26 de Março de 2013
Era o Templo restaurado por Herodes.
Embora "feito de belas pedras e recamado de ricos donativos" (Lc 21, 5),
bem longe estava de possuir o esplendor e a magnificência do anterior,
erigido segundo a capacidade e a sabedoria de Salomão.
Naquele dia, um casal, levando o mais
belo de todos os meninos, atravessou os umbrais do recinto sagrado, com o
intuito de cumprir as prescrições da Lei a respeito dos primogênitos.
Na aparência, aquela cena nada tinha de extraordinário: com muita
frequência as famílias israelitas, vindas das mais variadas cidades,
chegavam a Jerusalém, trazendo seus filhos para apresenta-los ao Senhor e
oferecer o sacrifício prescrito pela Lei: um par de rolas ou dois
pombinhos (cf. Lc 2-24). Quase sempre as mães preferiam associar esta
cerimônia àquela da sua própria purificação, à qual estavam obrigadas
pelas rígidas normas do Levítico.
Entretanto, nessa ocasião, o ritual da
apresentação revestia-se de dimensões verdadeiramente divinas e fora
previsto com séculos de antecedência pelo profeta Ageu: "Encherei de
minha glória este templo - diz o Senhor do universo. A prata e o ouro me
pertencem - oráculo do Senhor do universo. O esplendor futuro deste
templo será maior que o primeiro - oráculo do Senhor do universo. Neste
lugar Eu darei a paz - diz o Senhor do universo" (Ag 2, 7b-10). E por
Malaquias: "Logo chegará a seu templo o Dominador, que vós procurais, e o
Anjo da Aliança, que vós desejais" (Ml 3, 1b).
Com efeito, aquela arrebatadora criança,
conduzida nos braços de sua Mãe para submeter-Se humildemente aos
preceitos da Lei mosaica, era o próprio Dominador, o Filho Unigênito de
Deus, nascido sob o domínio da Lei, para resgatar os que se encontravam
sob o domínio da Lei (cf. Gl 4, 5).
Dia de gáudio e de glória aquele em que,
por fim, as profecias atingiam sua realização e o Divino Menino
começava a ser reconhecido pelos que "em Jerusalém esperavam a redenção"
(Lc 2, 38).
"Uma espada transpassará a Tua alma"
Entrando no templo, Maria e José
depararam-se com um ancião de venerável aspecto, que para lá se
dirigira, cheio de esperança, sob a inspiração do Espírito Santo (cf. Lc
2, 27). Ao ver o Menino Jesus, Simeão, que poderia ser denominado o
varão-esperança, logo começou a bendizer a Deus e a profetizar a
respeito dEle, deixando admirados Seu pai e Sua mãe (cf. Lc 2, 33).
Também Ana, a profetisa, que se encontrava no Templo, pôs-se a falar
sobre Ele, tornando-se uma das primeiras anunciadoras da missão
redentora de Jesus. Maria e José ouviam todas essas palavras, e Seus
corações enchiam-se de gozo ao constatarem que o inefável mistério do
qual ambos eram depositários, Deus Se dignara comunicá-lo também a
outras almas, manifestando-lhes a presença de Cristo no mundo.
Simeão tomou o Menino nos braços e, após
ter sido pago o imposto, entregou-O à Sua Mãe, dizendo-Lhe: "Uma espada
transpassará a Tua alma" (Lc 2, 35).
Que contraste impressionante! Ali estava
o casal princeps, duas criaturas escolhidas por Deus para servir de
arquetipia à humanidade: Maria e José. Nesses momentos de consolação,
nos quais a Luz descida do Céu para revelar-Se às nações começava a
deitar seus primeiros raios, abria-se já, de maneira oficial, a "via
dolorosa" que o Senhor apontava à Sua Santa Mãe. A alegria de Maria - de
possuir um Filho que é Deus e de pertencer a um Deus que é Seu Filho -
naquele instante transformou-se em tristeza. Auge de alegria e auge de
tristeza conjugaram-se no coração da Virgem: quanta perplexidade nessa
ocasião em que tudo deveria falar de júbilo e, entretanto... "uma espada
transpassará a Tua alma"!
