[jurisciencia]
6 de novembro de 2012
por Melissa Mendes de Novais
“O
capitalismo é uma religião, e a mais feroz, implacável e irracional
religião que jamais existiu, porque não conhece nem redenção nem trégua.
Ela celebra um culto ininterrupto cuja liturgia é o trabalho e cujo
objeto é o dinheiro”, afirma Giorgio Agamben, em entrevista concedida a Peppe Salvà e publicada por Ragusa News, 16-08-2012.
Giorgio Agamben é um dos maiores filósofos vivos. Amigo de Pasolini e de Heidegger, Giorgio Agamben foi definido pelo Times e por Le Monde
como uma das dez mais importantes cabeças pensantes do mundo. Pelo
segundo ano consecutivo ele transcorreu um longo período de férias em Scicli, na Sicília, Itália, onde concedeu a entrevista.
Segundo ele, “a nova ordem do poder
mundial funda-se sobre um modelo de governamentalidade que se define
como democrática, mas que nada tem a ver com o que este termo
significava em Atenas“. Assim, “a tarefa que nos espera
consiste em pensar integralmente, de cabo a cabo, aquilo que até agora
havíamos definido com a expressão, de resto pouco clara em si mesma,
“vida política”, afima Agamben.
A tradução é de Selvino J. Assmann, professor de Filosofia do Departamento de Filosofia da Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC.
Eis a entrevista.
O governo Monti invoca a crise e o
estado de necessidade, e parece ser a única saída tanto da catástrofe
financeira quanto das formas indecentes que o poder havia assumido na
Itáli. A convocação de Monti era a única saída, ou poderia, pelo
contrário, servir de pretexto para impor uma séria limitação às
liberdades democráticas?
“Crise” e “economia” atualmente não são usadas como conceitos, mas como palavras de ordem, que servem para impor e para fazer com que se aceitem medidas e restrições que as pessoas não têm motivo algum para aceitar. ”Crise” hoje em dia significa simplesmente “você deve obedecer!”. Creio que seja evidente para todos que a chamada “crise” já dura decênios e nada mais é senão o modo normal como funciona o capitalismo em nosso tempo. E se trata de um funcionamento que nada tem de racional.
“Crise” e “economia” atualmente não são usadas como conceitos, mas como palavras de ordem, que servem para impor e para fazer com que se aceitem medidas e restrições que as pessoas não têm motivo algum para aceitar. ”Crise” hoje em dia significa simplesmente “você deve obedecer!”. Creio que seja evidente para todos que a chamada “crise” já dura decênios e nada mais é senão o modo normal como funciona o capitalismo em nosso tempo. E se trata de um funcionamento que nada tem de racional.
Para entendermos o que está acontecendo, é preciso tomar ao pé da letra a idéia de Walter Benjamin,
segundo o qual o capitalismo é, realmente, uma religião, e a mais
feroz, implacável e irracional religião que jamais existiu, porque não
conhece nem redenção nem trégua. Ela celebra um culto ininterrupto cuja
liturgia é o trabalho e cujo objeto é o dinheiro. Deus não morreu, ele
se tornou Dinheiro. O Banco – com os seus cinzentos funcionários e
especialistas – assumiu o lugar da Igreja e dos seus padres e,
governando o crédito (até mesmo o crédito dos Estados, que docilmente
abdicaram de sua soberania ), manipula e gere a fé – a escassa, incerta
confiança – que o nosso tempo ainda traz consigo. Além disso, o fato de o
capitalismo ser hoje uma religião, nada o mostra melhor do que o titulo
de um grande jornal nacional (italiano) de alguns dias atrás: “salvar o
euro a qualquer preço”. Isso mesmo, “salvar” é um termo religioso, mas o
que significa “a qualquer preço”? Até ao preço de “sacrificar” vidas
humanas? Só numa perspectiva religiosa (ou melhor, pseudo-religiosa)
podem ser feitas afirmações tão evidentemente absurdas e desumanas.
A crise econômica que ameaça
levar consigo parte dos Estados europeus pode ser vista como condição de
crise de toda a modernidade?
