[ipco]
Luiz Sérgio Solimeo
Em épocas de crise, sempre surgem pretensos reformadores com soluções
“geniais”, que não consistem em outra coisa senão em demolir as mais
veneráveis tradições da Igreja.
Um dos alvos mais constantes desses pretensos reformadores tem sido o celibato eclesiástico, uma das glórias da Igreja latina.
Abandono do celibato e divórcio
É curioso que, juntamente com a abolição do celibato clerical, vem o
abandono da indussolubilidade do matrimônio. E compreende-se:
julgando-se impossível a guarda da castidade, não é só a continência
celibatária que cai por terra, mas também a castidade conjugal, a
fidelidade no matrimônio.
Historicamente vemos que foi o que se deu com os cismáticos
orientais, os protestantes, anglicanos, etc. A abolição total ou parcial
do celibato clerical veio conjuntamente, ou foi precedida, da
permissão para o divórcio.
Os atuais escândalos sexuais, tão noticiados pela mídia, têm servido
de pretexto para um recrudescimento da campanha contra o celibato
eclesiástico. Setores da mídia, organizações de padres-casados, de
católicos liberais, vem insistido no assunto.
Além dos argumentos pseudo-científicos que visariam provar a
impossibilidade da guarda da castidade, está sendo muito difundido o
argumento de que o celibato é uma disposição puramente disciplinar,
introduzido tardiamente na legislação da Igreja e que pode ser abolido
sem maiores problemas. Ou, ao menos pode ser tornado optativo, com
sacerdotes casados ou célibes, conforme decisão pessoal.
Na verdade, inúmeros estudos, muitos deles recentes que desmentem por completo esse argumento pretensamente histórico-canônico.[1]
Prática da continência na Igreja primitiva
Esses estudos, com base em sólida documentação e irrepreensível documentação mostram que, embora não se possa falar em celibato
no sentido estrito da palavra – isto é pessoa que nunca se casou –, é
certo que desde os tempos apostólicos a Igreja teve como norma que
aqueles que eram elevados ao Sacerdócio e ao Episcopado (como também os
Diáconos) deviam guardar a continência. Caso fossem casados, o que era
muito comum nos inícios da Igreja eles deviam, com o consentimento das
esposas cessar a vida conjugal e inclusive de habitar sob o mesmo teto.
Vamos seguir aqui mais diretamente o breve, mas denso estudo do
Cardeal Alfons Stikler, pela sua autoridade de historiador do Direito
Canônico e antigo bibliotecário da Santa Igreja.
Segundo explica ele, a Igreja dos tempos apostólicos e a Igreja
primitiva não exigiam que uma pessoa fosse solteira ou viuva para ser
ordenada sacerdote ou designada bispo.
Tendo em vista que grande número dos cristãos era composta de
convertidos, às vezes na idade adulta ( o caso de Santo Agostinho,
convertido aos 30 anos, é típico), era comum que um casado fosse
ordenado sacerdote e feito bispo. Mas, como se lê nas Epístolas de São
Paulo a Tito e a Timóteo, o Bispo devia ser “homem de uma só mulher”,[2] no sentido de ter sido casado uma só vez.
Com efeito, julgava-se que uma pessoa que, tendo ficado viuva, tinha
casado de novo, dificilmente teria força suficiente para cessar as
relações conjugais e a convivência sob o mesmo teto. É evidente,
salienta o Card. Stikler, que, dado o caráter de mútua entrega do
matimônio, tal separação só podia efetivar-se com inteiro acordo da
esposa, a qual, por sua vez, se comprometia a viver na castidade em uma
comunidade feminina.
A confirmação pelos Evangelhos
Em relação aos Apóstolos, só de São Pedro sabemos com certeza que fosse casado, pois sua sogra é mencionada nos Evangelhos.[3]
Mas é possível que outros também o fossem. Mas temos a indicação clara
de que eles abandonaram, inclusive a família, para seguir a Cristo.
Assim, lemos nos Evangelhos que quando São Pedro peguntou a Nosso Senhor, “Vê,
nós abandonamos tudo e te seguimos.”Jesus respondeu: Em verdade vos
declaro: ninguém há que tenha abandonado, por amor do Reino de Deus, sua
casa, sua mulher, seus irmãos, seus pais ou seus filhos, que não receba
muito mais neste mundo e no mundo vindouro a vida eterna.[4] Não
caberia neste artigo acompanhar toda a história do celibato, conforme a
ampla documentação citada pelo Card. Stikler. Resumidamente,
apresentamos alguns dados mais salientes.
Já o Concílio de Elvira, na Espanha (310 A.D), no Cânon 33, ao tratar
da continência sacerdotal, apresenta o celibato como uma norma que
deve ser mantida e observada e não como uma inovação. E o fato de não
ter havido nem revolta nem surpresa mostra que essa era a realidade.
O mesmo se dá no Concílio da Igreja da África, por volta de 390 e
sobretudo no Concílio de Cartago, também no norte da África, (ano 419),
do qual participou nada menos do que Santo Agostino. Esses Concílios
lembram a práxis eclesiástica da obrigação do celibato, afirmando que
tal praxe é de tradição apostólica.
Celibato não foi introduzido na Idade Média
O Papa Siricius, respondendo em 385 a uma consulta específica sobre a
continência clerical, afirma que os Bispos e padres que continuam suas
relações conjugais após sua ordenação vão contra uma irrevogável lei que
os liga à continência e que vem desde os começos da Igreja.