Pelo pecado, o sofrimento tornou-se inerente à condição humana
Por que quis Deus unir a dor à alegria
num verdadeiro paradoxo, inevitável na vida humana? Todos nós, pelas
inclinações da natureza, sempre propensa a buscar a felicidade e a fugir
de qualquer sofrimento, somos incapazes de compreender essa maravilha,
se não for por um especial auxílio da graça. Fora da filosofia cristã
iluminada pela fé, o problema da dor tem sido sempre algo difícil de
resolver. Enquanto alguns a concebem como um mal a ser evitado a todo
custo, outros, passando ao extremo oposto, consideram-na imprescindível e
chegam a fazer dela um prazer malsão e amargo, única saída para sua
falta de esperança.
A Igreja, ao contrário, sempre tratou
desse assunto de forma equilibrada. Em virtude do pecado original, o
sofrimento tornou-se inerente à condição humana, e o homem deve
utilizar-se dele para o serviço de Deus, transformando-o numa fonte de
méritos e até de glória.
A respeito do modo de como os homens,
tanto os bons quanto os maus, suportam as tribulações, assim escreve
Santo Agostinho: "Embora justos e pecadores sofram um mesmo tormento, o
resultado não é o mesmo. O mesmo fogo faz resplendecer o ouro,
purificando-o, e a palha lançar fumaça; o mesmo trilho serve para limpar
os grãos e quebrar as arestas... Assim também, uma mesma adversidade
purifica e aperfeiçoa os bons, e destrói e aniquila os maus. Por
conseguinte, numa mesma calamidade, os pecadores se revoltam e blasfemam
contra Deus, enquanto os justos O glorificam e pedem misericórdia; a
grande diferença de sentimentos não está na qualidade do mal que uns e
outros padecem, mas na das pessoas que o sofrem. Sacudidos de um mesmo
modo, o lodo exala um mau cheiro insuportável, e o bálsamo precioso um
suavíssimo odor".1
Cristo quis assumir a nossa carne em estado padecente
Para conhecermos a fundo todo o valor
que se desprende da dor quando santamente aceita, bastanos observar que
esta foi a via escolhida pela Providência para o próprio Homem-Deus e
Sua Mãe Santíssima. Ao nos aproximarmos de um altar em qualquer igreja
da terra, sempre o encontraremos presidido por um Crucifixo; e, aos pés
dessa Cruz, indissociável do Filho, imaginamos uma Mãe que chora: Stabat
Mater dolorosa, juxta crucem lacrimosa...
Reza a teologia que, para resgatar o
gênero humano, teria bastado Nosso Senhor Jesus Cristo oferecer a Deus
Pai um simples gesto, uma curta palavra, ou até mesmo um piscar de
olhos, por serem de valor infinito todos os Seus atos.2 Portanto, uma
única gota de sangue derramada durante a Circuncisão seria suficiente
para consumar a obra da Redenção.3
Entretanto, decretou o Padre Eterno que
Ele sofresse a Paixão e Morte de Cruz, pois não poderia permitir que a
Seu Verbo - "efusão da luz eterna, espelho sem mancha da atividade de
Deus, imagem de Sua bondade" (Sb 7, 26) - fosse negada uma glória em
plenitude e esplendor. Foi por ilimitado amor ao Seu Unigênito que Deus
permitiu as ignomínias da Flagelação, as humilhações do Ecce Homo, a
exaustão da Via-Sacra e os tormentos da Crucifixão. O Filho, que por Sua
natureza divina não era capaz de sofrer, quis assumir nossa carne em
estado padecente, e não em corpo glorioso, como correspondia à Sua alma,
a qual se encontrava na visão beatífica desde o primeiro instante da
Encarnação.
Agindo desse modo, Deus não visou apenas
operar a Redenção da forma mais esplêndida, mas quis propor aos homens
de todos os tempos o Modelo perfeito a ser seguido. Assim se expressa a
respeito deste tema o piedoso Pe. André Hamon: "Quando Deus, em Seus
eternos decretos, decidiu a Encarnação do Verbo, propôs-Se apresentar
aos olhos dos homens o modelo da vida nova que deveria salvá-los. Como
homem, o Verbo Encarnado lhes mostraria o caminho; como Deus, lhes daria
a garantia da perfeição do modelo. Suas virtudes seriam imitáveis, pois
seriam a ação de um homem; e uma regra segura, já que seriam a ação de
um Deus".4
O mistério profundíssimo da Cruz
Ora, ao contemplarmos o Homem-Deus,
deparamo-nos com esse profundo mistério: Ele, o Onipotente, o Senhor da
Glória, a quem os Anjos adoram sem cessar, "fez-Se em tudo semelhante a
nós, exceto no pecado" (Hb 4, 15), e sofreu as contingências da condição
humana como fome, sede, sono, e fadiga. Para a mentalidade do homem
moderno - pervadida pela ideia de um triunfalismo mal compreendido, da
qual desapareceu quase completamente o verdadeiro sentido da dor -, a
figura de Nosso Senhor Jesus Cristo cravado na Cruz, clamando ao Pai a
magnitude de Seu abandono, aparece como a de um fracassado. "Em verdade,
Ele tomou sobre Si nossas enfermidades, e carregou os nossos
sofrimentos: e nós O reputávamos como um castigado, ferido por Deus e
humilhado" (Is 53, 4).