A crise atravessada pela Europa não é
apenas um problema econômico, como se gostaria que fosse vista, mas é
antes de mais nada uma crise da relação com o passado. O conhecimento do
passado é o único caminho de acesso ao presente. É procurando
compreender o presente que os seres humanos – pelo menos nós, europeus –
são obrigados a interrogar o passado. Eu disse “nós, europeus”, pois
me parece que, se admitirmos que a palavra “Europa” tenha um sentido,
ele, como hoje aparece como evidente, não pode ser nem político, nem
religioso e menos ainda econômico, mas talvez consista nisso, no fato
de que o homem europeu – à diferença, por exemplo, dos asiáticos e dos
americanos, para quem a história e o passado tem um significado
completamente diferente – pode ter acesso à sua verdade unicamente
através de um confronto com o passado, unicamente fazendo as contas com a
sua história.
O passado não é, pois, apenas um
patrimônio de bens e de tradições, de memórias e de saberes, mas também e
sobretudo um componente antropológico essencial do homem europeu, que
só pode ter acesso ao presente olhando, de cada vez, para o que ele
foi. Daí nasce a relação especial que os países europeus (a Itália, ou melhor, a Sicília,
sob este ponto de vista é exemplar) têm com relação às suas cidades,
às suas obras de arte, à sua paisagem: não se trata de conservar bens
mais ou menos preciosos, entretanto exteriores e disponíveis; trata-se,
isso sim, da própria realidade da Europa, da sua indisponível
sobrevivência. Neste sentido, ao destruírem, com o cimento, com as
autopistas e a Alta Velocidade, a paisagem italiana, os especuladores
não nos privam apenas de um bem, mas destroem a nossa própria
identidade. A própria expressão “bens culturais” é enganadora, pois
sugere que se trata de bens entre outros bens, que podem ser desfrutados
economicamente e talvez vendidos, como se fosse possível liquidar e por
à venda a própria identidade.
Há muitos anos, um filósofo que também era um alto funcionário da Europa nascente, Alexandre Kojève, afirmava que o homo sapiens
havia chegado ao fim de sua história e já não tinha nada diante de si a
não ser duas possibilidades: o acesso a uma animalidade pós-histórica
(encarnado pela american way of life) ou o esnobismo (encarnado
pelos japoneses, que continuavam a celebrar as suas cerimônias do chá,
esvaziadas, porém, de qualquer significado histórico). Entre uma América do Norte integralmente re-animalizada e um Japão que só se mantém humano ao preço de renunciar a todo conteúdo histórico, a Europa poderia
oferecer a alternativa de uma cultura que continua sendo humana e
vital, mesmo depois do fim da história, porque é capaz de confrontar-se
com a sua própria história na sua totalidade e capaz de alcançar, a
partir deste confronto, uma nova vida.
A sua obra mais conhecida, Homo Sacer, pergunta pela relação
entre poder político e vida nua, e evidencia as dificuldades presentes
nos dois termos. Qual é o ponto de mediação possível entre os dois
pólos?
Minhas investigações mostraram que o
poder soberano se fundamenta, desde a sua origem, na separação entre
vida nua (a vida biológica, que, na Grécia, encontrava
seu lugar na casa) e vida politicamente qualificada (que tinha seu
lugar na cidade). A vida nua foi excluída da política e, ao mesmo
tempo, foi incluída e capturada através da sua exclusão. Neste sentido,
a vida nua é o fundamento negativo do poder. Tal separação atinge sua
forma extrema na biopolítica moderna, na qual o cuidado e a decisão
sobre a vida nua se tornam aquilo que está em jogo na política. O que
aconteceu nos estados totalitários do século XX reside no fato de que é o
poder (também na forma da ciência) que decide, em última análise,
sobre o que é uma vida humana e sobre o que ela não é. Contra isso, se
trata de pensar numa política das formas de vida, a saber, de uma vida
que nunca seja separável da sua forma, que jamais seja vida nua.
