologia. Yves Congar
(1905-1995), por seu turno, o mais influente teólogo do concílio, focou
inúmeras vezes a relevância da história para a teologia. Sobre a
influência de Tomás de Aquino em sua teologia, Faggioli cita
trecho de seus diários: "O que eu vejo me faz entender por que São
Tomás era tão atento aos árabes e aos gentios. Eu imagino um São Tomás
muito atento, aberto e ativo com relação ao mundo ao qual ele se
voltava" [10].
Em outro trecho afirma: “uma teologia ao serviço da Igreja pelas necessidades do seu tempo, de acordo com a missão de São Tomás" (p. 79) [11]. A aproximação com o tomismo se daria na compreensão do papel histórico de Tomás de Aquino na Igreja, ao realizar a releitura de Aristóteles no
século XIII, pois, sobre a tentativa da Cúria Romana de reintroduzir
certo neo-escolasticismo como caminho nas escolas e universidades
católicas, Congar era bem crítico: "Seria como usar Tomás de Aquino contra ele mesmo" (p. 79) [12]. Para o teólogo, "o Vaticano II alcançou algo semelhante ao que a revolução tomista alcançou no século XIII" [13]. Faggioli também cita Karl Rahner (1904-1984) como um teólogo que se situaia nesse grupo, além de Bernard Lonergan (1904-1984).
Momento de central importância no pós-concílio foram os debates no
Sínodo Episcopal de 1985, que teria como objetivo, intentado por João Paulo II, de demonstrar os limites da recepção do Vaticano II. O documento final do Sínodo – que foi dado os créditos ao cardeal Godfried Danneels e ao teólogo e secretário do Sínodo, Walter Kasper – trouxe seis princípios para a interpretação do concílio. Segundo Faggioli, "de
um ponto de vista histórico, a leitura da recepção do Vaticano II foi
muito mais próxima do 'otimismo' do próprio concílio do que do
'ceticismo' que muitos bispos e teólogos católicos [...] apesar das
visíveis 'reversões' impostas pelo Sínodo dos Bispos de 1985 sobre como a
eclesiologia do Vaticano II já havia sido recebida entre 1965 e 1985"
(p. 85) [14].
Para o historiador, o Sínodo marcou uma virada, já que, segundo ele,
se deu a emergência da compreensão da recepção conciliar a partir da
chave neo-agostiniana. A Igreja do Sìnodo seria assinalada pela visão de
João Paulo II e sua interpretação do concílio: "Um claro desenvolvimento na questão ad extra (ensino social, ecumenismo, diálogo inter-religioso) e uma abordagem mais conservadora às questões ad intra" (p. 86) [15]. Tal complexidade tona-se aparente no final de 1983, com o Código de Direito Canônico,
"que uniu com uma grande 'ambiguidade' dois elementos diferentes, ou
seja, a eclesiologia principalmente tridentina e jurídica da societas e a eclesiologia mais teológica da communio" (p. 86) [16].
Para Faggioli, é possível ver nos debates do Sínodo e
em seu documento final, que algumas decisões teológicas do concílio
foram revisitadas e reinterpretadas por João Paulo II,
como, por exemplo, a noção de “povo de Deus”, a ideia de um “catecismo
universal”, "postas de lado pelo Concílio, foram ressuscitadas graças à
sugestão vinda de algumas conferências episcopais" (p. 87). E o papel
das Conferências episcopais foi "decisivamente reduzido a um mero
instrumento e privado de significado eclesiológico real" (p.87) [17]. O texto final do Sínodo reflete, assim, algumas tensões que emergiram da recepção global do Vaticano II depois de 1965, revelando também as divergentes tendências hermenêuticas no pós-concílio. Faggioli concorda com Gilles Routhier,
que entende que momento crucial no Sìnodo foi "o início de um processo
de gradual mas certa desqualificação de algumas das interpretações do
Vaticano II e de uma redução das possíveis interpretações dos documentos
conciliares" (p. 88) [18].