Entretanto, devemos procurar discernir a
sublime lição contida no Sacrifício do Calvário, cuja renovação
incruenta se opera diariamente em todos os altares do mundo. Em seu
poema O Triunfo da Cruz, assim canta São Luís Maria Grignion de
Montfort: "É a Cruz, sobre a terra mistério profundíssimo, que não se
conhece sem muitas luzes. Para compreendê-lo é necessário um espírito
elevado. Entretanto, é preciso entendê-lo para que nos possamos salvar.
[...] A Cruz é necessária. É preciso sofrer sempre: ou subir ao Calvário
ou perecer eternamente. E Santo Agostinho exclama que somos réprobos se
Deus não nos castiga e nos prova".5
Deus quis submeter o homem à prova
A vida no Paraíso Terrestre era isenta
de qualquer incômodo. O homem estava mergulhado na felicidade: os
vegetais se encontravam à sua disposição, os animais o serviam, não
havia doenças nem cansaço, e, por um especial favor do Criador, a ameaça
da morte não o atingia. Também sua alma vivia em paz, pois, graças ao
dom da integridade, a carne e o espírito não entravam em conflito, e
todas as paixões se ordenavam à luz da Fé.
Não obstante, em meio àquela agradável
existência cheia de delícias, Deus quis que houvesse uma prova e, em
consequência, uma pequena dor: "Não comas do fruto da árvore da ciência
do bem e do mal; porque no dia em que dele comeres, morrerás
indubitavelmente" (Gn 2, 17).
Era conveniente que Deus, seriedade
infinita, exigisse do homem um tributo de sua submissão, por meio do
qual este demonstrasse a autenticidade dos louvores e das honras que
prestava a seu Criador. A aceitação desta prova era uma renúncia
magnífica e uma homenagem ímpar, que partia da humanidade logo em seu
nascedouro e se elevava até o trono de Deus.
O pecado e suas consequências
Ora, Adão e Eva sucumbiram à tentação.
Talvez lhes tenha sobrevindo a ideia, não explícita, de que não deveria
existir a mais leve dor na ordem da criação, e perante a prova que Deus
lhes impunha tomaram uma atitude de revolta interior, induzidos a roubar
a própria honra de Deus.
Os nossos primeiros pais pecaram. E a
queda trouxe o castigo, em sentença proferida pelo próprio Deus:
"Multiplicarei teus sofrimentos [...] maldita seja a terra por tua
causa. Tirarás dela com trabalhos penosos o teu sustento todos os dias
de tua vida" (Gn 3, 16-17).
O pecado produziu uma revolução nessa
harmonia interior e exterior na qual antes viviam: o homem encontrou-se
de repente cercado de mil perigos da natureza, os animais se lhe
tornaram hostis, a terra produziu espinhos e abrolhos, e ele viu-se
obrigado a comer o pão com o suor de seu rosto (cf. Gn 3, 18-19). Sua
alma tornou-se vítima das más inclinações, sujeita ao erro e à rebeldia
dos instintos contra os ditames da razão. E a História passou a
registrar a peregrinação árdua e dolorosa de uma humanidade em guerra
constante contra si mesma, conforme diz o Livro de Jó: "A vida do homem
sobre a terra é uma luta" (Jó 7, 1).
A culpa de nossos primeiros pais atraiu
sobre eles, e sobre sua posteridade, a maldição e a perda da amizade de
Deus, reparável somente por meio do Batismo e da graça. Mas atingiu
também a ordem do universo, da qual Adão fora feito rei: "Deste-lhe
poder sobre as obras de Vossas mãos, Vós lhe submetestes todo o
universo" (Sl 8, 7).