O mal-estar, para usar um eufemismo, com que o ser humano
comum se põe frente ao mundo da política tem a ver especificamente com
a condição italiana ou é de algum modo inevitável?
Acredito que atualmente estamos frente a um fenômeno novo que vai além do desencanto e da desconfiança recíproca entre os cidadãos e o poder e tem a ver com o planeta inteiro. O que está acontecendo é uma transformação radical das categorias com que estávamos acostumados a pensar a política. A nova ordem do poder mundial funda-se sobre um modelo de governamentalidade que se define como democrática, mas que nada tem a ver com o que este termo significava em Atenas. E que este modelo seja, do ponto de vista do poder, mais econômico e funcional é provado pelo fato de que foi adotado também por aqueles regimes que até poucos anos atrás eram ditaduras. É mais simples manipular a opinião das pessoas através da mídia e da televisão do que dever impor em cada oportunidade as próprias decisões com a violência. As formas da política por nós conhecidas – o Estado nacional, a soberania, a participação democrática, os partidos políticos, o direito internacional – já chegaram ao fim da sua história. Elas continuam vivas como formas vazias, mas a política tem hoje a forma de uma “economia”, a saber, de um governo das coisas e dos seres humanos. A tarefa que nos espera consiste, portanto, em pensar integralmente, de cabo a cabo, aquilo que até agora havíamos definido com a expressão, de resto pouco clara em si mesma, “vida política”.
Acredito que atualmente estamos frente a um fenômeno novo que vai além do desencanto e da desconfiança recíproca entre os cidadãos e o poder e tem a ver com o planeta inteiro. O que está acontecendo é uma transformação radical das categorias com que estávamos acostumados a pensar a política. A nova ordem do poder mundial funda-se sobre um modelo de governamentalidade que se define como democrática, mas que nada tem a ver com o que este termo significava em Atenas. E que este modelo seja, do ponto de vista do poder, mais econômico e funcional é provado pelo fato de que foi adotado também por aqueles regimes que até poucos anos atrás eram ditaduras. É mais simples manipular a opinião das pessoas através da mídia e da televisão do que dever impor em cada oportunidade as próprias decisões com a violência. As formas da política por nós conhecidas – o Estado nacional, a soberania, a participação democrática, os partidos políticos, o direito internacional – já chegaram ao fim da sua história. Elas continuam vivas como formas vazias, mas a política tem hoje a forma de uma “economia”, a saber, de um governo das coisas e dos seres humanos. A tarefa que nos espera consiste, portanto, em pensar integralmente, de cabo a cabo, aquilo que até agora havíamos definido com a expressão, de resto pouco clara em si mesma, “vida política”.
O estado de exceção, que o senhor vinculou ao conceito de
soberania, hoje em dia parece assumir o caráter de normalidade, mas os
cidadãos ficam perdidos perante a incerteza na qual vivem
cotidianamente. É possível atenuar esta sensação?
Vivemos há decênios num estado de exceção que se tornou regra,
exatamente assim como acontece na economia em que a crise se tornou a
condição normal. O estado de exceção – que deveria sempre ser limitado
no tempo – é, pelo contrário, o modelo normal de governo, e isso
precisamente nos estados que se dizem democráticos. Poucos sabem que
as normas introduzidas, em matéria de segurança, depois do 11 de setembro
(na Itália já se havia começado a partir dos anos de chumbo) são piores
do que aquelas que vigoravam sob o fascismo. E os crimes contra a
humanidade cometidos durante o nazismo foram possibilitados exatamente
pelo fato de Hitler, logo depois que assumiu o poder,
ter proclamado um estado de exceção que nunca foi revogado. E certamente
ele não dispunha das possibilidades de controle (dados biométricos,
videocâmaras, celulares, cartões de crédito) próprias dos estados
contemporâneos. Poder-se-ia afirmar hoje que o Estado considera todo
cidadão um terrorista virtual. Isso não pode senão piorar e tornar
impossível aquela participação na política que deveria definir a
democracia. Uma cidade cujas praças e cujas estradas são controladas por
videocâmaras não é mais um lugar público: é uma prisão.
