ihu - Em geral, por trás de todos esses movimentos, está a crise de
identidade católica que parece não saber se contentar "somente" com a
identidade cristã. Os reacionários cultivam um tipo de identidade cristã
que os faz se sentir melhores e mais à vontade entre os "muitos" do que
entre os "todos".
A opinião é do teólogo suíço Ursicin Derungs, ex-professor da Escola Suíça de Milão, em artigo publicado na revista Viator, n. 3-4-5, de março-abril-maio de 2012. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis o texto.
Mais
uma vez, estão em questão as palavras da instituição da Eucaristia, "o
sangue derramado por muitos" (Marcos 14, 24; "Este é o meu sangue, o
sangue da aliança, que é derramado por muitos", Mateus 26, 28).
Na liturgia da missa, por exemplo de língua alemã, de 1975, a expressão é traduzida assim: : "... für euch und für alle vergossen (derramado por vós e por todos)". Do mesmo modo, em italiano. O Papa Ratzinger,
no entanto, não concorda com o que é aceito há décadas na prática e na
teoria, e, em uma carta do dia 14 de abril passado, ordenou que o
presidente da Conferência Episcopal Alemã se atenha à tradução literal, palavra por palavra, e que escreva, portanto, "por muitos" e não "por todos". Segundo o que Jan-Heiner Tück escreve na Neue Zürcher Zeitung do dia 11 de maio passado, não se trataria de um mero mandato, mas sim de uma prescrição motivada.
Mas
quão válida é a argumentação que a fundamenta? Nessa discussão, quase
não se leva em consideração o principal: o texto "original" grego dos
Evangelhos que reporta as palavras de Jesus é, na realidade, uma
tradução. Jesus não falava grego, mas sim aramaico. A versão grega que
diz "por muitos" (hypér pollôn) traduz um original aramaico/hebraico que diz "pelas multidões" (rab, plural rabbim –
no canto do Servo Sofredor, em Isaías 53,2, lê-se um trecho muito
semelhante às palavras de Jesus na Última Ceia: "[...] porque entregou a
si mesmo à morte e foi contado entre os pecadores, ele carregou os
pecados de muitos e intercedeu pelos pecadores".
Em hebraico, esses "muitos" é expresso como rabbim,
que não tem nenhum sentido restritivo, não significa "muitos, mas não
todos", mas significa "as multidões", ou seja, um número impreciso e
indefinido de pessoas, correspondente no sentido ao nosso "todos".
Mas a versão grega dos LXX havia traduzido literalmente em grego com pollôn (muitos; e não com pánton
(todos), e isso certamente influenciou a escolha do termo grego com que
no Novo Testamento foram traduzidas as palavras pronunciadas por
Jesus). Esse era o modo em que essas línguas expressavam o conceito de
"todos", para o qual não havia uma outra palavra específica.
Isso,
por si só, torna supérflua toda argumentação em favor da fórmula "por
muitos" em vez de "por todos". Porém, tal argumentação é proposta pelo
papa, como o professor Tück destaca com grandes louvores. E a partir do momento em que a formulação "por todos" pode, como Ratzinger diz,
causar mal-entendidos, se deveriam fazer catequeses particulares para
explicar que "por muitos" não deve ser entendido em um sentido
restritivo, mas sim que a morte de Cristo é, obviamente, "por todos".
Por isso – segundo o papa –, primeiro se muda o "por todos" por "por
muitos", e depois se fazem catequeses para explicar que "por muitos", no
entanto, quer dizer "por todos". A parte mais curiosa da argumentação
vai por si só em uma direção herética.
A esse respeito, o professor Tück de
Viena não economiza incensamentos ao papa. Este último diz que na
formulação "por muitos" está contida a ideia da substituição (Stellvertretungsgedanke): há uma responsabilidade dos "muitos" em favor dos "todos".
Mas – e isto nem Ratzinger nem Tück mencionam
nesse contexto – há somente "um", isto é, Jesus Cristo na sua morte,
que substituiu "todos" na sua perdição. A responsabilidade dos "muitos" –
dos quais falam Ratzinger-Tück – não é
responsabilidade de substituição, mas sim responsabilidade de testemunho
(dado acima de tudo muito mal; pense-se apenas nos escândalos na Igreja
Católica, até as suas mais altas instâncias). Esses "muitos", olhando
bem, não estão menos perdido do que "todos os outros".
Portanto, a
insistência em um "original" que é em si mesmo uma tradução e, assim,
também um pouco uma "traição", produziu "argumentações" que, na
realidade, são ideológicas. A questão exegética, na realidade, é
inexistente! Por trás disso, estão outras razões, que levantam muitas
interrogações. Acima de tudo, razões de natureza político-eclesiástica,
contra o parecer do professor Tück.
Este, na sua qualidade de professor de dogmática católica em Viena,
talvez não se sentiu livre para desenvolver uma argumentação mais
honesta, discordante da defendida pelo papa. O traço político é este:
trata-se de uma concessão aos conservadores. E isso está alinhado com
outras medidas tomadas pelo Papa Bento XVI,
especialmente a autorização da missa em latim, pré-conciliar e
anticonciliar, em favor da parte católica reacionária. Além disso, a readmissão dos seguidores de Lefebvre na comunhão com a Igreja Católica, com o seu penoso deslize ao antissemitismo do bispo Richard Williamson, um negacionista do Holocausto!
Em
geral, por trás de todos esses movimentos, está a crise de identidade
católica que parece não saber se contentar "somente" com a identidade
cristã. Os reacionários cultivam um tipo de identidade cristã que os faz
se sentir melhores e mais à vontade entre os "muitos" do que entre os
"todos". A isso, acrescenta-se o medo das Igrejas que, na modernidade e
na pós-modernidade, veem o desaparecimento da sua presença na sociedade e
a sua relevância na cultura globalizada. Nessa situação incerta e
precária, tendemos a nos agarrar com todas as forças, com unhas e dentes
a particulares que flutuam no mar tempestuoso da história como restos
de um naufrágio.
A ideia e a sensação de não ter que se sentir
perdido entre os "todos", mas sim de ser aquele grupo vigário (segundo a
concepção do papa!), eleito, especial, pode reforçar a autoconsciência.
Em suma: por trás da proposta de colocar "por muitos" em vez de "por
todos", está a crise moderna da identidade eclesiástica.
A
discussão em torno da formulação "por muitos" ou "por todos" denota,
portanto, um desconforto muito mais profundo. Mas esse mal-estar não
pode ser resolvido mediante uma discussão vazia sobre os termos, mas sim
unicamente por meio de uma tomada de conhecimento e de consciência do
Evangelho e, consequentemente, jogando fora, no mar insidioso e
purificante da história, o entulho da máquina eclesiástica.
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