Afirma São Paulo: "A criação foi sujeita
à vaidade (não voluntariamente, mas por vontade daquele que a
sujeitou), todavia com a esperança de ser também ela libertada do
cativeiro da corrupção, para participar da gloriosa liberdade dos filhos
de Deus. Pois sabemos que toda a criação geme e sofre como que dores de
parto até o presente dia" (Rm 8, 20-22).
Um Deus abraçado à Cruz
Apesar de ter maculado a Criação, o
pecado não conseguiu frustrar os planos de Deus, como era intuito do
demônio. Pelo contrário, determinou Ele, em Seus insondáveis desígnios
de misericórdia, estabelecer uma ordem do universo ainda mais bela e
esplendorosa, nascida da Encarnação e do sacrifício de seu Filho
Unigênito.
Na harmonia dessa nova ordem, haveria de
ser preponderante o papel da dor. Tendo sido mal correspondida a prova
no Paraíso, a vida da graça, trazida pela Redenção, não poderia
conceber-se sem sofrimento, de modo que os "degredados filhos de Eva"
reparassem a falta de seus pais.
Era preciso que os homens adorassem um
Deus abraçado à Cruz, o Vir dolorum previsto por Isaías, cravado sobre o
madeiro do opróbrio e da ignomínia, e tivessem diante do Homem-Deus
moribundo todas as ternuras e venerações de que o coração humano é
capaz.
Ele desceu a esta terra de exílio,
atravessando as brumas do pecado sem Se deixar tocar por ele, e, tomando
sobre Si as nossas fraquezas, com elas subiu ao Gólgota para ali
consumar Seu holocausto e restituir aos homens a paz e a felicidade que
haviam perdido.
É bem verdade que, ao longo dos três
anos de vida pública, teve Ele um período brilhante aos olhos do mundo,
durante o qual as multidões iam à sua procura, sôfregas de ouvir Seus
ensinamentos e beneficiar-se de Seus milagres. Quando de Sua entrada
solene em Jerusalém, a multidão cantava "hosana ao Filho de Davi" (Mt
21, 9). Houve, inclusive, aqueles que quiseram proclamá-Lo rei (cf. Jo
6, 15). Mas, em meio a todos os êxitos, a pior das dores incrustava-se
em Seu Coração, delineando Sua missão de Servo Sofredor e deitando uma
sombra sobre o futuro que O esperava: era a brutal falta de
correspondência daqueles que mais O deveriam reconhecer. "Veio para o
que era Seu, mas os Seus não O receberam" (Jo 1, 11).
Se, em Sua trajetória terrena, Nosso
Senhor tivesse recebido sempre todas as glorificações do Tabor e do
Domingo de Ramos, algo da Sua benquerença pelos homens e da Sua
disposição de entregar a vida por eles teria deixado de refulgir aos
nossos olhos, e não compreenderíamos suficientemente o mistério de amor
que se discerne na Cruz e no Santo Sepulcro. "Ninguém tem maior amor do
que aquele que dá a sua vida por seus amigos" (Jo 15, 13).
Somos chamados a colaborar na obra da Redenção
Ora, movido por Seu ilimitado amor aos
homens, Jesus quis também a participação deles na Sua dor. Ele não
necessita de concurso humano algum para redimir-nos, uma vez que o
Preciosíssimo Sangue derramado na Paixão bastaria para apagar os pecados
de infinitas criaturas, mas deseja associar-nos a Seus sofrimentos e
assim fazer-nos partícipes de Seus méritos e de Sua glória. É este o
simbolismo da água que o sacerdote mistura ao vinho, na preparação do
cálice para o Santo Sacrifício. Nossas dores, de si, valem menos até do
que umas poucas gotas de água, pois, o mais das vezes, estão
contaminadas por imperfeições e misérias; mas unidas ao "vinho que
engendra virgens", podem aquelas tornar-se uma "mesma e única bebida de
salvação".6
São Paulo mostrou ter penetrado a fundo
nesse mistério, quando escreveu em sua epístola aos Colossenses: " Agora
me alegro nos sofrimentos suportados por vós. O que falta às
tribulações de Cristo, completo na minha carne, por Seu corpo que é a
Igreja" (Cl 1, 24).
