Entrevista com especialista em bioética, Pe. Helio Luciano |
Por Thácio Lincon Soares de Siqueira
BRASíLIA, 01 de Abril de 2013 (Zenit.org)
- O Conselho Federal de Medicina, órgão que representa os mais de 400
mil médicos brasileiros, em nota do dia 21 de março (pode ser lida clicando aqui) posicionou-se a favor da “liberdade e autonomia da mulher”, ou seja, do aborto.
“Para
chegar a esse posicionamento, os Conselhos de Medicina se debruçaram
sobre o tema durante vários meses”, afirma a nota, dizendo que diversos
segmentos foram ouvidos e analisados vários “estudos e contribuições”.
E, por fim que “Representantes de grupos religiosos também foram
chamados a colaborar, apresentando seu ponto de vista”.
“Por que não foi chamado ninguém do movimento “Brasil sem aborto”, entidade supraconfessional que representa a maioria dos segmentos sociais contrários ao aborto? Por que não foi consultada a Comissão Família e Vida da CNBB,
que representa a Igreja no Brasil nesta temática?”, se pergunta – em
entrevista à ZENIT - Pe. Hélio Luciano, especialista em bioética e
membro da comissão de bioética da CNBB. E responde: “Será que estas
pessoas e instituições poderiam ter argumentos fortes contra o aborto,
que deslocaria a decisão dos membros do CFM em uma posição contrária ao
mesmo?”.
Nesse posicionamento explora-se amplamente o princípio da “autonomia
da mulher”, afirmou Pe. Hélio, mas “De nenhum modo negamos tal
princípio, importantíssimo e uma grande conquista das últimas décadas. O
problema é passar de uma autonomia a um autonomismo, no qual a liberdade real de um indivíduo deveria ser considerada sobre a liberdade dos demais.
Acompanhemos a entrevista que Pe. Hélio concedeu a ZENIT:
ZENIT: O Conselho Federal de Medicina tomou uma decisão correta, eticamente falando?
Pe. Hélio: Há algumas semanas, antes da última
reunião do CFM em Belém - reunião que decidiu pelo apoio à defesa do
aborto em qualquer situação até a décima segunda semana de gestação –
tivemos acesso ao documento composto por uma equipe de trabalho do CFM.
Tal documento apresenta-se como imparcial, mas a parcialidade em relação
à defesa do aborto é bastante aberta em toda a parte geral do texto,
deixando apenas, no final, um pequeno documento de alguém contrário ao
aborto.
O mais surpreendente, sob o nosso prisma, é que o tema é tratado a
partir de uma contraposição entre a fé e a razão, ou seja, o aborto é
defendido a partir de uma postura racional, com argumentos e dados
científicos, enquanto a posição contrária ao aborto é colocada como uma
posição meramente baseada na religião. Aqui não entramos no mérito da
fiabilidade dos dados fornecidos – apesar das cifras de mulheres que
morrem anualmente em decorrência do aborto, segundo os números citados,
serem superiores ao número de mulheres em idade fértil que morrem por
ano (contando todas as causas de morte) – mas na falta de dados
científicos e racionais para contrapor o aborto. É fato que a partir da
concepção temos um organismo humano, com DNA humano, diferente daquele
dos seus pais e pertencente à espécie homo sapiens sapiens.
Este novo ser humano tem capacidade de desenvolver-se como um organismo
individual, sem nenhuma solução de continuidade no seu desenvolvimento
orgânico, que poderá durar mais de cem anos. Colocar que o início da
atividade orgânica deste novo indivíduo está na formação de alguma
estrutura específica é desconhecer a embriologia humana e perigosa, pois
torna-se sempre aleatória - na Europa já começa a defender-se o
infanticídio por uma coerência com a postura abortista (a argumentação
seria "se a capacidade de ser humano se alcança, por que deveríamos
afirmar que a criança recém nascida já alcançou esta capacidade?").
O princípio da autonomia da mulher foi o principal argumento
apresentado para a defesa do aborto. De nenhum modo negamos tal
princípio, importantíssimo e uma grande conquista das últimas décadas. O
problema é passar de uma autonomia a um autonomismo, no qual a liberdade real de um indivíduo deveria ser considerada sobre a liberdade dos demais. A autonomia do ser humano presente no ventre da mãe também deve ser considerada. Ainda que tal autonomia
não possa ser exercida por ele mesmo, deve ser defendida - o próprio
nascimento do Direito foi exatamente para defender aqueles que não
poderiam fazer por si mesmos. Os dois valores em jogo – liberdade da mãe
e vida do filho – devem ser colocados na balança e deve-se respeitar
aquele com maior peso. Considerando que a liberdade é um valor que
depende da vida, parece claro que o respeito à vida deste ser humano
deve ser superior ao respeito da liberdade da mulher.
Considerando tudo que foi dito até o momento, podemos dizer que foi
um erro grave a postura tomada pelo Conselho Federal de Medicina. Repito
que foi um erro não só do ponto de vista moral-religioso, mas também de
um ponto de vista ético-racional, desrespeitando o próprio ser humano.
ZENIT: Estar de acordo com a liberdade da mulher, de resolver ou não abortar, é o mesmo que apoiar o aborto?
Pe. Hélio: O que está em jogo aqui não é estar de
acordo com a liberdade de ninguém - toda pessoa de bom senso está de
acordo com a liberdade dos demais. Porém, é necessário entender que a
liberdade tem limite e que atos que não respeitem estes limites não são
atos livres, mas violência contra outro ser. Deste modo o ladrão quando
rouba não está exercendo propriamente a sua liberdade, mas está
agredindo um terceiro.