Para o historiador, o período pós-sinodal será assinalado por um
embate de narrativas a respeito do concílio e sua interpretação. Mesmo
sendo delineado as diretrizes para a recepção, notou-se vibrante debate
intelectual sobre as descobertas dos significados do concílio. Mais
estudos históricos e teológicos, todavia, não levaram a um acordo sobre o
papel da Igreja no milênio que se iniciava. A questão era sobre os
significados dos acontecimento. A tensão entre duas vertentes de
compreensão já era visível no debate teológico nos anos 1980: de um lado
havia o partido da descontinuidade, de outro, o partido da
continuidade. O primeiro defendendo que a Igreja do pré-Vaticano II era
uma, e a Igreja do pós-Vaticano II outra; o segundo afirmando a
continuidade entre os dois momentos.
Cada partido com seus próprios princípios hermenêuticos. Esta divisão
se tornou um convite para que historiadores e teólogos se engajassem em
uma nova fase de pesquisa sobre o concílio. O teólogo alemão Hermann J. Pottmeyer marcou
o início dessa nova fase de investigações. Assim escreveu em
1987: "Duas abordagens interpretativas estão em conflito, especialmente
na segunda fase da recepção: uma olha exclusivamente para os novos
começos produzidos pela maioria conciliar, a outra olha exclusivamente
para as declarações que foram assumidas dos esquemas preparatórios por
iniciativa da minoria e refletem a teologia pré-conciliar" (p. 93) [19].
Para o teólogo, o estudo das atas conciliares e de documentos como
diários e cartas dos participantes do concílio abriria uma nova fase de
sua recepção. A pergunta que se fazia no momento era sobre a
possibilidade de um tratamento histórico rigoroso do Vaticano II e seus significados. Faggioli afirma
que uma nova fase da recepção conciliar se abria com uma nova série de
estudos dos significados históricos do concílio, apontando para as
inúmeras conferências internacionais que se sucederam entre 1988 e 1999,
em Paris, Bologna, Leuven, Houston, Lyon, Würzburg, Moscou e Strasbourg. Estas conferências deram a substância teórica para os fundamentos dos que seriam os cinco volumes da História do Concilio Vaticano II, organizada por Giuseppe Alberigo e com participação de uma comunidade internacional de estudiosos.
Segundo Faggioli, esta fase, aberta com o Sínodo de
1985, foi simbolicamente concluída em 2005, com o novo comentário dos
documentos do concílio editado por Hilberath e Hünermann e com a eleição de Joseph Ratzinger ao papado em abril de 2005. Para o historiador, com a eleição de Ratzinger inaugurava-se "um
novo tipo de relação entre o ensino papal e os documentos do Vaticano
II, ao menos para o pontificado de Bento XVI" (p. 95) [20]. Interessante notar que foi neste momento em que apareceu mais fortemente críticas à história do concílio de Alberigo,
acusado de realizar uma interpretação ideológica do evento conciliar,
"uma interpretação modernista do 'espírito do Vaticano II'" (p. 96). Os
múltiplos aniversários do Vaticano II – em 2003 a constituição litúrgica Sacrosanctum Concilium
fez quarenta anos; em 2005, os quarenta anos da conclusão do concílio;
em 2009 os cinquenta anos de seu anúncio e o aniversário de cinquenta
anos de sua abertura –, juntamente do lugar central do Vaticano II na biografia de Bento XVI como teólogo, deram impulso a um rico debate nos últimos anos.
Faggioli aponta para a eclesiologia como a questão
mais delicada e complexa do pós-Vaticano II, já que a intepretação
teológica da recepção do concílio liga-se diretamente a ela. A primeira
questão, e a mais delicada delas, é o balanço de poder entre o papado e
os bispos. O legado do final dos debates em torno da Lumen gentium e a inesperada adição da Nota explicativa praevia – nota inserida por Paulo VI
em novembro de 1964 antes do texto já aprovado pelos bispos, com o
intuito de “clarificar” alguns aspectos da colegialidade episcopal –
contribuiu para o debate pós-conciliar, no qual os eclesiologistas
marcaram alguns elementos substanciais para uma hermenêutica da
eclesiologia do Vaticano II.
Duas eclesiologias apareciam assim lado a lado: a eclesiologia de comunhão, advinda do Vaticano II, e a eclesiologia jurídica, advinda do concílio Vaticano I.
O trabalho final de harmonizá-las não foi levado a cabo pelo concílio
do século XX. O historiador observa que "os documentos do Vaticano II
mantiveram o conceito de apostolado leigo próximo do ideal da Ação
Católica - levemente mais independente da hierarquia eclesiástica, mas
ainda na necessidade de um 'mandato' vindo dela" (p. 100) [21].