Esta passagem é assim comentada por
Tanquerey: "Certamente, esta Paixão é, não somente completa, mas
abundante e superabundante. No entanto, como Jesus é a cabeça de um
corpo místico, do qual todos nós somos os membros, a Paixão deste Cristo
místico se completa cada dia em seus membros sofredores, e ela não
estará terminada senão quando o último dos eleitos tiver sofrido sua
parte das dores de Cristo. [...] Então a dor terá um sentido, então
seremos verdadeiramente os colaboradores do Divino Salvador na obra da
salvação das almas".7
Crisol onde Deus lança as almas muito amadas
Levando isto em consideração, o papel da
dor na vida humana adquire uma perspectiva tão elevada que torna
inteiramente fora de propósito qualquer queixa ou inconformidade de
nossa parte em relação às cruzes que Deus tenha por bem nos enviar.
Na aceitação inteira da vontade divina
encontramos o melhor meio de restituir ao Criador a glória que Lhe foi
negada pela primitiva desobediência, manifestando-Lhe, por um ato de
conformidade com Seus desígnios, nosso tributo de amor e de reparação à
Sua Majestade ofendida.
Ao mesmo tempo, se encetarmos as veredas
da dor com ânimo resoluto, é-nos oferecida a ocasião de alcançar
preciosos benefícios para o progresso de nossa vida sobrenatural. Dada a
tendência natural do homem para o egoísmo, facilmente ele se esquece de
Deus quando a felicidade e o sucesso parecem seguir seus
empreendimentos. A adversidade é, pois, um poderoso auxílio para
purificar a alma do apego excessivo às criaturas, obrigando-a a
considerar a inanidade dos bens passageiros e voltar-se só para Deus,
único Bem do qual tudo se pode esperar.
Tais disposições perante o sofrimento
conferem um caráter respeitável àquele sobre o qual este se abate,
tornando-o digno de admiração.
Nos dias de hoje, o sentido cristão da
palavra "admirável" vai-se perdendo, dando lugar a conceitos deturpados,
segundo os quais o homem, para alcançar a plena realização de sua
personalidade, deve ser bem sucedido na vida, correr de vitória em
vitória, sem jamais ser incomodado por qualquer revés ou dificuldade; só
assim se tornará merecedor do aplauso e da aceitação dos demais. A
experiência histórica, porém, nos revela o contrário: os homens
sofredores, que ao longo de sua existência tiveram de enfrentar perigos,
angústias, incompreensões e até mesmo aparentes catástrofes, mas,
fortalecidos pela graça divina, acabaram vencendo, esses sim são
verdadeiramente dignos da aprovação dos demais homens e do beneplácito
de Deus.
A dor é, pois, o crisol onde a
Providência lança as almas muito amadas, sobre as quais repousa uma
especial predileção de Sua parte, para delas recolher apenas a prata
finíssima, livre de qualquer impureza. O Livro do Eclesiástico deita uma
luz sobre essa atraente temática: "Meu filho, se entrares para o
serviço de Deus, permanece firme na justiça e no temor, e prepara a tua
alma para a provação; humilha teu coração, espera com paciência, dá
ouvidos e acolhe as palavras de sabedoria; não te perturbes no tempo da
infelicidade, sofre as demoras de Deus; dedica-te a Deus, espera com
paciência, a fim de que no derradeiro momento tua vida se enriqueça.
Aceita tudo o que te acontecer. Na dor, permanece firme; na humilhação,
tem paciência. Pois é pelo fogo que se experimentam o ouro e a prata, e
os homens agradáveis a Deus, pelo cadinho da humilhação" (Eclo 2, 1-5).
Duas atitudes perante a tragédia
Recebida com resignação, ou com
sobrenatural entusiasmo, a dor enaltece o homem e o convida a uma doação
generosa de si mesmo, da qual, na prosperidade, talvez ele não se
julgasse capaz. Assim, pode haver circunstâncias infelizes que, de modo
inesperado, reduzam à derrota alguém anteriormente coroado de êxito.
Colocado diante de sua própria tragédia, ele poderá chorar, lamentando
seu fracasso, e afundar-se no abatimento e na revolta contra Deus; ou
então ele se erguerá com uma grandeza de alma triunfal, compreendendo a
beleza de seu infortúnio, já que este o aproxima mais da Divina Vítima
do Calvário.