A grande autoridade que muitos atribuem a estudiosos que,
como o senhor, investigam a natureza do poder político poderá trazer-nos
esperanças de que, dizendo-o de forma banal, o futuro será melhor do
que o presente?
Otimismo e pessimismo não são categorias úteis para pensar. Como escrevia Marx em carta a Ruge: ”a situação desesperada da época em que vivo me enche de esperança”.
Otimismo e pessimismo não são categorias úteis para pensar. Como escrevia Marx em carta a Ruge: ”a situação desesperada da época em que vivo me enche de esperança”.
Podemos fazer-lhe uma pergunta sobre a lectio que o senhor
deu em Scicli? Houve quem lesse a conclusão que se refere a Piero
Guccione como se fosse uma homenagem devida a uma amizade enraizada no
tempo, enquanto outros viram nela uma indicação de como sair do
xequemate no qual a arte contemporânea está envolvida.
Trata-se de uma homenagem a Piero Guccione e a Scicli, pequena cidade em que moram alguns dos mais importantes pintores vivos. A situação da arte hoje em dia é talvez o lugar exemplar para compreendermos a crise na relação com o passado, de que acabamos de falar. O único lugar em que o passado pode viver é o presente, e se o presente não sente mais o próprio passado como vivo, o museu e a arte, que daquele passado é a figura eminente, se tornam lugares problemáticos. Em uma sociedade que já não sabe o que fazer do seu passado, a arte se encontra premida entre a Cila do museu e a Caribdis da mercadorização. E muitas vezes, como acontece nos templos do absurdo que são os museus de arte contemporânea, as duas coisas coincidem.
Trata-se de uma homenagem a Piero Guccione e a Scicli, pequena cidade em que moram alguns dos mais importantes pintores vivos. A situação da arte hoje em dia é talvez o lugar exemplar para compreendermos a crise na relação com o passado, de que acabamos de falar. O único lugar em que o passado pode viver é o presente, e se o presente não sente mais o próprio passado como vivo, o museu e a arte, que daquele passado é a figura eminente, se tornam lugares problemáticos. Em uma sociedade que já não sabe o que fazer do seu passado, a arte se encontra premida entre a Cila do museu e a Caribdis da mercadorização. E muitas vezes, como acontece nos templos do absurdo que são os museus de arte contemporânea, as duas coisas coincidem.
Duchamp talvez tenha sido o primeiro a dar-se conta do beco sem saída em que a arte se meteu. O que faz Duchamp quando inventa o ready-made?
Ele toma um objeto de uso qualquer, por exemplo, um vaso sanitário, e,
introduzindo-o num museu, o força a apresentar-se como obra de arte.
Naturalmente – a não ser o breve instante que dura o efeito do
estranhamento e da surpresa – na realidade nada alcança aqui a
presença: nem a obra, pois se trata de um objeto de uso qualquer,
produzido industrialmente, nem a operação artística, porque não há de
forma alguma uma poiesis, produção – e nem sequer o artista,
porque aquele que assina com um irônico nome falso o vaso sanitário não
age como artista, mas, se muito, como filósofo ou crítico, ou, conforme
gostava de dizer Duchamp, como “alguém que respira”, um simples ser vivo.
Em todo caso, certamente ele não queria
produzir uma obra de arte, mas desobstruir o caminhar da arte, fechada
entre o museu e a mercadorização. Vocês sabem: o que de fato aconteceu é
que um conluio, infelizmente ainda ativo, de hábeis especuladores e de
“vivos” transformou o ready-made em obra de arte. E a chamada arte contemporânea nada mais faz do que repetir o gesto de Duchamp,
enchendo com não-obras e performances a museus, que são meros
organismos do mercado, destinados a acelerar a circulação de
mercadorias, que, assim como o dinheiro, já alcançaram o estado de
liquidez e querem ainda valer como obras. Esta é a contradição da arte
contemporânea: abolir a obra e ao mesmo tempo estipular seu preço.
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