1] A Igreja não é uma ONG assistencial.
Esse ensinamento singelo do Papa Francisco em seu primeiro dia como Sumo
Pontífice evoca doutrinas riquíssimas sobre a Igreja, negadas pelos
progressistas, mal interpretadas ou esquecidas por muitos católicos.
A Igreja, sociedade visível e perfeita
2] A Igreja militante é visível porque
não é uma entidade meramente espiritual, pneumática, secreta, não é um
mero agrupamento de pessoas que pensam do mesmo modo, nem um movimento
unicamente de ideias, ou uma comunidade privada, mas existe visivelmente
neste mundo, constituindo sociedade verdadeira.
3] E, como sociedade, a Igreja não é
visível apenas no sentido físico, ótico, como entendem alguns. Com
efeito, é verdade que ela existirá sempre nesta Terra, segundo as
promessas de Nosso Senhor, ainda que com número reduzido de fieis, como
no Cenáculo e, afirmam bons exegetas, no fim do mundo (Luc. 18, 8). Mas é
visível também num sentido mais profundo, institucional, dado que tem
estrutura jurídica, membros que a constituem, hierarquia formada por
homens vivos, um chefe de todos conhecido, como as demais sociedades
humanas.
4] A Igreja é sociedade perfeita, porque
por si mesma tem todos os meios para atingir seus fins, conduzir os
fieis à salvação eterna. É una e universal. Seu chefe é monarca por
instituição divina, dotado de poderes tanto espirituais e de ordem, como
jurisdicionais, legislativos e magisteriais. A Igreja é sociedade de
direito público internacional, não sujeita a qualquer entidade humana. É
soberana na ordem civil e política, como qualquer Estado moderno o é.
Essa sua condição não lhe advém apenas do fato de ter o território da
cidade do Vaticano, pois, ainda que não contasse com essa soberania
territorial, teria, em princípio, pleno direito de ser tida como pessoa
de direito público internacional, por força de sua origem divina como
sociedade visível e perfeita.
5] Pio XII declara “que estão em grave erro os que arbitrariamente imaginam uma Igreja como que escondida e invisível”, acrescentando que “O
Verbo de Deus assumiu a natureza humana passível, para que, uma vez
fundada e consagrada com seu sangue a sociedade visível, o homem fosse,
no dizer de Santo Tomás de Aquino, ‘reconduzido pelo governo visível às
realidades invisíveis’ (De Ver. q. 29. a. 4. ad 3)” (Enc. Mystici
Corporis, §“Ex iis, quae adhuc”).
6] Pio XII afirma ainda, reiterando ensinamento de Leão XIII, que a Igreja é “sociedade perfeita no seu gênero”, dotada de “elementos sociais e jurídicos” (ibidem, §“Recta igitur”). Reprova “o
erro funesto dos que sonham uma Igreja quimérica, uma sociedade formada
e alimentada pela caridade, à qual, com certo desprezo, opõem outra que
chamam jurídica”. E, referindo o Concílio Vaticano I, Const. Dogm. De Ecclesia, acrescenta que o Divino Redentor “ordenou
que a sociedade humana por ele fundada fosse perfeita no seu gênero, e
dotada de todos os elementos jurídicos e sociais para perdurar na Terra a
obra salutífera da Redenção” (ibidem, §“Quapropter funestum”).
A Realeza Social de Nosso Senhor
7] O ensinamento do Papa Francisco, de
que a Igreja não é simples ONG assistencial, evoca ainda a doutrina da
Realeza Social de Jesus Cristo. Deus não é Senhor apenas dos seres
irracionais e do homem, mas também das sociedades e dos Estados, que
igualmente lhe devem submissão, homenagem e culto. Daí advém a Realeza
Social de Nosso Senhor, negada com furor pelo laicismo hoje dominante,
como pelo modernismo de todas as latitudes. A partir da doutrina, em si
mesma correta, de que em vista das circunstâncias pode ser tolerada uma
sociedade que inadmita a realeza de Nosso Senhor, o liberalismo católico
do século XIX, e depois o modernismo e o progressismo, passaram a
negá-la de modo absoluto, em princípio como na prática. Essa negação
radical tenderia a subtrair à Igreja sua característica de entidade de
direito público entre as nações, em face dos particulares e em toda a
vida social, o que inevitavelmente a levaria, com o tempo, à condição de
mera ONG assistencial.