Outra questão eclesiológica levantada por Faggioli e que traz inúmeros debates é aquele que versa sobre o “subsist in”, Lumen gentium número 8.
Para o estudioso, as reinterpretações que passaram a surgir sobre este
trecho do documento, que marcava os intuitos ecumênicos do
concílio, "ignora a intenção do concílio sobre essa mudança na linguagem
da constituição eclesiológica" (p. 101) [22]. Algumas delas vieram diretamente da Sagrada Congregação para a Doutrina da Fé, como a declaração Dominus Iesus, de 2000, e o documento de junho de 2007 sobre alguns aspectos da doutrina sobre a Igreja.
A interpetação oficial do “subsist in” foi a faísca para inúmeros debates em torno da questão e do que chama de “crise do ecumenismo católico”,
depois do sucesso da Declaraçao conjunta sobre a Doutrina da
Justificação, assinado por católicos e luteranos em 1999. Além da
questão eclesiológica, aquelas envolvendo a liturgia também foram alvo
de debates, especialmente a partir do moto proprio Summorum Pontificum assinado por Bento XVI em 2007. A “reforma da reforma litúrgica” teria presença considerável no papado de Ratzinger.
Para Faggioli, nesse "clash of narratives"
[choque de narrativas] que marca a primeira década do milênio em torno
dos feitos e significados do concílio, é assinalado, incontestavelmente,
pelo impulso da narrativa católica conservadora, especialmente devido à
eleição de Joseph Ratzinger. De acordo com o historiador, por muitos anos o Vaticano foi expressão de uma contradição entre duas conflituosas visões sobre o concílio: aquela fundamentalmente positiva de João Paulo II e a do cardeal Ratzinger, “agudamente pessimista” ao ler o pós-concílio.
O conclave de 2005 colocou um fim neste diálogo "entre os dois
intérpretes mais importantes do Vaticano II nos primeiros 50 anos da sua
recepção e abriu uma nova fase, em que a interpretação de Ratzinger não
é mais equilibrada pela de João Paulo II" (p. 106-107) [23]. Segundo o historiador, o tom do debate mudou com a eleição de Bento XVI,
que deu seu primeiro passo no caminho de remodelar o papel do concílio
com seu discurso à Cúria Romana em dezembro de 2005. Afirmava: "Duas
hermenêuticas contrárias se embateram e disputaram entre si. Uma causou
confusão, a outra, silenciosamente mas de modo cada vez mais visível,
produziu e produz frutos" (p. 109-110) [24].
As linhas mais visíveis que marcam o debate, como aponta Faggioli, sobre o Vaticano II, são as seguintes: a compreensão do Vaticano II como
o fim ou o início da renovação; a visão sobre a dinâmica dos textos
conciliares e sua posição no que concerne ao desenvolvimento da teologia
católica; a questão da mudança e da historicidade na Igreja e na
teologia. No que tange à primeira questão, o autor afirma que é "outra
forma de descrever a oposição entre a concepção do catolicismo como um
fenômeno dominado por uma cultura (greco-romana, europeia, ocidental e
assim por diante) ou como uma comunhão guiada pelo Espírito e capaz de
transcender e iluminar toda cultura particular" (p. 124-125) [25].
Sobre o segundo ponto, duas correntes se abrem: a primeira advoga um "theological axis" [eixo teológico] para a interpretação do corpus do Vaticano II, tendo como seus principais representantes Christoph Theobald. A segunda corrente, tendo como principais representantes John O’Malley, Gilles Routhier e Peter Hünermann, focam o papel central dos documentos em sua constituição histórica, no seu gênero literário e seu estilo.
Concluindo: a obra de Faggioli é uma oportunidade de
adentramos, nesse início da segunda década do novo milênio, nos
meandros historiográficos, teológicos e hemenêuticos dos debates em
torno do Concílio Vaticano II e seus inúmeros desafios. Vale a leitura!
Notas:
1 - No original: "The best way to reflect on the
state of catholicism in the twenty-first-century global world is to
regain possession of the event that shaped the Church in a way that is
comparable only to the impact of the Council of Trent on European
catholicism".
