08/09/2012
A opinião é do cardeal Camillo Ruini, vigário emérito do papa para a cidade de Roma e ex-presidente da Conferência dos Bispos da Itália, em entrevista a Aldo Cazzullo, publicada no jornal Corriere della Sera, 05-09-2012. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis a entrevista.
Cardeal
Ruini, o senhor conta que os editores lhe pediam um livro de memórias
sobre os anos em que liderou a Igreja italiana. Por que, ao invés, um
livro sobre Deus [Intervista su Dio, escrito com Andrea Galli]?
Porque
me parece enormemente mais útil e também mais interessante. A
existência de Deus e a nossa relação com Ele foram a ancoragem da minha
vida e o centro dos meus interesses intelectuais. Sinto-me no dever de
oferecer esse livro às pessoas.
O senhor defende ter tido desde menino a certeza da existência de Deus. Por quê?
Eu
penso que é uma certeza bastante natural para o homem, e em particular
para o menino. Mas também é um dom que Deus nos dá de modo livre. Por
que ele o dá de modo particularmente intenso a alguns, isso só Ele sabe.
Os seus pais não queriam que o senhor fosse padre.
É
verdade. Na família, houve uma oposição muito forte. O que me
entristeceu, mas não me deteve. Meu pai, que era médico, me impôs uma
condição: ir a Roma. Ele temia que o seminário de Reggio Emilia não me daria o suficiente para comer – ainda eram anos de pobreza. E que eu não me formaria.
Dos
estudos na Gregoriana, o senhor lembra a sistematização tomista e
neoescolástica, hoje considerada superada. O que isso significa? Que os
teólogos renunciaram a demonstrar racionalmente a existência de Deus?
Significa
que a teologia começou um novo caminho: um diálogo, embora crítico, com
a cultura atual. Mesmo que a grande escolástica de Tomás a Boaventura continue
sendo muito importante. Essa mudança não implica a renúncia da
argumentação racional em favor da existência de Deus. Mesmo que a
palavra "demonstração" hoje agrade menos, porque parece indicar a
necessidade de acreditar em Deus. Ao contrário, é uma escolha
racionalmente motivada, mas livre.
Conciliar fé e razão é
uma diretriz do papado de Ratzinger, e também floresce no seu livro.
Mas a evolução das ciências e das biotecnologias não torna ainda mais
difícil essa tarefa?
A ciência, de um lado, se tornam
cada vez mais conscientes dos seus próprios limites epistemológicos
intrínsecos. De outro lado, fazem perguntas cada vez maiores e cada vez
mais radicais, não apenas acerca do ser humano, mas também do universo.
Em vez de fechar, as estradas da fé, e eu diria também da filosofia, se
abrem cada vez mais. O cientificismo, que considera objetivamente válido
apenas o pensamento científico, hoje é quase obsoleto. E envergonha os
melhores homens da ciência, que estão longe de se orgulhar da
autossuficiência da pesquisa científica.
O senhor parece
convicto de que, mesmo na era da secularização, a fé e também a proposta
de vida da Igreja não estão condenadas a ser minoritárias. Ou não?
Quantificar
nessas matérias é difícil. Viver como cristãos até o fim ou ao menos
seriamente é para poucos. E, a meu ver, sempre foi. Acreditar em Deus
pode ser para muitos. Nos Estados Unidos, são mais de
80%, na Itália, as porcentagens são um pouco mais baixas, embora
decresçam na cultura alta e nos meios de comunicação.
Como
presidente dos bispos, o senhor avaliou que o cristianismo não devia se
encastelar em uma fortaleza sitiada, mas sim atuar em todo o campo. É
isso mesmo?
Sim, mas a ideia não é minha. É de João Paulo II.
Ainda em 1984, quando eu o conheci, ele dizia que a onda de plena
secularização estava às nossas costas. Então, parecia um juízo
temerário; hoje, é compartilhado pelos sociólogos da religião.
Certamente, a corrente secularizadora continua sendo forte. Com relação a
isso, não devemos nos iludir.
Deus, como o senhor O
pensa, é comum às várias religiões? Como podemos ter a certeza, nós,
cristãos, de que estamos certos? Como podemos ter a certeza de que Jesus
realmente é "a mais alta e definitiva manifestação de Deus na
história"?
Deus certamente é um só. As várias religiões,
no entanto, têm ideias muito diversas sobre Ele. O próprio Jesus
reivindicou ter uma relação única com Deus, que se expressa na palavra
"filho". E Deus confirmou essa pretensão inaudita de Jesus,
ressuscitando-o dos mortos. A pretensão não vem de nós, vem do Cristo.
