15 abril 2013
A recente decisão do Conselho Federal de Medicina (CFM) favorável ao
aborto até a 12.ª semana de gravidez, dependendo apenas da vontade
autônoma da mulher, dá-nos a ocasião para tratar mais uma vez desse
tema. Ouso escrever novamente sobre o assunto mesmo porque o silêncio
poderia sugerir falta de argumentos, e isso não é verdade. Por falar
nisso, tratemos de alguns argumentos favoráveis ao aborto.
O aborto seria aprovável até a 12.ª semana de gestação porque o tubo
neural do feto ainda não se formou? Assim, a sua condição equivaleria à
de um morto cerebral? Mas se assim fosse, como justificar os estudos e
práticas de psicologia e de psiquiatria que se ocupam da vida humana
desde uma fase bem anterior a 12 semanas de gestação? A condição de um
morto cerebral nunca pode ser equiparada à de um feto, que está em plena
dinâmica vital.
Na vida humana, não se pode estabelecer uma fase que já não seja
humana desde o seu primeiro início, na fecundação. Aquilo que aparece na
13.ª semana já existia também desde a primeira semana de gestação: um
ser humano vivo. Embora ainda não esteja completo, ele já existe em sua
identidade humana, que não se inicia somente na 13.ª semana de gestação.
Legalizar o aborto valorizaria a autonomia da mulher e o respeito
pela sua decisão livre? A questão não está bem colocada. A decisão não
envolve exclusivamente a mulher, mas também a vida de mais um ser
humano; e a liberdade de um não pode prejudicar o direito do outro. O
feto ou bebê, enquanto é gerado, não é parte do corpo da mulher, mas já é
um outro ser humano, que tem o direito de viver e de ser amado.
O aborto implica a supressão da vida de um ser humano e esse ato não
pode ser considerado um direito de ninguém, nem valorizaria a dignidade
da mulher. Sabe-se quantas consequências e quantos sofrimentos,
inclusive psíquicos, esse ato causa à mulher. O sofrimento de uma
gravidez indesejada ou difícil pode ser aliviado e não pode ser
equiparado ao dano causado por um aborto, sobretudo porque se trata de
uma vida suprimida.
Afirma-se que o Estado brasileiro é laico e não deveria levar em
conta argumentos de tipo religioso. Esse é um sofisma frequente e mal
esconde uma discriminação religiosa contra o direito à livre
manifestação dos cidadãos. Além disso, os direitos humanos independem de
religião e valem para todos, tanto como benefício quanto como
imperativo ético. No caso do aborto, não se trata de questão religiosa,
mas do mais elementar direito humano à vida.
Países desenvolvidos seriam favoráveis ao aborto e só os
obscurantistas, fundamentalistas e fanáticos seriam contrários à sua
aprovação. Será mesmo? Dar aos adultos e fortes a possibilidade de
dispor da vida de indefesos e inocentes, até ao ponto de suprimi-los,
não parece um sinal de verdadeiro desenvolvimento, mas de retorno à lei
da selva.
O bem da sociedade justificaria a eliminação dos indesejados, dos
defeituosos e doentes, das “vidas inviáveis” antes mesmo de nascerem?
Foi com semelhantes raciocínios, habilmente apresentados, que regimes
totalitários, cruéis e desumanos eliminaram milhões de seres humanos
considerados inferiores ou não dignos de viver.
A maioria das pessoas seria favorável ao aborto? Isso requer uma
verificação séria, pois não parece verdade. Mesmo se fosse, o direito de
matar pessoas não pode ser submetido à vontade da maioria; há coisas
que independem de consenso por serem verdades ou direitos inalienáveis.
Ninguém pensaria em submeter a uma decisão consensual o direito a
respirar, comer ou dormir. Muito menos ainda, o direito de viver!
A violência sexual, que viola a “dignidade sexual” da mulher, ou
certas situações de injustiça social, que dão origem à pobreza,
legitimariam, talvez, o aborto? O problema é que, dessa forma, se
decretaria de maneira simplista a pena de morte contra um ser humano
inocente e indefeso, em vez de atingir os verdadeiros culpados por
injustiças e violências.
Fala-se que há males que vêm para bem. Assim, mesmo admitindo que o
aborto seja um mal, considera-se que dele resultaria um bem, pois se
evitariam os sofrimentos de “vidas inúteis”, o fardo social de seres
humanos improdutivos, o aumento da pobreza e a temida explosão
demográfica. É preciso lembrar, contudo, que os fins não justificam os
meios. Os males sociais e os da saúde precisam ser enfrentados, mas
jamais mediante a negação do direito à vida das pessoas.
Diz-se ainda que os países mais desenvolvidos já liberaram o aborto e
a não legalização dessa prática seria um sinal de atraso. Por certo, o
descontrole na prática do aborto em clínicas especializadas, ou por mãos
inexperientes, é um sinal de atraso e de pouco respeito à vida humana
ou à lei que a protege. A solução seria, então, a legalização do aborto?
Não o seria, antes, mediante uma atenção maior à saúde das gestantes e à
educação para comportamentos sexuais dignos e responsáveis, sem o
recurso à fórmula simplista e inaceitável da supressão de vidas
indefesas e inocentes?
Não é por demais inglório manifestar-se sobre essa questão
antipática, recebendo o carimbo de “conservador” e “mente fechada”? Dia
mais, dia menos, o aborto será aprovado; existem pressões muito fortes
sobre os legisladores e diversos interesses estão em jogo. Vale mesmo a
pena? Eis o problema. A questão delicada da dignidade humana e do
direito à vida é demasiado séria para ficar refém da pressão ideológica.
Não é questão religiosa, mas de direitos humanos. Só haveria uma
maneira de mudar essa visão: se fosse provado, de maneira convincente,
que o feto ou o bebê ainda não nascido não é um ser humano. Mas esse é
um outro discurso, longo e complexo. Afirmamos que é um ser humano e,
portanto, seu mais elementar direito, que é viver, não lhe deve ser
negado.
Publicado em O ESTADO DE S.PAULO ed. 13/4/2013
Cardeal dom Odilo Scherer
Nenhum comentário:
Postar um comentário