2 - No original: "The divisive issue was Communio’s
idea of Vatican II as validating ressourcement as a method for further
work in theology versus Concilium’s idea of Vatican II as the incipit of
a reformatio, a more comprehensive updating of the Catholic Church in
its theology and structures".
3 - No original: "Is wanting to set church and world
in a situation of rivals; it sees the world in a negative light; evil
and sin so abound in the world that the church should be always
suspicious and distrustful of it. Any opennes to the world would be
‘naïve optimism’”.
4 - No original: "The intellectual biography of many
neo-Augustinian critics of Vatican II has been far more complex than
the advocacy of a merely conservative agenda".
5 - No original: "Expressed the need for the Church to no longer be ‘barricaded’ against the world".
6 - No original: "Today we are witnesses of an
endeavour that wants to dissolve the Church in the world… The tide of
immanentism is growing irresistibly".
7 - No original: "The theological balance between
nature and grace had been disrupted in favor of a naïve confidence in
nature and the world against the need of grace and faith, and against
the idea of transcendence".
8 - No original: "Breathe an astonishing optimism’,
resulting in nothing more than ‘a revision of the Syllabus of Pius IX, a
kind of counter-syllabus’, wich was intended to reverse the negative
stance adopted by Pius IX against the political and doctrinal ‘erros’ of
modernity listed in the Syllabus of 1864".
9 - No original: "Proposed a fundamental
historization of the theology of Thomas Aquinas – that twentieth-century
Catholic theology should do with modern philosophy and social sciences
what Thomas had done with Aristotle in the thirteen century".
10 - No original: "What I see makes me understand
why St. Thomas was so attentive to Arabs and gentiles. I imagine a St.
Thomas very attentive, open and active towards the world he was facind".
11 - No original: "A theology at the service of the Church for the needs of its time, according to St. Thomas’s mission".
12 - No original: "It would be just like using Thomas Aquinas against himself".
13 - No original: "Vatican II had achieved something similar to what the Thomist revolution had achieved in the thirteenth century".
14 - No original: "From a historical point of view,
the reading of the reception of Vatican II was much closer to the
‘optimism’ of the council itself than to the ‘skepticism’ that many
Catholic bishops and theologians [...] Despite the visible ‘reversals’
imposed by the 1985 Synod of Bishops on how Vatican II ecclesiology had
already been received between 1965 and 1985".
15 - No original: "A clear development in the issue
ad extra (social teaching, ecumenism, interreligious dialogue) and a
more conservative approach to the issues ad intra".
16 - No original: "Which assembled with a great deal
of ‘ambiguity’ two different elements, that is, the mainly Tridentine
and juridical ecclesiology of societas and the more theological
ecclesiology of communio".
17 - No original: "Set aside by the council, was
revived, thanks to the suggestion coming from some episcopal conferences
[...] decisively reduced to a mere tool and deprived of real
ecclesiological meaning".
18 - No original: "The beginning of a process of
gradual but sure disqualification of some of the interpretations of
Vatican II and of a reduction of the possible interpretations of the
conciliar documents".
19 - No original: "Two interpretative approaches are
in conflict, especially in the second phase of reception: one looks
exclusively to the new beginnings produced by the conciliar mojority,
the other looks exclusively to statements that were taken over from the
preparation schemata at the instigation of the minority and reflect
preconciliar theology".
20 - No original: "A new type of relationship
between papal teaching and Vatican II documents, at least for Benedict
XVI's pontificate".
21 - No original: "The documents of Vatican II
maintained the concept of lay apostolate next to the ideal of Catholic
Action – slightly more independent of the ecclesiastical hierarchy but
still in need of a ‘mandate’ coming from it".
22 - No original: "Ignores the intention of the council about this change in the language of the ecclesiological constitution".
23 - No original: "Between the two most important
interpreters of Vatican II in the first fifty years of its reception and
opened a new phase, in which Ratzinger’s interpretation is no longer
balanced by that of John Paul II".
24 - No original: "Two contrary opposite
hermeneutics came face to face and quareled with each other. One caused
confusion, the other, silently but more and more visibly, bore and is
bearing fruit".
25 - No original: "Another way to describe the
opposition between the conception of catholicism as a phenomenon
dominated by a culture (Greco-Roman, European, Western, and so on) or as
a communion guided by the Spirit and able to transcend and enlighten
every particular culture".
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