Em palavras dirigidas aos peregrinos
reunidos na Praça de São Pedro, assim se exprimia o hoje Papa Emérito
Bento XVI: "Jesus sofre e morre na Cruz por amor. Deste modo,
considerando bem, deu sentido ao nosso sofrimento, um sentido que muitos
homens e mulheres de todas as épocas compreenderam e fizeram seu,
experimentando uma profunda serenidade também na amargura de árduas
provas físicas e morais".8
No instante em que o homem se abraça à
Cruz e a toma como um presente da munificência divina, manifesta-se todo
o poder sublime e ao mesmo tempo misterioso do holocausto. Sua dor
torna-se fecunda e profícua, mais eficaz na ordem da Comunhão dos Santos
e na realização dos desígnios de Deus do que seus esforços naturais ou
suas demais obras apostólicas. Oferecido o sacrifício, algo na alma
germina, nasce e gera frutos, elevando-se diante de Deus como oblação
grata e imaculada, e dando ao homem uma alegria e uma paz interior que
todas as riquezas e glórias do mundo jamais poderão proporcionar-lhe.
Nos dias cheios dos imponderáveis sérios
e graves da Semana Santa, acheguemo-nos aos pés da Cruz onde pende o
Salvador, abandonado por quase todos - sobretudo neste século em que
tantos e tantos homens só procuram o prazer e bem-estar pessoal - e
coloquemos nas mãos da Mater Dolorosa, cuja alma foi transpassada pelo
gládio da dor, toda a nossa entrega e disposição de padecer por Cristo e
por Sua Igreja. As lágrimas de Maria purificarão nossa oferta das
eventuais misérias das quais possa estar manchada e a tornarão útil para
a edificação de Seu Reino e o triunfo de Seu Imaculado Coração.
Irmã Clara Isabel Morazzani Arráiz, EP
-----------------------------------------------
1 AGOSTINHO, Santo. A Cidade de Deus. l. 1, c. 8.
2 Cf. ROYO MARÍN, OP, Fr. Antonio. Jesucristo y la vida cristiana. Madrid: BAC, 1961, p. 324.
3 Cf. DENZINGER, H.. HÜNEMANN, P. Compêndio dos símbolos, definições e declarações de fé e moral. São Paulo: Loyola; Paulinas, 2007, p. 328, n. 1.025.
4 HAMON, M. André-Jean-Marie. Méditations. Paris: Lecoffre, 1933, v I, p. 55-56.
5 MONTFORT, São Luís Maria de. Carta-circular aos amigos da Cruz. Cântico "O Triunfo da Cruz". Trad. Maria Helena Montezuma Pohle. Rio de Janeiro: Santa Maria, 1954, p. 67-68.
6 Cf. CANTALAMESSA, OFMCap, Raniero. Obediencia. Trad. Ricardo M. Lázaro Barceló. 3. ed. Valencia: Edicep, 2002, p. 71. TANQUEREY, Adolphe. La divinisation de la souffrance. Paris-Tournai-Rome: Desclée de Brouwer, 1931, p. IX-X. Ângelus, 01/02/2009.
7 TANQUEREY, Adolphe. La divinisation de la souffrance. Paris-Tournai- Rome: Desclée de Brouwer, 1931, p. IX-X.
8 Ângelus, 01/02/2009.
2 Cf. ROYO MARÍN, OP, Fr. Antonio. Jesucristo y la vida cristiana. Madrid: BAC, 1961, p. 324.
3 Cf. DENZINGER, H.. HÜNEMANN, P. Compêndio dos símbolos, definições e declarações de fé e moral. São Paulo: Loyola; Paulinas, 2007, p. 328, n. 1.025.
4 HAMON, M. André-Jean-Marie. Méditations. Paris: Lecoffre, 1933, v I, p. 55-56.
5 MONTFORT, São Luís Maria de. Carta-circular aos amigos da Cruz. Cântico "O Triunfo da Cruz". Trad. Maria Helena Montezuma Pohle. Rio de Janeiro: Santa Maria, 1954, p. 67-68.
6 Cf. CANTALAMESSA, OFMCap, Raniero. Obediencia. Trad. Ricardo M. Lázaro Barceló. 3. ed. Valencia: Edicep, 2002, p. 71. TANQUEREY, Adolphe. La divinisation de la souffrance. Paris-Tournai-Rome: Desclée de Brouwer, 1931, p. IX-X. Ângelus, 01/02/2009.
7 TANQUEREY, Adolphe. La divinisation de la souffrance. Paris-Tournai- Rome: Desclée de Brouwer, 1931, p. IX-X.
8 Ângelus, 01/02/2009.
Nenhum comentário:
Postar um comentário