8] Pio XI, declarando que a Igreja é “a única dispensadora da salvação” (Enc. Quas Primas, AAS, vol. XVII, n. 15, §“Quas Primas”), indica que já o Concílio de Niceia (ano 325) afirmou “a dignidade real de Cristo” em sua fórmula de fé: “cujo reino não terá fim” (ibidem, §“At quicquid”). Acrescenta que “os
homens não estão menos sujeitos à autoridade de Cristo em sua vida
coletiva do que na vida individual. Cristo é fonte única de salvação
para as nações como para os indivíduos” (ibidem, §“Verumtamen
eiusmodi”). Declara, ainda, que “aos governos e à Magistratura
incumbe a obrigação, bem assim como aos particulares, de prestar culto
público a Cristo e sujeitar-se às suas leis” (ibidem, §“Civitates
autem”). E cita as seguintes palavras de Leão XIII na Encíclica Annum sacrum: “seu
império não abrange tão só as nações católicas ou os cristãos
batizados, que juridicamente pertencem à Igreja, ainda quando dela
separados por opiniões errôneas ou pelo cisma: estende-se igualmente e
sem exceções aos homens todos, mesmo alheios à fé cristã, de modo que o
império de Cristo Jesus abarca, em todo o rigor da verdade, o gênero
humano inteiro” (ibidem, §“Verumtamen eiusmodi”).
A Igreja é fator de ordem e concórdia
9] Progressistas e laicistas extremados
alegam com frequência que a defesa das prerrogativas da Santa Igreja
como sociedade visível e perfeita, e do Reino Social de Nosso Senhor,
seria elemento de discórdia e violência na ordem individual, como na
ordem social. Daí concluem que é imperativo calar essas características
da Igreja, que segundo eles, ademais, já não valeriam para o mundo
moderno, relativista e religiosamente pluralista. Desconhecendo de todo o
verdadeiro espírito católico, eles chegam ao erro primário de equiparar
a doutrina católica tradicional ao chamado fundamentalismo muçulmano,
cuja violência tem estarrecido o mundo em nossos dias. Ora, o que
ensinam os Papas é que a verdadeira e autêntica ordem social cristã é,
de si, o mais poderoso dos fatores de harmonia e paz que possam unir os
homens e os povos.
10] É essa a lição da Encíclica Immortale
Dei, de Leão XIII, numa passagem sobre a Idade Média, que se tornou
célebre na doutrina social da Igreja: “Tempo houve em que a
filosofia do Evangelho governava os Estados. Nessa época, a influência
da sabedoria cristã e a sua virtude divina penetravam as leis, as
instituições, os costumes dos povos, todas as categorias e todas as
relações da sociedade civil. Então a religião instituída por Jesus
Cristo, solidamente estabelecida no grau de dignidade que lhe é devido,
em toda parte era florescente (…). Então o sacerdócio e o império
estavam ligados entre si por uma feliz concórdia e pela permuta amistosa
de bons ofícios. Organizada assim, a sociedade civil deu frutos
superiores a toda expectativa, frutos cuja memória subsiste e
subsistirá, consignada como está em inúmeros documentos que artifício
algum dos adversários poderá corromper ou obscurecer” (Acta Sanctae
Sedis, 1885, vol. XVIII, p. 162/174).
11] Pio XI, na Encíclica Quas Primas,
expõe os benefícios sociais que adviriam da aceitação da realeza social
de Nosso Senhor, ressaltando “a concórdia e a paz” que resultariam da “consciência de seus membros do vínculo de fraternidade que os une”, levando à “esperança dessa paz que à Terra veio trazer o Rei Pacífico, esse rei que veio para reconciliar todas as coisas”. E prossegue dizendo que, “se os indivíduos, se as famílias, se a sociedade se deixassem reger por Cristo”, ocorreria o que prognosticava Leão XIII: “então
retornaria a paz com todos os seus encantos e cairiam das mãos as armas
e espadas” (Enc. Quas Primas, AAS, vol. XVII, §“Itaque, si quando”).
Conclusão: A bandeira no alto da cidadela
12] A bandeira da doutrina católica há de
tremular sempre no topo da cidadela. Pode-se, sem dúvida, salientar, no
fragor da batalha e com prudência, ora um de seus aspectos, ora outro;
pode-se deixar de expor certa verdade durante tempo mais longo ou menos,
mas não se pode aceitar que algum ponto da doutrina seja estável e
sistematicamente omitido, por princípio ou por oportunismo. E as cores
da bandeira não podem desbotar-se. Sem dúvida, há a hora de falar, e há a
hora de calar. Mas, ao menos implicitamente, e ao longo do tempo
explicitamente, a doutrina católica há de ser exposta em sua totalidade.
13] A profissão da fé é obrigação de todo
católico. Da Revelação, não se suprima nem sequer um iota. Os
princípios da Igreja como sociedade visível e perfeita, e do Reino
Social de Nosso Senhor, são básicos na doutrina da Igreja. É inegociável
o direito, e, conforme as circunstâncias, o dever, de proclamá-los. São
princípios singelos e em outros tempos amplamente conhecidos. Hoje,
contudo, de tal modo negados, subvertidos ou pelo menos esquecidos, urge
proclamá-los, sob pena de se estar anunciando “outro Evangelho” (São Paulo, Gal. 1, 6).
14] Em defesa desses princípios maiores da Cristandade, invocamos a Rainha clemente, piedosa, doce, sempre Virgem, Maria.
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