Meios de comunicação servem para “alcançar” fiéis católicos que não têm tempo de frequentar a igreja. Ida de missionários brasileiros ao exterior pode ser compreendida numa perspectiva de “missão reversa”, afirmam as pesquisadoras.
[IHU]
Surgida na década de 1990, a Comunidade de Vida e de Aliança Canção Nova
deve ser compreendida a partir da inspiração encontrada “na
espiritualidade da Renovação Carismática Católica e seus desdobramentos
nas últimas décadas”, assinalam Brenda Carranza e Cecília Mariz na entrevista que concederam por e-mail à IHU On-Line. É preciso também ter em mente o neopentecostalismo da Igreja Universal do Reino de Deus e seu protagonismo midiático religioso como pano de fundo do surgimento da Canção Nova. As pesquisadoras mencionam a transnacionalização da Canção Nova
em países como França, Itália, Israel, Portugal, EUA e Paraguai, o que
pode ser analisado em termos de uma “missão reversa”: “Aqueles que um
dia foram objeto de missão, catequisados nas colônias, invertem o fluxo
histórico, enviando missionários para as metrópoles, com a consigna de
converter a seus cidadãos”.
Brenda Carranza
possui graduação em Teologia pela Universidade Francisco Marroquim –
UFM, na Guatemala, bacharelado em Ciências Sociais pela Universidade
Estadual de Campinas – Unicamp, e bacharelado em Teologia pela
Pontifícia Universidade Católica de Campinas/Pontifício Ateneo Santo
Anselmo, PUC-Campinas/Roma. É mestre em Sociologia pela Unicamp, com a
dissertação Renovação Carismática Católica: Origens, mudanças e
tendências, e doutora em Ciências Sociais pela mesma instituição, com a
tese Movimentos do Catolicismo Brasileiro: cultura, mídia e instituição.
Docente na PUC-Campinas, Brenda é também coordenadora da Coleção
Sujeitos e Sociedade da editora Ideias & Letras. De suas publicações
destacamos: Catolicismo midiático (Aparecida: Ideias & Letras, 2011) e Renovação Carismática Católica: origens, mudanças e tendências (2. ed. Aparecida–SP: Santuário, 2000). É uma das autoras de Mobilidade Religiosa: linguagens, juventude política (São Paulo: Paulinas, 2012) e com Cecília Mariz escreveu o artigo Catholicism for Export: the case of Canção Nova, publicado na coletânea The Diaspora of Brazilian Religions (Netherlands: Brill, 2013).
Cecília Loreto Mariz possui graduação em Ciências
Sociais e mestrado em Sociologia pela Universidade Federal de
Pernambuco, e doutorado em Sociology of Culture and Religion (Ph.D) pela
Boston University. É professora da Universidade do Estado do Rio de
Janeiro – UERJ e uma das organizadoras de Novas Comunidades Católicas: em busca do espaço pós-moderno (Aparecida: Ideias & Letras, 2009), além de autora de Coping With Poverty: Pentecostals and Base Communities in Brazil (Philadelphia: Temple University Press, 1994).
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Em que aspectos a Canção Nova é um “catolicismo de exportação”?
Brenda Carranza e Cecília Mariz – Entendemos que a Comunidade de Vida e de Aliança Canção Nova
foi um dos pivôs que impulsionou, na década de 1990, a visibilidade de
um catolicismo de massas e do reavivamento de determinado setor de sua
juventude. Para fundador da Comunidade, Mons. Jonas Abib,
“o que a Canção Nova tem de mais forte são os meios de comunicação
[porque] é o presente que o mundo mais almeja, corresponde à sua maior
necessidade.” (1) Por isso, ao assumir como vocação modernizar
tecnologicamente a Igreja brasileira, os quase mil membros da Canção Nova
se empenham na construção e manutenção de um império midiático que
abrange Rádio (AM e FM) TV, Portal, WebTV e Mobile (o que inclui a
transmissão de fotos, músicas, imagens, vídeos e pregações pelo celular,
palmtops e iPod).
No Brasil, o sinal é transmitido por 86 operadoras de TV a cabo e no
exterior via satélite. Além de produzir e comercializar livros (com mais
de 1.500 títulos), CDs, e DVDs (mais de 500), a Canção Nova
conta com um Call Center (120 mil chamadas mensais), um departamento de
audiovisuais e estrutura multicanal de comercialização (varejo,
atacado, porta a porta, catálogo e e-commerce) . Mais ainda, com a
finalidade de diversificar seus meios de atuação, a CN conta com um
Instituto de Ensino Fundamental e Médio e com uma Faculdade de Meios de
Comunicação, que, por sua vez, qualifica quadros internos da Comunidade .