Vários outros Papas e Concílios regionais, em especial na Gália,
continuaram a lembrar a tradição do celibato e a punir os abusos.
Na luta que São Gregório VII travou no século XI contra a intervenção
do Imperador do Sacro Império em assuntos eclesiásticos, conhecido como
a querela das investiduras, ele teve que combater a simonia — a
compra dos cargos eclesiásticos –, e o nicolaísmo – heresia que prega, entre outras coisas, o casamento clerical.
Não foi esse Santo, como alegam muitos ou o Segundo Concílio de
Latrão (1139) que “introduziriram” a lei do celibato na Igreja; eles
apenas confirmaram a vigência de uma disposição que vinha desde o início
da Igreja, e tomaram disposições para manter a sua observância. Esse
concílio lateranense não somente confirmou a lei da continenência, mas
declarou nulo o casamento tentado por sacerdotes e diáconos ou por
aqueles ligados por votos solenes de Religião.
Erros e falsificações
O principal argumento daqueles que negam a tradição apostólica da
continência clerical é que, durante o Primeiro Concílio de Nicéia, em
325, um Bispo e Ermitão famoso, Paphnutius, do Egito, teria se
levantado, em nome da tradição, para dissuadir os Padres Conciliares, de
impôr a continência clerical. Diante de tal intervenção, o Concílio
teria se negado a impôr tal continência.
Ora, argumenta o Cardeal, o historiador desse Concílio, que esteve
presente nele, Eusébio de Cesarea, não faz referência a esse fato, o
qual, a ter existido, teria chamado sua atenção. A menção a Paphnutius
só aparece quase um século depois, na pena de dois escritores
bizantinos, Socrates e Sozomen, sendo que o primeiro dá como fonte uma
conversa que teve quando jovem com um velho que teria participado
daquele Concílio. No entanto, tal afirmação é muito questionável, pois
Socrates nasceu por volta de 380, ou seja, mais de cincoenta anos após o
Concílio, o que faz com que sua pretensa fonte fosse ao menos
septuagenária quando ele nasceu, e praticamente nonagenária quando ele
fosse um rapaz.
A história da intervenção de Paphnutius sempre foi tida em suspeição,
inclusive porque seu nome não consta da lista de Padres vindos do Egito
para o Concílio de Nicéia, como atesta Valesius, editor das obras de
Socrates e Sozomen na Patrologia Grega de Migne.
Mas, o argumento decisivo, segundo o Card. Stikler, é o de que os
próprios gregos não apresentaram o testemunho de Paphnutius para
justificar sua ruptura com a tradição da continência clerical. Quando,
no segundo Concílio de Trullo (691), por pressão do Imperador,
permitiram o uso do matrimônio para os clérigos (não para os Bispos) —
contrariando a tradição tanto do Oriente como do Ocidente – foram buscar
no Concílio de Cartago, acima citado, uma possível justificação. Mas,
posto que esse Concílio era claro na defesa da tradição apostólica da
continência, foi necessário falsificar seus decretos, como é
reconhecido, hoje em dia, pelos próprios historiadores cismáticos.
O Card. Stikler lamenta que historiadores do peso de Funk, no fim do
século XIX, tenha aceitado como válida a história de Paphnutius, quando,
em sua época, a crítica histórica já havia rejeitado sua veracidade. O
francês Vacandard, através do prestigioso Dictionnaire de Théologie Catholique, foi um dos responsáveis pela divulgação desse erro.
União com Cristo Sacerdote
Conforme argumenta o Card. Stikler, a razão do celibato eclesiástico
não é funcional. Ao contrário do Antigo Testamento, em que o Sacerdócio
era apenas uma função temporária, recebida por via hereditária,
o Sacerdócio do Novo Testamento é uma vocação, um chamado que
transforma a pessoa e o confisca por inteiro. Ele é um santificador, um
mediador.
Mais do que tudo, o Sacerdócio do Novo Testamento é uma particpação
no Sacerdócio de Nosso Senhor Jesus Cristo, o Sumo Sacerdote. E,
portanto, o Padre tem uma ligação misteriosa e especial com Cristo, em
cujo nome e por cujo poder ele oferece o sacrifício incruento (in persona Christi). Portanto, é dessa ligação sobrenatural com o Salvador que vem a razão mais profunda do celibato sacerdotal.
O que existe hoje, aponta o Cardeal, é uma crise de identidade
no clero, da qual decorre a crise do celibato. É preciso restaurar a
verdadeira identidade do sacerdote, para que ele compreenda as razões
profundas de seu celibato e, poratanto, de sua vocação.
Esperemos que, com a ajuda da graça, se restaure, o quanto antes, a
verdadeira identida do sacerdote católico, para que cessem todos os
desatinos do momento presente.
De nada serviria aos padres-casados e aos simpatizantes voltar às
origens da Igreja… Essas origens não permitiriam que eles coabitassem
com suas esposas e praticassem o ministério sacerdotal.
[1] Cf. Pe. Christian Cochini, S.J, Apostolic Origins of Priestly Celibacy,(Ignatius, San Francisco, 1990); Cardeal Alfons Maria Stickler, The Case for Clerical Celibacy, (Ignatius, San Francisco, 1995); e o Pe. Stefan Heid, Celibacy in the Early Church, (Ignatius, San Francisco, 2000).
[2] I Timótio 3:2; 3:12; Tito 1:6.
[3]S. Mateus, 8:14: S. Marcos, 1:29; S. Luccas, 4:38.
[4] S. Lucas, 28:31; Cf. S. Mateus 19:27-30: S. Marcos 10:20-21.
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