Sendo assim, estar de acordo com um ato de violência implica também uma culpa.
E a culpa será maior quanto maior a responsabilidade da pessoa ou
instituição que expressa a sua opinião. No caso do aborto, entendemos
que a maioria das mulheres se encontra em uma situação delicada que não
encontram outra saída - ainda que sempre exista. Essas mulheres, devido à
gravidade de cada situação, podem ter a culpa diminuída.
Pelo contrário, as instituições como o Conselho Federal de Medicina
(nas pessoas que o representam), terão uma culpabilidade grande se, pelo
seu posicionamento em relação ao aborto, este procedimento for aprovado
no Brasil. Neste posicionamento não estão envolvidas questões
sentimentais e econômicas graves – que poderiam diminuir sua
culpabilidade – mas está envolvida a simples ideologia e o
desconhecimento do valor da vida humana, colocado debaixo de um pretenso
ato de liberdade.
ZENIT: O CFM chama em si o direito da democracia, de que cada um tenha a sua própria opinião, e a possa expressar.
Pe. Hélio: Nos últimos anos estamos vivendo o que o Beato João Paulo II e o Papa Bento XVI chamavam de “ditadura do relativismo”. Somos todos obrigados a não ter opinião própria,
mas considerar que todas as opiniões possuem igual conteúdo de verdade.
Tal posição, além de excluir e acusar de fundamentalismo todas as
posturas que defendam uma verdade – de modo especial a Igreja – é em si
mesma falha e contraditória: se todas as afirmações são relativas, o
próprio relativismo é relativo. Se colocarmos um exemplo, talvez
possamos entender melhor: uma cadeira é sempre uma cadeira. Podemos
encontrar diversas verdades sobre a cadeira – que tem “pés”, que tem um
lugar para sentar, que serve para descansar – mas nenhuma dessas
verdades pode ser contraditória com outra, senão, por questão de lógica,
alguma dessas verdades (ou todas) seria falsam.
Do mesmo modo podemos ter várias considerações em relação ao aborto –
quais sejam, do ponto de vista sociológico, epidemiológico, moral,
ético, religioso, etc. – porém, nenhuma das mesmas pode ser
contraditória entre si. Se dissermos que um embrião é um ser humano e
que todo ser humano inocente tem direito à vida, não podemos
simplesmente nos contradizer aceitando também uma verdade que a autonomia da mãe tem direito sobre a vida do seu filho.
Mas estas argumentações racionais, atualmente, são diluídas e esvaziadas com a alegação de que são argumentação religiosa.
Não importa o grau de racionalidade das mesmas – se vem de alguém que
tem fé, simplesmente não é mais uma das tantas “verdades” válidas. A democracia
amplamente defendida pela sociedade atual é válida somente para alguns –
as pessoas com fé não tem direito a participar da mesma, ainda que seus
argumentos sejam racionais.
ZENIT: O CFM não terá passado por cima do conceito de
democracia ao tomar uma posição sem respeitar realmente a opinião dos
médicos que ele representa?
Pe. Hélio: Defender a violação da vida de um ser
inocente é muito mais que passar por cima da democracia. Um simples
documento de trabalho feito por poucas pessoas e discutido em um
congresso com membros dos Conselhos Regionais de Medicina não pode ser
decisivo para questões tão complexas como o aborto.
O ideal seria uma ampla consulta aos médicos – a quem o Conselho representa – para saber a opinião dos mesmos.
ZENIT: Diz a nota do CFM que foi consultado uma ampla parte
da sociedade, até mesmo os setores religiosos, mas parece ser que isso
não foi feito, porque a notícia pegou a todos de surpresa. A mesma CNBB,
por meio de Dom Petrini, lançou uma nota de repúdio a essa decisão do CFM.
Pe. Hélio: Quando tratamos questões sérias, como é o
caso do aborto, temos o dever de fazer uma consulta a todos os setores
da sociedade, como o CFM afirmou ter feito. Não se pode dizer que esta
consulta foi feita simplesmente porque falamos com algumas pessoas (sem
considerar que as pessoas procuradas, em sua maioria eram favoráveis ao
aborto). O fato de terem colocado no documento de trabalho um texto contrário ao aborto – sendo que todo o demais eram favoráveis a esta prática – e terem chamado um sacerdote para falar ao público, não implica uma ampla consulta àqueles que são contrários ao aborto e nem uma consulta real à Igreja.
Por que não foi chamado ninguém do movimento “Brasil sem aborto”,
entidade supraconfessional que representa a maioria dos segmentos
sociais contrários ao aborto? Por que não foi consultada a Comissão
Família e Vida da CNBB, que representa a Igreja no Brasil nesta
temática? Será que estas pessoas e instituições poderiam ter argumentos
fortes contra o aborto, que deslocaria a decisão dos membros do CFM em
uma posição contrária ao mesmo?
Quando se quer aprovar alguma postura de forma arbitrária, não se faz
consulta ampla à sociedade e a seus diversos segmentos – dos quais a
Igreja é um deles – mas simplesmente se tenta maquiar aquilo que já
tinha sido decidido com tintas de democracia.
Esperamos que o Conselho Federal de Medicina, na seriedade e
competência que sempre o caracterizou, possa voltar atrás na sua decisão
e abrir de fato o diálogo amplo com a sociedade, com os médicos que
representa, e também com os setores favoráveis e contrários ao aborto.
Deste diálogo poderemos todos sair mais maduros e com uma decisão que de
fato represente o respeito à vida – os médicos foram chamados para
cuidar da vida e não para suprimi-la.
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