Teia comunicativa
Essa imensa rede de meios permite ecoar, por toda a geografia
católica, pregações sobre a família, o mal e o demônio no mundo, orações
de cura e libertação, catequese sacramental e amplas campanhas de
arrecadação financeira para a Canção Nova (2). Somam-se a essa teia comunicativa os inúmeros acampamentos, retiros, festivais de música, encontros de PHN
(por hoje não peco mais) e o Hosana Brasil, capaz de congregar até 200
mil jovens num só final de semana onde lazer, entretenimento e
orientações doutrinais e moral sexual católica se amalgamam para
oferecer uma convivência “sadia”.
Tal conjunto de estratégias permitiu à Canção Nova
constituir-se numa referência de “sucesso” no meio católico e constituir
um estilo de evangelização, pautado na promoção de eventos
multitudinários, na integração de mídias como aposta de evangelização,
na agregação de voluntários e vocações ao serviço das iniciativas da
Comunidade e na criatividade para angariar benfeitores.
Nesse leque de iniciativas e propostas, a Canção Nova
se apresenta como um novo estilo de ser católico que, junto a seu
relativo sucesso na habilidade no uso dos meios eletrônicos na Igreja,
incentivou os membros canção-novistas a se arriscar a implantar
além-fronteiras as propostas que deram certo no Brasil, apostando nos
clichês da “simpatia” e “cordialidade” identificadas como marca dos
brasileiros no exterior.
IHU On-Line – Qual é o contexto de surgimento e consolidação dessa expressão do catolicismo brasileiro?
Brenda Carranza e Cecília Mariz – Num olhar retrospectivo encontraremos que, de um lado, a inspiração primordial da Canção Nova se encontra na espiritualidade da Renovação Carismática Católica – RCC
e seus desdobramentos nas últimas décadas. Do seio carismático
emergiram inúmeras bandas de jovens que, junto a religiosas e padres
cantores, configuraram uma cultura gospel católica, aquecendo o mercado
fonográfico dos últimos anos.
Será na RCC que a Canção Nova encontrará uma das
maiores alavancas que lhe permitirão deslanchar seu carisma e missão
enquanto produtora midiática, pois os carismáticos serão seu público
alvo.
Do outro lado, o crescimento da Canção Nova se dá na efervescência do neopentecostalismo , no qual a Igreja Universal do Reino de Deus – IURD terá o protagonismo na formação da mídia religiosa no Brasil. Mas tanto a Canção Nova como a IURD
compartilham da mesma visão sobre o uso indispensável dos meios de
comunicação social para “alcançar” os fiéis que, nos ritmos frenéticos
da vida moderna, não têm tempo de ir ao templo nem às igrejas. Para
ambas, a rádio, TV, webTV, internet, Twitter, blogs e o Facebook se
convertem em espaços privilegiados de difusão doutrinal e de disputa das
“almas” afastadas da religião.
IHU On-Line – Como a Canção Nova se insere nessa diáspora das religiões brasileiras pelo mundo?
Brenda Carranza e Cecília Mariz –
Antes de tudo temos de lembrar que, diferente de vários de outros grupos
que possam constituir-se como expressões tipicamente brasileiras , a Canção Nova
não é uma “religião brasileira”, nem mesmo uma “igreja brasileira” ou
grupo autônomo de alguma religião pouco institucionalizada, mas sim um
grupo católico que foi criado no Brasil, segundo dissemos antes.
Como católico ele se insere primeiramente na proposta missionária da
Igreja Católica como um todo, e aí a CN obedece a um projeto mais amplo,
segue as metas e as prioridades da Igreja Católica Apostólica Romana,
antes de mais nada.
No entanto, destacamos como o crescimento brasileiro em geral e sua
exportação de migrantes e missionários para o exterior se expressa
também no catolicismo, experiente por mais de dois mil anos na dinâmica
missionária.
Por isso, o caso da CN aparece como uma iniciativa religiosa
organizada por brasileiros e, assim, traria um estilo e fervor de uma
determinada forma de viver o catolicismo consolidado no Brasil.
Evidentemente que, por ser o catolicismo uma das matrizes culturais do
país, a Canção Nova não deixa de ter elementos que podemos identificar
como próprios da cultura brasileira. Essa ida dos missionários
brasileiros ao exterior tem sido também analisada como parte de um
processo de “missão reversa” do cristianismo e discutida por Paul Freston
e outros autores europeus . Esse conceito se refere a um fenômeno
contemporâneo: o fervor missionário e desejo de expandir o cristianismo é
mais forte atualmente nos países que no passado foram objetos de
missão. Dito de outra maneira, aqueles que um dia foram objeto de
missão, catequisados nas colônias, invertem o fluxo histórico, enviando
missionários para as metrópoles, com a consigna de converter a seus
cidadãos .