Segundo
o senhor, há diferença entre a fé de Wojtyla e a de Ratzinger? Nós
tendemos a pensar que a primeira era mais sentimental, e a segunda, mais
racional.
As diferenças existem, não obviamente nos
conteúdos, mas sim no modo, no estilo, também de acordo com a índole de
cada um e o dom que Deus deu a cada um. Mas os dois papas são mais
semelhantes do que parece. Ambos são homens de inteligência
extraordinária: Bento XVI, como todos sabem, e João Paulo II,
que era de uma inteligência fulminante e também teórica. Ambos são
homens de fé rochosa e eu diria também simples: pode-se ser um grande
teólogo, como o Papa Ratzinger, e ter a fé das pessoas simples ou das crianças.
Passou-se
meio século desde a abertura do Vaticano II. Aberturas clarividentes,
interpretadas de modo às vezes equivocado, parece ser essa a síntese que
prevalece hoje na hierarquia. O senhor se reconhece nela? Ou não?
O Vaticano II foi, como disse João Paulo II,
a maior graça recebida pela Igreja no século XX. Justamente por isso,
foi um desafio enorme, às vezes mal compreendido. Daí nasceram danos
muito grandes. Em torno a essa avaliação de fundo, cresce o consenso.
Quais danos?
A
crise do clero, da vida consagrada. Muitos abandonaram a prática
religiosa. A crise da forma católica da Igreja. O Concílio se dedicou
muito à relação entre os bispos e o papa, dando como certa a "tranquila
adesão" a todo o corpo doutrinal da Igreja, como João XXIII a definiu. Ao invés, o magistério da Igreja foi posto em discussão e muitas vezes esquecido até mesmo dentro da própria Igreja.
Como
o senhor recorda o cardeal Martini e como interpreta a sua figura? Ele
foi o "líder da oposição" dentro da Igreja wojtyliana e, na Itália, da
Igreja ruiniana?
Não se trata de Ruini: o interlocutor de Martini era
o papa. Ele foi frequentemente apresentado como o antagonista. Mas ele
nunca quis ser isso. Isso também seria empobrecê-lo. Ele foi uma grande
personalidade, um líder mundial, com muitos registros: espiritual,
bíblico, dialógico, prático. Martini também era um homem que sabia
governar concretamente. Apaixonado por Cristo, pelo Evangelho e pela
Igreja, além da humanidade.
O que o senhor responderia a Martini que, na última entrevista, diz: "A Igreja está 200 anos atrás"?
Eu
nunca polemizei com ele enquanto vivo e muito menos faria isso agora. A
meu ver, é preciso distinguir duas formas de distância da Igreja do
nosso tempo. Uma é um verdadeiro atraso, devido a limitações e pecados
dos homens da Igreja, particularmente à incapacidade de ver as
oportunidades que se abrem hoje para o Evangelho. A outra distância é
muito diferente. É a distância de Jesus Cristo e do seu Evangelho e, por
consequência, da Igreja com relação a qualquer tempo, incluindo o
nosso, mas também aquele em que Jesus viveu. Essa distância deve existir
e nos chama à conversão não só das pessoas, mas também da cultura e da
história. Nesse sentido, hoje também a Igreja não está atrás, mas está à
frente, porque nessa conversão há a chave de um futuro bom.
O
silêncio de Deus diante do mal é usado como pretexto para negá-lo. Deus
também pode permitir ataques à Igreja? Como o senhor avalia a questão
dos documentos roubados do papa?
Não só Deus pode
permitir esses ataques, mas ele também sempre os permitiu: fazem parte
da lógica profunda do cristianismo. Jesus o disse claramente: "Assim
como me perseguiram, também perseguirão a vocês". Quanto aos documentos,
é um episódio triste, sobre o qual já se falou até demais.
A
Itália está às vésperas de eleições delicadíssimas. A Igreja hoje tem
um interlocutor privilegiado? Os valores católicos estão representados
no atual governo? É preciso à Itália um novo centro, que faça referência
aos valores católicos? O senhor vê novos líderes possíveis?
Interlocutores
da Igreja são todos os crentes e todos os italianos interessados em
ouvi-la. Privilegiado pode-se dizer quem a escuta mais. Desde o
congresso de Palermo, em 1995, a Igreja italiana
prefere não entrar nas questões de inclinações políticas. E convida não
só os católicos, mas a todos os italianos disponíveis, a se comprometer
politicamente com os valores e os conteúdos que são defendidos pela
Igreja, mas não são conteúdos confessionais, mas sim de interesse geral.
Quanto às lideranças, elas são tomadas e são exercidas, ninguém as pode
conferir, muito menos a Igreja.
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