IHU On-Line – Que peculiaridades ela assume em outros países?
Brenda Carranza e Cecília Mariz –
Como falamos acima, a CN é parte da Igreja Católica e faz missão onde a
Igreja se encontra estabelecida por longo tempo, bem mais do que no
Brasil. Dessa forma, ela vai apenas onde é convidada por bispos e/ou
arcebispos, respeitando os processos hierárquicos de organização
eclesiástica. Os bispos conhecem seu trabalho e a convidam para uma
missão específica.
Nos EUA, por exemplo, a CN foi convidada para
evangelizar e apoiar brasileiros que migraram para aquele país atrás de
mais oportunidades de trabalho. Em Israel, por sua vez, a Canção Nova se associa à outra nova comunidade, a Obra de Maria,
para apoiar os peregrinos (ou turistas/peregrinos) católicos
brasileiros que vão à Terra Santa. Ao mesmo tempo, produzem programações
televisas que permitem trazer imagens da Terra Santa para os que não
podem ir até lá.
De forma similar, a presença da CN na Itália teria
esse papel de trazer Roma para perto do Brasil, com o arsenal de
materiais divulgados no seu sistema integrado de mídias (3). Já em Portugal e na França,
além de atingir os imigrantes brasileiros nesses países, a CN se propõe
a evangelizar os próprios portugueses e franceses. Para isso, incentiva
a formação de grupos integrados por fiéis desses países e desenvolve
atividades e meios de comunicação voltados para esse segmento eclesial, o
que muitas vezes gera conflitos internos nas próprias igrejas
particulares, como mostra o estudo realizado em Portugal por Eduardo Gabriel .
IHU On-Line – Em que medida a rede de comunicações da Canção Nova contribui nessa diáspora que experimenta pelo mundo e qual a relação entre as mídias e novas tecnologias com a evangelização promovida pela Canção Nova?
Brenda Carranza e Cecília Mariz – A
relação entre mídia e missão é central na CN, como já dissemos no
início, e consideramos essa relação um ponto central de nosso argumento.
Desde seu surgimento, essa Comunidade se voltou para o uso da mídia,
primeiro a rádio e logo depois a TV. Seu carisma e seu estilo
missionário baseiam-se no uso intensivo da mídia como prioridade na
evangelização, portanto, também no exterior, o foco da missão tem sido
no desenvolvimento das mais variadas mídias católicas (site, webTV,
blogs, programas de rádio).
Por exemplo: em Portugal sua presença é marcada
fortemente com a TV, rádio e internet, da mesma forma que no Brasil.
Para nós é importante discutir como essa marca CN, com seu conteúdo
católico carismático que está dando certo no Brasil, é aceita no
exterior.
Embora não tivemos ocasião de coletar dados empíricos sobre isso,
refletirmos sobre as hipóteses de quem são os receptores dessa mídia no
exterior e de que maneira é processada essa recepção. Somos conscientes
que para avaliar essas hipóteses seria necessário um investimento em
pesquisa de recepção, o que implica um trabalho de campo mais focal e
demorado. No entanto, arriscamos sugerir que lá fora se repete o que
acontece no Brasil, no sentido que a recepção da mídia produzida pela CN
se limitar ao universo católico.
IHU On-Line – Nessa lógica, qual é a importância das casas de missão no exterior, como aquelas existentes na França, Itália, Israel, Portugal, EUA e Paraguai?
Brenda Carranza e Cecília Mariz –
Como falamos acima, não temos uma pesquisa sobre os receptores, nem uma
pesquisa com católicos desses países de missão. Portanto, nosso trabalho
está focado na importância que essa mídia e casas de missão têm para os
católicos brasileiros. Isso também já tem sido observado em outros
estudos em diversas partes do mundo no campo protestante pentecostal
sobre esse tipo de missão, que tem sido chamada de “missão reversa” .
Observa-se nesses casos que a igreja, ou comunidade que envia
missionários, se sente unida e fortalecida tomando parte nesse projeto
global de cristianização. Os missionários, por sua vez, têm experiências
de vida especiais, dado o conhecimento que adquirem acerca do que
acontece fora do Brasil, sobre outros estilos de se viver e mesmo de ser
católico. De certa forma, todo esse projeto enriquece o missionário e a
sua comunidade de origem. Evidentemente novos estudos precisam ser
feitos sobre o que ocorre nos países receptores.
Mas o que destacamos é o duplo movimento gerado nessa inserção
midiática dos missionários da CN. O primeiro é centrífugo, visto que o
envio de missionários supõe fortalecimento na identidade da própria
comunidade, dando-lhe visibilidade universal. Já o segundo movimento é
centrípeto, pois a própria realização da missão internacional, no campo
midiático, retroalimenta com seus produtos as próprias programações
internas da CN no Brasil. Nesse sentido, aqui se verifica muito bem
aquilo que se aprende em termos religiosos: “dar pode ajudar mais a quem
dá do que a quem recebe”.
IHU On-Line – Que elementos fazem do Papa Francisco uma figura midiática?
Brenda Carranza e Cecília Mariz –
Embora seja muito cedo para avaliar a construção de um carisma
midiático, que possa potencializar seu papado, podemos afirmar que
existem alguns elementos que distinguem a recepção do Papa Francisco, da desconstrução midiática sofrida pelo Papa Bento XVI. Nessa direção, apontamos que a acolhida inicial de Francisco
o aproxima mais à ascensão midiática de João Paulo II. Observamos como a
recepção internacional da pessoa de Jorge Mario Bergoglio acenou para
uma linguagem mais próxima dos setores populares.
A grande mídia desenhou uma personalidade que contrastou com o papa
anterior, destacando uma natureza latina (meio argentina, meio italiana)
que potencializou seus atributos comunicativos naturais. Nesse ínterim
os gestos do pontífice foram transformando-se em gestos paradigmáticos —
enquanto ruptura com a personalidade do papa anterior e direcionamento
para outros modelos relacionais e, talvez, eclesiais. Por isso,
valorizam-se expressões singelas como “bom almoço”, ditas por ele aos
peregrinos na Praça de São Pedro.
Destaca-se, no discurso aos jornalistas, a solicitação de permissão
para lhes oferecer uma bênção . Noticiam-se a simplicidade e a humildade
da opção por morar na Casa Santa Marta, espaço
dedicado à acolhida de convidados no Vaticano, e não no apartamento
papal. Ganha espaço na pauta dos jornais a ousadia de celebrar na
Quinta-Feira Santa a missa num lugar não convencional — uma casa de
jovens detentos, entre eles mulheres e muçulmanos. Salienta-se sua
tendência pastoral e não dogmática, quando solicita aos sacerdotes sair
na procura de suas ovelhas.
Enfim, é inegável que estamos diante de um processo de empatia
inicial, no qual os meios de comunicação estão pautando, como é inerente
a sua natureza ideológica, o que deve ser olhado e como deve ser
olhado. Ou seja, vemos mais o homem dos gestos do que das ideias e
posições. Mas em breve o Papa Francisco terá sua primeira viagem internacional, virá ao Brasil para participar da Jornada Mundial da Juventude.
Nela sua palavra, seus discursos e mensagens terão um direcionamento concreto. O Francisco,
que é um mito para além dos muros da Igreja, pois evoca o compromisso
ecológico de um santo medieval, dará passo ao Papa Francisco com sua
visão da Igreja Católica em relação com a sociedade moderna. Essa
última, com suas demandas de transformação social, cultural, política,
econômica, na maioria das vezes, encontra-se em rota de colisão com a
Igreja Católica. A cobertura dessa viagem, que é em si mesma um evento
midiático, talvez nos ajude a compreender se a mídia está disposta a
investir, ou não, na construção de um carisma midiático no papa Francisco. Porém, não podemos descartar a possibilidade de que ainda devamos esperar mais uns meses para perceber os sinais.
IHU On-Line – Como a Canção Nova se posicionou em suas difusões a partir da escolha do jesuíta?
Brenda Carranza e Cecília Mariz – Se prestarmos atenção à cobertura da tríade: renúncia / eleição / tomada de posse que a Canção Nova
realizou, observaremos que essa não difere daquela que a grande
imprensa fez. A CN compartilhou a mesma surpresa com a escolha do
arcebispo de Buenos Aires. Dias antes da escolha do papa, a própria CN
direcionou seu olhar para os cardeais, definidos, também pela grande
mídia, como papavéis . As especulações sobre a razão da escolha do nome Francisco também não foram originais: “Eu mesmo acreditei [confessa o Pe. Araújo] que a motivação primeira para a escolha do seu nome fosse o companheiro de Inácio de Loyola, o grande missionário Francisco Xavier, bases de sua congregação: a Companhia de Jesus ou os jesuítas”.
Mesmo nesse amplo alinhamento, duas coisas chamaram a nossa atenção.
Enquanto a imprensa de modo geral traçou um perfil intelectual do papa
associado a sua pertença à Companhia de Jesus, a Canção Nova
tendeu a traçar um continuum entre a formação intelectual de Francisco e
seu contato com Bento XVI. Mas tanto a CN quanto a mídia em geral
valorizam mais os gestos comunicacionais do que a capacidade intelectual
do papa. A segunda observação é o silenciamento da Canção Nova sobre um possível envolvimento do jesuíta Bergoglio com a ditadura militar argentina, fato que não passou despercebido à imprensa secular e alternativa.
Entrevista: Márcia Junges
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